segunda-feira, 8 de julho de 2019

O CAMARTELO DA LEGALIDADE OBSCENA


Se me perguntarem se gosto do prédio Coutinho em Viana do Castelo, respondo que não gosto, mas que considero haver muito piores por esse país fora, em termos de desenho arquitectónico e ainda que gostos não se discutem, pelo que o gosto pessoal não deve ser imposto por ninguém, nem (ou muito menos) por políticos. Aliás, o gosto tem variado tanto e tão rapidamente em arquitectura ao longo dos tempos, que muitos edifícios que são hoje monumentos classificados nunca existiriam se os autores se tivessem cingido à “moda” da época em que foram construídos. O leitor gosta da sede mastodôntica da CGD em Lisboa?
Se me perguntarem se está bem enquadrado, responderei que não, à semelhança de outros em muitas das cidades portuguesas. A começar, em Lisboa, pelas Amoreiras e os novos edifícios à beira-Tejo como a Fundação Champalimaud e hotéis vizinhos ou aquela coisa urbanística que a Câmara da capital quer aprovar para o quarteirão da Portugália. E o que dizer dos edifícios da Segurança Social em Aveiro e em Viseu?
Um Estado de Direito pressupõe direitos dos cidadãos como por exemplo, poderem contar que o Estado defenderá os seus direitos adquiridos, nomeadamente aqueles que o próprio Estado transmite. E que os garantirá perante mudanças de gosto dos governantes.
E esses direitos são adquiridos, por exemplo, quando se referem a edificações aprovadas de acordo com as inúmeras regras, locais e nacionais, existentes para o efeito, quando a sua construção deu origem a licença de utilização e as fracções resultantes foram devidamente registadas em Conservatória, passaram a ter artigos nas Finanças e começaram a dar origem a pagamento das respectivas contribuições. A alteração radical de uma situação destas só se deveria poder verificar com uma causa advinda, como fosse o surgimento de uma falta de segurança imprevista, abandono durante largo período com consequências ambientais ou outras, ou então por um evidente interesse superior público justificativo de expropriação.
Nada disto se passou com o prédio Coutinho, só por um desvio grave de interpretação da lei se podendo argumentar com o gosto ou má localização. Mas foi isto que se passou quando a Sociedade Polis de Viana do Castelo há cerca de 20 anos decidiu que o prédio Coutinho tinha que ser demolido. À altura, o então ministro do Ambiente que aprovou esta decisão ditando início do processo, tinha em construção a sua imagem de político modernaço e determinado (que viria a evoluir para puro autoritarismo) e chamava-se José Sócrates. Foi então estabelecido um prazo para a demolição do prédio Coutinho e colocado mesmo um relógio na rua a contar o tempo regressivamente. Data definida para a demolição: 2003.

Estamos em 2019, estima-se agora que a demolição deste prédio vai custar aos contribuintes a nada módica maquia de 35 milhões de euros e podemos assistir pelas televisões à triste novela da saída dos últimos moradores do prédio, que nunca compreenderam nem aceitaram as razões para lhes retirarem as casas que compraram dentro de toda a legalidade. Com algum espanto sabe-se que, com a súbita pressa agora surgida, a própria Câmara procedeu ao corte de energia eléctrica ao prédio, substituindo-se ao fornecedor de energia, à margem da lei, voltando a repor a energia novamente sem segurança, como resultado de uma ordem do tribunal.
Claro que todo o processo que agora culmina com a saída dos últimos moradores foi sustentado em decisões do Estado cumpridoras da letra da Lei, desde o acto administrativo da Declaração de Utilidade Pública até às decisões de indemnização em Tribunal, não estando isso em discussão. O que nestas linhas se contesta é a razão primeira para o início do processo e acusa-se o Estado de incoerência e consequente malfeitoria a cidadãos gravemente penalizados nas suas vidas sem qualquer culpa no processo, antes tendo cumprido todas as regras ditadas pelo próprio Estado que, a certa altura, decidiu alterá-las por puro arbítrio político.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Julho de 2019

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