segunda-feira, 13 de outubro de 2014

VIDAS DE NÃO HÁ ASSIM TANTO TEMPO



“Senhora, o catcharro não tem água”.
A jovem professora levantou os olhos para o aluno que a interpelava, tentando interpretar o que ele lhe quereria dizer. O catraio da segunda classe estava de pé e olhava para ela com os seus grandes olhos aguardando pela resposta. Todos os outros alunos, meninos e meninas, se afadigavam a tentar fazer o que lhes tinha sido pedido.
Seriam uns trinta, distribuidos pelas quatro classes que, vá-se lá saber como, aprendiam em conjunto naquela sala pequena de uma escola primária de uma sala apenas e uma única professora. A professora olhava e via. Era a sua nova escola, onde iria certamente ensinar durante alguns anos. Via aqueles alunos que lhe tinham sido entregues para aprender a ler, a escrever e a fazer contas. Mas também para aprenderem História. E Geografia.E Ciências Naturais. E a viver em comunidade, começando por aquele pequeno mundo da escola.
Era o início de Outubro e já os frios começavam a chegar com as primeiras chuvas naquela aldeia perdida na Beira Alta, bem perto da Serra da Estrela de que ela tão bem conhecia as faldas viradas para a Cova da Beira. Pensou que nos próximos dias teriam que ir ao pinhal nos intervalos buscar pinhas, gravetos e ramos cortados para guardar no terreiro coberto. Não seria preciso ir muito longe; na realidade, a escola localizava-se na extremidade da aldeia, já praticamente dentro do pinhal. A salamandra que estava ali junto à parede teria que ser alimentada pelo combustível que ela e os meninos e meninas conseguissem armazenar, para que o frio do Inverno que se aproximava não lhes tolhesse os dedos de tal forma que não conseguissem escrever. No inverno a salamandra serviria também para aquecer o almoço que trazia de casa numa marmita, em vez do aquecedor a petróleo que por estes dias ainda estava a usar.

E olhava para os meninos da quarta classe. No fim do ano partiriam para a sua vida, sem mais aprenderem. Claro que iria fazer tudo para que pelo menos alguns prosseguissem os estudos no colégio da vila. As tardes dos domingos de Maio e Junho seriam boas para os levar para sua casa e os preparar melhor para o exame da quarta classe e, eventualmente, para o exame de aptidão ao liceu.E não lhes levaria dinheiro, mas oferecer-lhes-ia uns bolinhos e sumos para gostarem de passar as tardes de domingo a aprender.
“Senhora, o catcharro não tem água”, repetiu o garoto, olhando para a professora. Será que aquela senhora tão bonita, que diariamente vinha de carro da vila e que este ano era a professora deles, não o tinha ouvido? O pequeno vestido com umas calças bem coçadas e uma camisa xadrez aproveitada de outra anterior usada pelo pai não destoava dos companheiros e tinha os dedos bem negros pela ardósia e pelo lápis do mesmo material com que nela ia escrevendo letras e números. Vontade não lhe faltava para poder ir lá para fora brincar e apanhar míscaros à volta dos pinheiros, que já era o tempo deles. Mas a professora a que chamava senhora pareceu de repente ter dado pela pergunta pela primeira vez e perguntou-lhe onde estava o “catcharro”. O menino deixou a carteira e dirigiu-se para a pequena mesa no canto da sala, mostrando-lhe um recipiente que de facto não tinha água.

Afinal o “catcharro” era um púcaro de barro, daqueles colocados nos pinheiros para recolher a resina que saia dos cortes feitos no tronco. Ali dentro da sala de aulas tinham-lhe dado outra função. Era o depósito de água onde os alunos iam molhar o panito com que limpavam o que iam escrevendo nas suas lousas de ardósia negra. E o menino lá foi com o púcaro até à torneira do exterior enchê-lo de água. E a pequenada continuou a escrever e a limpar e a aprender tudo aquilo que uma única professora, numa impossibilidade tornada realidade lhes ia ensinando numa não muito remota aldeia portuguesa, numa década em que, antes que acabasse, o homem iria à Lua.
 Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 de Outubro de 2014 

