Passaram há poucos dias 30 anos sobre a morte de Sá Carneiro. Muita gente falou sobre a sua obra, houve algumas cerimónias, publicaram-se livros e até se fala num novo processo de inquérito ao desastre de Camarate. Já tanto foi dito sobre a sua personalidade e vida, que não me vou debruçar sobre isso. O seu súbito desaparecimento teve no entanto uma consequência que é poucas vezes referida e que teve grandes implicações na vida nacional. Foi a primeira de uma série de orfandades do PSD (tantas, que mais parecem uma maldição ou uma autêntica síndrome).
De facto, após o 4 de Dezembro de 1980, o Governo da AD continuou em funções, com Pinto Balsemão à frente, por escolha interna do PSD. Independentemente das muitas qualidades de Balsemão, o Governo entrou quase imediatamente em desagregação e pouco mais tempo durou. No interior do PSD, e mesmo no Governo, outras individualidades acharam-se com mais qualidades e capacidades do que o Primeiro-Ministro e fizeram-lhe a vida negra, entregando rapidamente o poder ao PS. Começou aqui a série de orfandades do PSD.
Aos dez anos de governação de Cavaco Silva sucedeu-se o seu famoso abandono em 1995, e ao excelente e empenhado Fernando Nogueira coube o ingrato papel de levar a eleições o cavaquismo-sem-Cavaco, com os resultados que conhecemos. O PSD estava obviamente órfão de novo, com a agravante de estar órfão de alguém vivo e activo na sociedade, mas fora do PSD.
Ao pântano de Guterres, seguiu-se Durão Barroso que logo abandonou o Governo de Portugal para ir presidir à Comissão Europeia O PSD de então ficou outra vez órfão, decidindo entregar o lugar de Primeiro-Ministro a Santana Lopes, de forma orgânica e sem sanção eleitoral. Santana Lopes fez o que pôde naquelas condições. Rapidamente se percebeu que numa situação de aflição económica como a que se vivia, faltava àquele Governo a força que vem da legitimidade democrática das eleições para poder fazer as reformas que se impunham e logo o poder foi de novo para o PS. Até hoje, como bem se sabe. Desde aí, o partido continuou órfão, procurando sistemática e sucessivamente uma liderança que o libertasse dessa condição.
Parece um destino ao qual o PSD não consegue fugir: os seus líderes carismáticos saem dos lugares que ocuparam legitimamente por via eleitoral, sendo o poder entregue a quem previamente tinham escolhido para trabalharem com eles. A consequência desta passagem interna do poder foi sempre a mesma: nas eleições seguintes, lá volta o PS. De facto, o eleitorado tem uma intuição que escapa muitas vezes à teoria política. As eleições constituem cada vez mais uma escolha do líder e não das equipas, embora formalmente isso devesse ser assim apenas para o cargo uninominal de Presidente da República. Quando a transição de líderes não provoca eleições antecipadas, isto é, não devolve a voz ao eleitorado, os sucessores designados tendem a ter o seu destino marcado num futuro bem próximo, pese embora a sua grande qualidade política e capacidade de trabalho.
Resta o triste consolo de ver que o PSD não está sozinho neste hábito. Veja-se o que sucedeu a Gordon Brown após ter substituído Tony Blair à frente do Governo britânico: tendo aceitado o poder político sem eleições, Gordon Brown liderou os Trabalhistas para a derrota eleitoral.
A História ensina-nos muitas coisas. Aqui aprende-se que as orfandades que resultam de decisões unipessoais não dão bom resultado, e aprende-se ainda que o povo não perdoa aos que aceitam ficar “por nomeação”.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra de 13 de Dezembro de 2010