A espionagem rivaliza com outra atividade bem conhecida sobre a classificação de atividade mais velha do mundo, sendo que ambas concorrem ainda em muitos outros aspetos que ajudam na baixa consideração que o comum dos cidadãos tem por qualquer uma delas.
Em tempos de conflitos mais aguçados, como é o caso das guerras, percebe-se facilmente o papel precioso da chamada “informação”, sendo que nessas alturas a espionagem quase ganha foros de cidadania. Basta lembrarmo-nos da importância que o MI5 e o MI6 britânicos tiveram no desfecho da segunda guerra mundial e do trabalho tantas vezes heroico de homens e mulheres que frequentemente deram a própria vida na obtenção de segredos inimigos e na ajuda aos combatentes nas frentes de combate.
Também durante a chamada “guerra fria” a actividade da espionagem dos blocos ocidental e soviético foi extremamente intensa, constituindo frequentemente a ponta visível do iceberg que era a guerra surda que então se travava. Nos seus romances, John Le Carré descreveu como ninguém esse mundo subterrâneo e perigoso, onde não há amigos nem aliados. Mundo esse que não desapareceu após a queda do muro de Berlim, antes pelo contrário, apenas mudando os objetivos da atividade que, de uma forma evidente, passaram a ser muito mais económicos do que militares ou simplesmente políticos. Chegou-se a um ponto em que hoje se desconfia, com boas razões, que interesses económicos inconfessáveis terão levado comunidades de espionagem a montar um cenário artificial que enganou líderes políticos levando-os a decidir pela invasão do Iraque, com as consequências que todos bem conhecemos.
O desenvolvimento das comunicações e, em particular da internet, levou as capacidades da espionagem a um novo patamar anteriormente inimaginável. Deixou de ser necessário plantar os informadores no terreno, recorrendo-se à velha técnica das escutas, mas agora de uma forma completamente sistemática.
A legislação de proteção contra o terrorismo permitiu que nos EUA se desenvolvesse uma agência especializada na intercepção de mensagens, seja por telefone, por fax, por telemóvel ou por mensagem electrónica (e.mail), a NSA – Agência de Segurança Nacional.
Sabe-se agora que ninguém, mas mesmo absolutamente ninguém, em qualquer parte do mundo, está a salvo da NSA e das suas escutas. Data de 2006 um memorando em que a NSA solicitava à Casa Branca, ao Departamento de Estado e ao Pentágono que os seus oficiais lhe entregassem as listas de números de telefones de individualidades estrangeiras que possuíssem, com o objetivo de controlar as suas comunicações telefónicas e dos números contactados.
É assim que o telefone da própria chanceler alemã Angela Merkel foi sistematicamente objeto de escutas por parte da NSA, pelo menos nos últimos dez anos. Para além de Ângela Merkel, é provável que todos os líderes europeus sejam objeto desta atividade por parte dos americanos, para além de milhões de cidadãos anónimos por todo o mundo, como eu próprio e o leitor. Na última semana soube-se por exemplo que, só num mês, a NSA espiou mais de 60 milhões de chamadas telefónicas em território espanhol.
O número de líderes políticos que já protestaram contra as actividades da NSA continua a aumentar, abrangendo países como o Brasil, a Alemanha, a Espanha, a Itália e a França
A NSA tem mesmo utilizado os serviços de grandes empresas tecnológicas como a Yahoo, a Google e ainda dezenas de outras na análise de escutas, coordenação de agentes secretos e mesmo no controlo de aviões de guerra não pilotados, os drones.
A tecnologia não para no seu desenvolvimento e o mundo é cada vez mais uma aldeia global. Dever-se-ia exigir, de todos os governos, uma ação firme na rejeição de toda esta ação que mistura interesses privados com espionagem e mesmo guerra. Em causa está mesmo a continuação dos regimes democráticos, tal como hoje os conhecemos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Novembro de 2013