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

PAISAGEM E ARQUITECTURA



Todos nós temos consciência clara de que o ambiente construído em que vivemos e que nos rodeia condiciona o modo como nos relacionamos entre nós e a nossa qualidade de vida. A sua importância é decisiva para o nosso futuro colectivo.
Ao longo dos séculos, o território foi-se organizando à velocidade dos tempos, havendo uma clara estratificação entre as povoações, cabendo às cidades maiores determinadas funções de nível superior fosse no ensino, na organização administrativa, de saúde, ou judicial. Cada uma dessas funções se ia depois distribuindo pelo território com níveis cada vez mais baixos pelas cidades não capitais de distrito, pelas vilas, pelas aldeias mesmo lugares. Havia um equilíbrio territorial quase que se diria natural.
Subitamente, tudo isso mudou, melhor dizendo, sofreu uma alteração radical. Essa alteração que, em quase todos os países da Europa se foi dando ao longo de parte do século XIX e em todo o século XX após a industrialização, aconteceu entre nós de forma quase abrupta, no último quartel do século XX, por razões que todos conhecemos.
De facto, nas últimas dezenas de anos assistimos a uma acentuada urbanização do país, que significou, em paralelo, um abandono dos campos. Toda esta movimentação humana, que ainda está em curso, traduz-se em alterações substanciais na paisagem, mas também na arquitectura entendida, para além dos edifícios em si, como a organização urbana, incluindo espaços públicos.

A expansão urbana destinada a acolher os novos moradores vindos de zonas rurais fez-se muitas vezes de forma caótica, com consequências sociais e económicas, mas alterando também significativamente a Paisagem e a Arquitectura. Enquanto os campos eram abandonados, perdendo mesmo a sua importância económica, as cidades cresceram desordenadamente, com custos sociais e económicos enormes, associados a uma necessidade de infraestruturar todas essas novas áreas urbanizadas. Em paralelo, assistiu-se a um abandono dos centros das cidades, com envelhecimento da população residente e desvalorização do edificado e do espaço público.
Nos últimos anos tem-se assistido a um esforço nas políticas de ordenamento do território, com vista a tentar “agarrar” muitas situações negativas e conseguir uma harmonização entre as diversas intervenções privadas e públicas, desde o nível nacional até ao nível local. Surgiram assim os planos regionais, os planos municipais e o documento nacional que deve servir de “chapéu” a todos eles, o Programa Nacional das Políticas de Ordenamento do Território – PNPOT. Mas, para além destes planos, há uma visão transversal a ter se queremos garantir uma qualidade ambiental a nível da paisagem incluindo o edificado, através da “salvaguarda e valorização dos recursos e do património natural, bem como do ordenamento racional e harmonioso do território na óptica do desenvolvimento e coesão territorial”.
O PNPOT previa já o desenvolvimento de uma Política Nacional de Arquitectura e Paisagem – PNAT, que até hoje ficou no esquecimento, apesar da sua reconhecida necessidade e mesmo urgência.
Finalmente foi elaborada e já apresentada a proposta de “Política Nacional de Arquitectura e Paisagem”, resultado do trabalho de uma equipa pluridisciplinar que associou representantes de diversos organismos oficiais com responsabilidades nesta área, mas também especialistas de reconhecido mérito e associações profissionais.
Esse documento está em consulta pública até ao fim deste mês no sítio http://www.portaldahabitacao.pt/pt/portal/PNAP/ bem merecendo a participação de especialistas, mas essencialmente de todos aqueles que percebem o que tem corrido mal nesta área e pugnam pelo desenvolimento sustentável, pela protecção da natureza e biodiversidade, pela reabilitação urbana, mas também pelo desenvolvimento rural e defesa do património cultural.
Publicado originalmente no Diario de Coimbra em 6 de Outubro 2014

