Entre as
profundas desestruturações da actual sociedade portuguesa, a do tratamento que
dá à sua metade feminina será certamente uma das mais graves.
Aquilo
que dantes sucedia e era escondido surge hoje à luz do dia e não é bonito de se
ver. Mas haverá também situações relacionadas com a actual evolução social e
económica que não ficarão atrás daquelas, pela sua gravidade e implicações a
nível do futuro da própria sociedade.
Há
poucos dias, bem perto de nós, um homem com formação superior não encontrou
melhor solução para resolver os seus problemas de ciúme do que matar a mulher e
as duas filhas à facada. Por mero acaso, uma das filhas sobreviveu. Mais um
daqueles casos que comummente se designam como crimes de coração, como se tal
tivesse algo a ver com o amor e não apenas com violência pura, associada com o
pior sentimento que alguém pode ter, que é o da posse de outrém.
Esta
tragédia não foi um caso isolado em Portugal, mas mais um de tantos que acontecem
em Portugal, que mais parece uma epidemia. Basta dizer que, só este ano, já
morreram 30 mulheres em Portugal, vítimas de violência doméstica por parte de
maridos ou companheiros, a que se juntam mais 37 que sobreviveram a tentativas
de homicídio do mesmo tipo. Não se pense que este tipo de situações é exclusivo
de extratos sociais mais dependentes ou desfavorecidos. Se pensarmos um pouco,
não será difícil lembrarmo-nos de casos de violência doméstica que se passaram ou
passam com pessoas com formação do mais alto nível, socialmente bem inseridas,
sem dificuldades económicas e até com responsabilidades sociais relevantes.
Embora a sociedade continue a tender a manter subterrâneos muitos destes casos
que só emergem quando já não há hipóteses de continuarem escondidos, a Justiça
começa finalmente a mover-se. É assim que está a organizar-se para ter uma
atitude mais activa do ponto de vista preventivo, apoiando as vítimas durante
os processos de violência doméstica antes que tenham consequências
irreversíveis e perseguinndo e castigando os causadores dessas situações.
Tudo
isto é muito antigo e relacionado com o papel social inferior e submisso historicamente
reservado às mulheres, que entra em choque com a sua libertação social,
profissional e, acima de tudo, pessoal. As contradições sociais ficaram bem
patentes num recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que reduziu fortemente
a indemnização devida a uma doente pelas consequências de uma operação
cirúrgica que correu mal, com a justificação de que aos cinquenta anos a sexualidade não tem a
importância que assume em idades mais jovens. Claro que se tratava de uma
mulher e suspeita-se que se fosse homem a decisão seria certamente outra como o
mostram aliás, casos semelhantes anteriores, o que corresponde a uma clara
desvalorização da sexualidade feminina face à masculina.
Mas
outras situações têm sido denunciadas e têm a ver com a relação das empresas
com a mulher e, em particular, com a maternidade. Uma reportagem do jornal
Expresso descobriu mulheres altamente qualificadas que foram despedidas por
engravidarem, outras pressionadas fortemente no sentido de não ter filhos
havendo mesmo mulheres despedidas através do expediente legal da extinção do
posto de trabalho. Há casos concretos em que os chefes pura e simplesmente não
gostam de trabalhar com grávidas e em que se descontam dias de trabalho pelas
idas às necessárias consultas. O caso da enfermeira num IPO que pediu para
mudar de serviço e deixar de trabalhar na sala de tratamentos porque queria
tentar engravidar e foi sujeita a perguntas abusivas e intoleráveis sobre o seu
ciclo menstrual, se já estava grávida etc., acabando por ter estado dez dias a
trabalhar onde não devia é exemplar da falta de respeito pela Mulher, mesmo por
um serviço de saúde do Estado.
A
natalidade em Portugal é hoje a mais baixa da Europa, invertendo as pirâmides
etárias com as consequências sociais e económicas que se conhecem e colocando
mesmo em risco a renovação social. E há claramente razões para isso. A resposta
política tem de ser abrangente, desde a organização económica e empresarial até
ao apoio claro às mães com crianças pequenas. Não basta discriminar
positivamente as famílias numerosas em termos fiscais. É às mães todas, ainda
que tenham apenas um ou dois filhos, que é necessário e mesmo urgente criar
condições para que criem os seus filhos em situação de tranquilidade e
estabilidade (proporcionando carinho), exactamente o contrário do que tem sido
feito ao longo de muitos anos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 Outubro 2014