“Senhora, o catcharro não tem água”.
A
jovem professora levantou os olhos para o aluno que a interpelava, tentando
interpretar o que ele lhe quereria dizer. O catraio da segunda classe estava de
pé e olhava para ela com os seus grandes olhos aguardando pela resposta. Todos
os outros alunos, meninos e meninas, se afadigavam a tentar fazer o que lhes
tinha sido pedido.
Seriam
uns trinta, distribuidos pelas quatro classes que, vá-se lá saber como, aprendiam
em conjunto naquela sala pequena de uma escola primária de uma sala apenas e
uma única professora. A professora olhava e via. Era a sua nova escola, onde
iria certamente ensinar durante alguns anos. Via aqueles alunos que lhe tinham
sido entregues para aprender a ler, a escrever e a fazer contas. Mas também
para aprenderem História. E Geografia.E Ciências Naturais. E a viver em comunidade,
começando por aquele pequeno mundo da escola.
Era
o início de Outubro e já os frios começavam a chegar com as primeiras chuvas
naquela aldeia perdida na Beira Alta, bem perto da Serra da Estrela de que ela
tão bem conhecia as faldas viradas para a Cova da Beira. Pensou que nos
próximos dias teriam que ir ao pinhal nos intervalos buscar pinhas, gravetos e
ramos cortados para guardar no terreiro coberto. Não seria preciso ir muito
longe; na realidade, a escola localizava-se na extremidade da aldeia, já
praticamente dentro do pinhal. A salamandra que estava ali junto à parede teria
que ser alimentada pelo combustível que ela e os meninos e meninas conseguissem
armazenar, para que o frio do Inverno que se aproximava não lhes tolhesse os
dedos de tal forma que não conseguissem escrever. No inverno a salamandra
serviria também para aquecer o almoço que trazia de casa numa marmita, em vez do
aquecedor a petróleo que por estes dias ainda estava a usar.
E
olhava para os meninos da quarta classe. No fim do ano partiriam para a sua
vida, sem mais aprenderem. Claro que iria fazer tudo para que pelo menos alguns
prosseguissem os estudos no colégio da vila. As tardes dos domingos de Maio e
Junho seriam boas para os levar para sua casa e os preparar melhor para o exame
da quarta classe e, eventualmente, para o exame de aptidão ao liceu.E não lhes
levaria dinheiro, mas oferecer-lhes-ia uns bolinhos e sumos para gostarem de
passar as tardes de domingo a aprender.
“Senhora, o catcharro não tem água”,
repetiu o garoto, olhando para a professora. Será que aquela senhora tão
bonita, que diariamente vinha de carro da vila e que este ano era a professora
deles, não o tinha ouvido? O pequeno vestido com umas calças bem coçadas e uma
camisa xadrez aproveitada de outra anterior usada pelo pai não destoava dos
companheiros e tinha os dedos bem negros pela ardósia e pelo lápis do mesmo
material com que nela ia escrevendo letras e números. Vontade não lhe faltava
para poder ir lá para fora brincar e apanhar míscaros à volta dos pinheiros,
que já era o tempo deles. Mas a professora a que chamava senhora pareceu de
repente ter dado pela pergunta pela primeira vez e perguntou-lhe onde estava o
“catcharro”. O menino deixou a carteira e dirigiu-se para a pequena mesa no
canto da sala, mostrando-lhe um recipiente que de facto não tinha água.
Afinal
o “catcharro” era um púcaro de barro, daqueles colocados nos pinheiros para
recolher a resina que saia dos cortes feitos no tronco. Ali dentro da sala de
aulas tinham-lhe dado outra função. Era o depósito de água onde os alunos iam
molhar o panito com que limpavam o que iam escrevendo nas suas lousas de
ardósia negra. E o
menino lá foi com o púcaro até à torneira do exterior enchê-lo de água. E a
pequenada continuou a escrever e a limpar e a aprender tudo aquilo que uma
única professora, numa impossibilidade tornada realidade lhes ia ensinando numa
não muito remota aldeia portuguesa, numa década em que, antes que acabasse, o
homem iria à Lua.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 de Outubro de 2014
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