Começou, talvez, pela cultura. O pós-modernismo, ao tentar dar igual dignidade a todas as formas artísticas ou mesmo apenas a tentativas primárias de o fazer, apenas conseguiu baixar o nível geral da actividade artística. As formas de arte foram sendo paulatinamente substituídas pelo espectáculo com grandes públicos que aceitam acriticamente tudo o que lhes vendem como sendo moderno. O entretenimento colectivo e instantâneo substituiu a fruição das obras de arte que tantas vezes exige uma intimidade e mesmo conhecimento para uma mais completa percepção do que é apresentado, isto é, formação cultural. Duas formas artísticas resistiram a esta evolução porque exigem uma sequência na sua execução e na sua fruição, sejam notas ou letras, que são a música erudita e a literatura que assim fogem ao instantâneo fácil e imediato.
Depois, veio a comunicação social. A televisão ainda resistiu uns anos com uma informação profissional e credível associada a uma programação que incluía preocupações culturais com os espectadores, como emissão regular de teatro. Mas a necessidade absoluta de obter as audiências que garantem publicidade e as receitas que origina levou a uma alteração radical da emissão televisiva. Os programas do estilo “big brother” ou “casados à primeira vista” tornaram-se obrigatórios, bem como os de entretenimento que usam e abusam da apresentação de casos pessoais complicados que sendo felizmente raros, passam a parecer a normalidade da sociedade. Destes programas passou-se para a própria informação.
O surgimento de canais informativos que emitem 24 horas sobre 24 horas veio transformar tudo o que se refere à informação. Salta-se de uma notícia para outra num contínuo sem fim. As diversas estações correm em simultâneo para cobrir os acontecimentos, ou apenas o que se julga que o seja, pelo que passam todas a transmitir o mesmo, seja um acidente, seja um evento desportivo. O caricato atinge o paroxismo quando os veículos das diversas estações seguem em fila os autocarros em que as equipas de futebol se deslocam dos hotéis para os estádios onde vão jogar. Depois dos jogos é ver conjuntos de comentadores a discutir os pormenores dos jogos de forma inflamada em todas as estações, sem excepção. Ao verdadeiro espectáculo desportivo segue-se o espectáculo televisivo do comentário.
A discussão política seguiu o mesmo caminho e tornou-se um puro espectáculo para animar as massas, sem que se discutam os verdadeiros problemas do país e as formas concretas de os resolver. E os jornalistas deixaram-se levar na onda, sendo hoje impossível perceber onde acaba a informação e começa o comentário. Foi assim possível ver, na última campanha eleitoral, como um súbito problema menor de saúde de um líder partidário se transformou num verdadeiro espectáculo durante três dias. As estações televisivas não encontram melhor maneira de esquecer a informação e fazer espectáculo do que procederem como fazem com o futebol: seguirem em fila a ambulância que levou Ventura de Odemira ao hospital de Setúbal para realizar exames médicos. O que, eleitoralmente, só poderia resultar muito mais eficaz do que o jogo na praia de Montenegro ou os passeios de mota de Santos e do próprio Ventura.
Claro que o espectáculo promovido por políticos não é novo: basta lembrar Marcelo a nadar no Tejo ou Costa a organizar corridas entre um Ferrari e um burro. Toni Carreira a cantar em São Bento a comemorar o 25 de Abril fez-me lembrar um político que um dia, a um comentário meu, me garantiu que o povo quer é música pimba e não música clássica.
Nada disto nos deve causar surpresa. O que é novo é que o espectáculo deixou de animar a acção política, transformando-se ele mesmo na própria política. Claro que a substituição da cultura, da informação e da política pelo espectáculo do imediato, do efémero e do gosto abrutalhado só pode desembocar no populismo mais descarado.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Maio de 2025
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