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

REINDUSTRIALIZAÇÃO



Passam agora vinte anos sobre o célebre relatório Porter que, como acontece em Portugal com quase tudo o que é importante mas difícil, foi rapidamente esquecido, submerso na espuma dos dias da politiquice e da sistemática incapacidade portuguesa de olhar para longe e não perder o horizonte.
Dos onze clusters estratégicos apontados por Michael Porter, seis deles são hoje as áreas de actividade económica que mais contribuem para as nossas exportações: calçado, texteis, madeira e cortiça, vinho, turismo e automóvel. Não faz mal nenhum relembrar que os outros cinco eram a educação, capacidade de gestão, financiamentos, gestão florestal, ciência e tecnologia. Estes últimos sáo hoje considerados uma evidência, o que não impede, no entanto, que ainda tenhamos falhas graves em alguns deles, como sejam o financiamento e a capacidade de gestão das empresas. No que respeita aos seis clusters económicos, lembro-me bem de como certas elites deles desdenharam como pertencendo ao passado, apontando para os serviços como o nosso futuro, que a indústria era coisa do passado.

Nas três últimas décadas viu-se assim vencer a ideia de que o crescimento económico e correspondente emprego seria melhor conseguido através dos serviços, a que correspondeu a outra face da moeda, isto é, o abandono da indústria, bem como da agricultura e das pescas.
A desindustrialização verificada em Portugal, que acompanhou aliás o que sucedeu no resto da Europa (curiosamente com a excepção da Alemanha) é evidenciada pela queda do peso da indústria transformadora na riqueza e emprego em Portugal de 17,1% em 2000 para 14% em 2013, depois de um mínimo histórico de 12,6% em 2009. Para se perceber a ligação entre a redução da actividade industrial e as crises económicas e financeiras dos países do sul da Europa, basta notar que na Grécia o peso da actividade industrial no PIB passou entre 1995 e 2009 de 12,3 para 8,9%, na Itália de 21,5 para 15,8% e em Espanha de 18,5 para 12,3%. Já na Alemanha, a variação equivalente foi de 22,0 para 21,8%.
A continuidade da recuperação da actividade industrial que já se verifica é crucial para a sustentação das nossas contas externas através das exportações. De acordo com o governador do Banco de Portugal, a nossa economia só será saudável quando as exportações representarem mais de 65% do PIB, sendo em 2013 de apenas 40%.
Mas a reindustrialização não pode significar um regresso ao passado que já foi. Se as indústrias que anteriormente fugiram para a Ásia e que estão a regressar correspondem na realidade à nossa actividade industrial tradicional, o passo em frente tem que significar uma atitude diferente, baseada do conhecimento que se tem, mas adicionando-lhe valor acrescentado através de inovação e investigação que signifique produtos competitivos para exportar. A mudança necessária para que a inovação seja efectivamente produtiva é muito grande e as empresas industriais têm que ter consciência disso. Basta lembrar que, enquanto em Portugal 22% da investigação reside nas empresas, nos Estados Unidos esse valor é de 80%, mesmo sabendo-se o nível da investigação universitária naquele país.
Por outro lado, há em Portugal custos de contexto que nos últimos anos, mercê das estratégias seguidas pelos sucessivos governos, constituem uma canga pesadíssima para a indústria, limitando de forma grave a sua competitividade. Sabe-se que os custos energéticos representam mais de 30% dos custos de produção industrial, tendo Portugal o gás e a electricidade dos mais caros da Europa. As diferenças desfavoráveis a Portugal no custo energético das grandes empresas industriais chega a 10% relativamente a Espanha e 20% a França. O défice tarifário, consequência da liberalização do mercado, virá também a reflectir-se nas empresas industriais, diminuindo ainda mais a sua competitividade, pelo que a alteração radical da política energética actual é urgente e necessária.
O próximo Quadro de fundos europeus designado Portugal 2020 apresenta um levantamento de todos estes problemas, propondo respostas que parecem adequadas. Depois dos gastos tantas vezes disparatados em infraestruturas não indutoras de riqueza e tantas vezes redundantes, espera-se que desta vez seja a economia real e particularmente a indústria, a receptora dos fundos europeus, recuperando Portugal e os portugueses para um desenvolvimento sustentável que garanta um futuro melhor aos nossos filhos e netos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 29 Setembro 2014

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

NÃO

Mas alguém imaginou que o NÃO de Passos Coelho ao pedido de dinheiro de Salgado ficava por ali? Santa ingenuidade. Ainda há muito mais para ver à face da Terra.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

BES: OS DANOS COLATERAIS



As consequências económicas e financeiras do sucedido no BES ainda andam por aí e, ou muito me engano, ou ainda vão andar por muito tempo, tal é a dimensão do desastre. As ondas de choque entram pela economia dentro e abalam muitas empresas, como a PT e outras envolvidas em parcerias publico privadas cuja viabilidade é muito duvidosa sem a mão do Estado a ajudar.
Tudo isso é evidente e só podemos esperar que a competência técnica e vontade efectiva de sucesso das entidades envolvidas na solução encontrada venham, pelo menos, a minorar ao máximo as consequências nos bolsos dos portugueses.
Após a nacionalização em 1975, a família Espírito Santo só em 1991 voltou a tomar conta do seu antigo banco. Sabe-se agora pela voz de Mário Soares que foi ele próprio a pedir a “son ami “Miterrand que encontrasse em França quem emprestasse dinheiro à família Espírito Santo para poder ir à privatização do BES. E o Credit Agricole emprestou algumas dezenas de milhões de euros para o efeito que afinal, passados todos estes anos, ainda não lhe terão sido pagos.
Atendendo a tudo isto, a queda do BES e da família Espírito Santo, impensável há meia dúzia de meses tem consequências profundas na sociedade portuguesa, muito difíceis de avaliar ainda na sua completa extensão.

A destruição da confiança nas elites financeiras e sociais é obvia e imediatamente evidente. A família Espírito Santo era a única que em Portugal representava o restrito e socialmente longinquo mundo banqueiro internacional. O BES estava presente em praticamente todos os grandes negócios em Portugal e havia mesmo quem chamasse ao seu líder Ricardo Salgado o “Dono Disto Tudo”. As centenas de membros da família eram vistas como a elite das elites sociais, comportando-se-se alias como tal. O desmoronar do grupo económico e, fundamentalmente as razões para que tal tenha ocorrido, reflectem-se obviamente na consideração do português comum sobre as supostas elites sociais e económicas do país.
Mas esta não será a única consequência social e profundamente política deste caso. Nos últimos anos verificou-se, e bem, a abertura da actividade económica ao sector privado em todos os sectores da economia. Muita discussão política tem passado pela definição dos limites dessa abertura e da substituição do Estado pela actividade privada em determinadas áreas. À frente estão desde logo a Saúde e a Educação mas também outras áreas do chamado Estado Social. Se não está em causa a liberdade do sector privado concorrer com o Estado na oferta de serviços nessa área, o problema reside na possibilidade de encolher o papel do Estado nessas áreas devido à escassez de receitas fiscais face à despesa, contando-se que o mercado viesse suprir sem problemas essa diminuição do papel do Estado. O que a crise do GES vem mostrar a toda a gente, ainda que muitos não o reconheçam explicitamente, é que boa parte da nossa elite empresarial não está preparada para assumir responsabilidades sociais. Se ser liberal em Portugal é ainda hoje uma miragem, isso deve-se em boa parte aos comportamentos daqueles que, precisamente, deviam demonstrar o contrário. E devemos todos pensar nos mais desfavorecidos cuja segurança mínima deve ser garantida pelo Estado. Com lideres empresariais que “retiram” fundos das empresas para si próprios de todas as maneiras e feitios, mesmo as mais sofisticadas, ninguém de bom senso lhes pode confiar o que tem que ser socialmente garantido para todos. É evidente que seria injusto concluir que todos, ou mesmo a maioria dos empresários portugueses actuam desta forma. Mas quando se descobre que a elite das elites o faz de uma forma despudorada, a confiança na actividade económica privada é a primeira vítima.
Podem estas consequências ser consideradas como danos colaterais de um problema meramente económico e financeiro. Desconfio, no entanto, que agirão sobre os portugueses de uma forma muito mais profunda e duradoura do que a questão financeira que, de uma forma ou de outra, acabará sempre por ter solução.

 Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de setembro de 2014