segunda-feira, 28 de outubro de 2019

DO ESTADO DA SAÚDE PÚBLICA EM PORTUGAL

As notícias quase diárias sobre problemas neste ou naquele hospital, neste ou naquele serviço, só confirmam que o SNS está doente. E já não só os portugueses que não possuem seguro de saúde nem são funcionários públicos a saber disso. A prestigiada revista médica científica Lancet publicada no Reino Unido noticiou há poucos dias que, em tradução livre, “como esse investimento em queda está impedindo a modernização de hospitais e a substituição de equipamentos médicos obsoletos, a assistência privada está em expansão. Os médicos e enfermeiros do sector público, desencorajados por más condições de trabalho, estão a procurar emprego no sector privado e no estrangeiro”.
O último caso é o da urgência pediátrica do Hospital Garcia d’ Orta. A falta de médicos pediatras, dado que em vez dos 38 que deveria ter, o serviço tem 28, associada à idade dos existentes que em elevado número já estão legalmente dispensados de fazer urgências, leva à impossibilidade de garantir escalas em permanência. Como resultado, aquelas urgências têm fechado vários dias, mesmo num fim-de-semana inteiro, prevendo-se que o problema continue, deixando Almada sem urgências para crianças e jovens, uma situação de todo insustentável. O ministério da Saúde anunciou que autorizava o Garcia d’ Orta a abrir vagas, mas sabe-se perfeitamente que esse anúncio é o mesmo que atirar areia para os olhos das pessoas. De facto, já houve anteriormente abertura de vagas, mas ficaram desertas, isto é, os médicos pediatras recusam-se a ir trabalhar para aquele hospital, sabendo o que os espera em termos de urgências, pelo valor de vencimento que lhes é proposto. E não se pense que o Garcia d' Horta só tem problemas naquela especialidade. 
De acordo com o jornal Expresso, há outras em que o problema é semelhante, como a Obstetrícia que só ultrapassam o problema com os médicos especialistas a aceitar fazer escalas de 24 horas de urgência, quatro dias por semana. Como é evidente, o serviço normal ressente-se, e de que maneira. O ministério da Saúde lá vai dizendo, contrariando todas as afirmações anteriores sobre os serviços privados de Saúde que, caso necessário, irá recorrer a esses mesmos serviços.
O comentário da revista Lancet sobre a falta de investimento em equipamentos é gravíssimo, mas infelizmente é verdadeiro, pese embora a falta de informação sobre o assunto. Como estamos em Coimbra, podemos referir aqui a situação do CHUC, que será paradigmática. Na semana anterior às recentes eleições a Administração do Hospital veio informar, com satisfação, que no corrente ano de 2019 o investimento será na ordem dos 9,5 milhões de euros, em vez dos 4,1 de 2018 correspondendo a um aumento de mais de 100%. Ficou bem, mas esqueceu-se de dizer que, no último ano da troika em 2015, e depois de 3 anos de míngua dedicados a pagar as dívidas herdadas, o montante de investimentos foi de 9,9 milhões. Isto é, terminada a austeridade e passados cinco anos contínuos com a economia a crescer, o investimento ainda não conseguiu superar o do último ano de austeridade.
A ideia que fica de tudo isto é que o ministério da Saúde anda a correr a correr a tapar buracos por todo o lado, sendo evidente que a manta é curta e não dá para cobrir o que é necessário. Lembra-se que, actualmente, os cerca de 800.000 portugueses que trabalham para o Estado, mais as suas famílias, já estão na prática fora do SNS por terem ADSE e que muitos outros, que recorrem ao SNS, são canalizados para o sector privado através do SIGIC, dada a falta de resposta do sector público. Aliás, se tal não houvesse, o país estaria mergulhado num completo caos, no que à saúde diz respeito.
Salta à evidência que o SNS está a atingir um ponto de não retorno, se é que já não o passou, a partir do qual só poderá sair de duas maneiras: ou com um investimento massivo que cubra os cortes dos últimos 10/15 anos (incluindo pagar convenientemente aos profissionais da saúde, contratando simultaneamente os quadros em falta por todo o país) ou sofre uma refundação com uma completa reestruturação, deixando de ser aquilo que tem sido até hoje. Se nada disto for feito, continuaremos a assistir à debandada do pessoal para o privado, ao paraíso dos seguros de saúde e à falta de bons cuidados de saúde a quem não tem dinheiro para tal. 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 de Outubro 2019

Sem comentários: