segunda-feira, 27 de outubro de 2014

MULHERES: ESTE PAÍS NÃO É PARA ELAS



Entre as profundas desestruturações da actual sociedade portuguesa, a do tratamento que dá à sua metade feminina será certamente uma das mais graves.
Aquilo que dantes sucedia e era escondido surge hoje à luz do dia e não é bonito de se ver. Mas haverá também situações relacionadas com a actual evolução social e económica que não ficarão atrás daquelas, pela sua gravidade e implicações a nível do futuro da própria sociedade.
Há poucos dias, bem perto de nós, um homem com formação superior não encontrou melhor solução para resolver os seus problemas de ciúme do que matar a mulher e as duas filhas à facada. Por mero acaso, uma das filhas sobreviveu. Mais um daqueles casos que comummente se designam como crimes de coração, como se tal tivesse algo a ver com o amor e não apenas com violência pura, associada com o pior sentimento que alguém pode ter, que é o da posse de outrém.
Esta tragédia não foi um caso isolado em Portugal, mas mais um de tantos que acontecem em Portugal, que mais parece uma epidemia. Basta dizer que, só este ano, já morreram 30 mulheres em Portugal, vítimas de violência doméstica por parte de maridos ou companheiros, a que se juntam mais 37 que sobreviveram a tentativas de homicídio do mesmo tipo. Não se pense que este tipo de situações é exclusivo de extratos sociais mais dependentes ou desfavorecidos. Se pensarmos um pouco, não será difícil lembrarmo-nos de casos de violência doméstica que se passaram ou passam com pessoas com formação do mais alto nível, socialmente bem inseridas, sem dificuldades económicas e até com responsabilidades sociais relevantes. Embora a sociedade continue a tender a manter subterrâneos muitos destes casos que só emergem quando já não há hipóteses de continuarem escondidos, a Justiça começa finalmente a mover-se. É assim que está a organizar-se para ter uma atitude mais activa do ponto de vista preventivo, apoiando as vítimas durante os processos de violência doméstica antes que tenham consequências irreversíveis e perseguinndo e castigando os causadores dessas situações.
Tudo isto é muito antigo e relacionado com o papel social inferior e submisso historicamente reservado às mulheres, que entra em choque com a sua libertação social, profissional e, acima de tudo, pessoal. As contradições sociais ficaram bem patentes num recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que reduziu fortemente a indemnização devida a uma doente pelas consequências de uma operação cirúrgica que correu mal, com a justificação de que aos cinquenta anos a sexualidade não tem a importância que assume em idades mais jovens. Claro que se tratava de uma mulher e suspeita-se que se fosse homem a decisão seria certamente outra como o mostram aliás, casos semelhantes anteriores, o que corresponde a uma clara desvalorização da sexualidade feminina face à masculina.
Mas outras situações têm sido denunciadas e têm a ver com a relação das empresas com a mulher e, em particular, com a maternidade. Uma reportagem do jornal Expresso descobriu mulheres altamente qualificadas que foram despedidas por engravidarem, outras pressionadas fortemente no sentido de não ter filhos havendo mesmo mulheres despedidas através do expediente legal da extinção do posto de trabalho. Há casos concretos em que os chefes pura e simplesmente não gostam de trabalhar com grávidas e em que se descontam dias de trabalho pelas idas às necessárias consultas. O caso da enfermeira num IPO que pediu para mudar de serviço e deixar de trabalhar na sala de tratamentos porque queria tentar engravidar e foi sujeita a perguntas abusivas e intoleráveis sobre o seu ciclo menstrual, se já estava grávida etc., acabando por ter estado dez dias a trabalhar onde não devia é exemplar da falta de respeito pela Mulher, mesmo por um serviço de saúde do Estado.
A natalidade em Portugal é hoje a mais baixa da Europa, invertendo as pirâmides etárias com as consequências sociais e económicas que se conhecem e colocando mesmo em risco a renovação social. E há claramente razões para isso. A resposta política tem de ser abrangente, desde a organização económica e empresarial até ao apoio claro às mães com crianças pequenas. Não basta discriminar positivamente as famílias numerosas em termos fiscais. É às mães todas, ainda que tenham apenas um ou dois filhos, que é necessário e mesmo urgente criar condições para que criem os seus filhos em situação de tranquilidade e estabilidade (proporcionando carinho), exactamente o contrário do que tem sido feito ao longo de muitos anos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 Outubro 2014

Sem comentários: