terça-feira, 3 de março de 2020

Cem anos depois, relembrar Weimar, república e cultura


Do Tratado de Versalhes que a Alemanha foi obrigada a assinar em Junho de 1919, fechando-se assim a chamada Primeira Guerra Mundial terminada em 1918 muito se tem dito, designadamente sobre as consequências pesadas para a Alemanha defendendo-se, com muitas razões, que a Grande Guerra que se lhe seguiu vintes anos depois, não foi mais que a continuação daquela. É mesmo possível detectar, aqui e ali, comentários que, de certa forma, parecem desculpabilizar o que se lhe seguiu, Hitler e o Nacional-Socialismo, como uma sequência histórica quase normal, por uma sua inevitabilidade.
Nada de mais errado. À derrota alemã, seguiu-se a queda da monarquia e eleição da Assembleia Constituinte alemã, logo em Janeiro de 1919, a que se seguiu a primeira experiência democrática alemã, a República de Weimar, declarada ainda nesse ano. Esta cidade da Turíngia tinha um passado cultural a que se podem associar nomes como Goethe, Schiller, Bach ou Liszt e havia-se tornado um pólo cultural de grande intensidade, em grande parte pelo classicismo que se deve àqueles e muitos outros artistas.
A partir de 1911 o arquitecto Walter Gropius reuniu uma plêiade de técnicos e artistas das mais variadas áreas na Escola de Artes e Ofícios de Weimar. Assim se desenvolveu um novo tipo de arquitectura que, à função restrita dos edifícios, associava conceitos de simplicidade e de depuração de formas, além da utilização de materiais que permitissem produção em larga escala, como o betão e o vidro para fachadas. De entre os muitos professores convidados podem citar-se Kandisky, Paul Llee ou Laszló Nagy, pelo que se percebe o nível e a sofisticação da investigação e do ensino da Escola. Em Abril de 1919 Walter Gropius publicou um manifesto que se considera como o início da Bauhaus, termo que inverte a palavra que, em alemão, significa «construção de casa» - «hausbau» e que só por si indica o que lá se praticava como inovação. Em 1925 a Escola foi transferida para Dessau e, por fim, para Berlim em 1930, tendo fechado definitivamente as portas em 1933, com a chegada dos nacional-socialistas de Hitler ao poder. Muitos professores e antigos alunos da Bauhaus espalharam-se pelo mundo inteiro, influenciando de forma radical a arquitectura e o design como fusão da arte e da função até aos nossos dias e vários edifícios nas cidades de Weimar e Dessau inspirados na Bauhaus são hoje classificados património mundial pela Unesco.
Enquanto toda esta actividade de vanguarda sucedia na Alemanha, no mesmo país nascia e crescia a verdadeira serpente do mal, o nacional-socialismo. A inflação dos anos vinte, associada ao peso dos castigos de guerra, a que se juntaram as trágicas consequências da «grande depressão» de 1929 criaram nas classes médias-baixas alemãs um sentimento de revolta receptivo aos populismos mais desenfreados A tudo isto Hitler e os seus apaniguados acrescentaram a invenção de um «culpado» genérico por tudo o que de mau acontecia, os judeus. Se nas eleições de 1928 o partido nazi conseguia apenas 2,6% dos votos, em Setembro de 1930 obteve já 18,3% dos votos tornando-se o segundo maior partido no Reichstag, depois do partido social-democrata SPD. Após um governo minoritário fraco e pressões de luta nas ruas, em novas eleições realizadas em Julho de 1932 o partido nazi obteve 37,4%, tornando-se no maior partido do parlamento. Em Janeiro de 1933 Hitler tomou posse como chanceler da Alemanha e, logo em 27 de Fevereiro seguinte dá-se o incêndio no Reichstag, oportunidade para Hitler suspender as liberdades civis e instaurar a ditadura, ditando assim o fim da República de Weimar que durou, portanto, escassos 11 anos
O que se passou a seguir é, infelizmente, bem conhecido de todos nós. Podia não ter acontecido assim, se a falta de coragem, a inércia e o oportunismo de muitos, da esquerda à direita, não tivessem deixado o campo livre à barbárie de um dos piores grupos de assassinos que o mundo já conheceu. Impressionante e perturbador é que, num país em que a Filosofia, o Direito, mas também as Artes, atingiram os píncaros das mais elevadas realizações humanas, tenham surgido as mais baixas pulsões que, a certa altura, tudo devoraram e destruíram. Isto aconteceu há cem anos. Desde então, têm sido construídas as mais variadas pontes entre povos com tratados, uniões, etc., com o objectivo de evitar repetições da História. Mas todos os dias vemos como a Democracia é um edifício frágil, atacado quer por dentro por oportunistas e corruptos vários, quer de fora através dos populismos mais descarados.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra, em 2 de Março de 2020

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