África é
hoje um continente em fuga. Em fuga para a Europa, que é o destino que está
mais próximo, para além do médio-oriente asiático, de onde também muitos fogem
às centenas de milhares, como é o caso da Síria. A tragédia que se passa há
anos no Mediterrâneo não é, ao contrário do que muitos julgam, apenas o
resultado das chamadas primaveras árabes tão enternecidamente recebidas no
ocidente e que resultaram, como se verifica na Líbia e no Egipto, em regimes
piores do que os anteriores ou mesmo em regimes nenhuns.
As costas
africanas do Mediterrâneo são o ponto final de viagens longas, com origens bem
distantes, como sejam a Eritreia, a Somália, a Gâmbia, a Nigéria, o Senegal, o
Mali e claro, a própria Líbia. Os emigrantes africanos percorrem milhares de
quilómetros até chegarem às margens do Mediterrâneo, sabendo que do lado de lá
está a almejada Europa. Já pagaram imenso dinheiro aos traficantes que os
levaram até ali, garantindo-lhes chegar até à terra prometida. Para fazer a
travessia até à ilha próxima de Lampedusa, à Sicília ou sul de Itália ou de
Espanha, os negreiros dos nossos dias, que ganham fortunas com esta actividade,
metem-nos em embarcações sobrelotadas, sem as mínimas condições de segurança,
para não falar dos “luxos” da salubridade.
Desde o
início deste ano, estima-se que mais de 26.000 migrantes tenham entrado em
Itália, número semelhante ao dos primeiros quatro meses de 2014. No entanto,
enquanto nesse mesmo período do ano passado morreram nesta travessia menos de
100 pessoas, este ano esse número já ultrapassou os 1.700, uma tragédia
gigantesca. A Itália, que assegurava por si própria a intercepção naval das
embarcações com os migrantes através da operação Mare Nostrum, conseguiu
embarcar nos seus navios mais de 140.000 pessoas entre Outubro de 2013 e
Outubro de 2014. Essa operação foi substituída por uma outra coordenada pela
União Europeia, com os maus resultados que se veem hoje, estando preparada uma
nova operação a partir de Junho que tentará destruir as embarcações dos
contrabandistas onde elas se encontrarem, a fim de evitar a sua utilização com
este fim.
Este mar
de gente a sair de África foge a situações bem concretas e conhecidas, como a
pobreza extrema, a fome, a guerra, a violência quotidiana e os mais diversos
tipos de perseguição que grassam nos seus países.
Herança
certamente ainda dos tempos coloniais, muitos europeus possuem uma visão
romântica de África, falando frequentemente dos por-do-sol vermelhos, do cheiro
da terra, do exotismo das paisagens e dos animais selvagens enfim, de uma
natureza diferente e apelativa. Mas não se fala da desgraça dos povos
abandonados a si próprios após o fim da guerra fria. De vez em quando mandam-se
para lá jipes e carrinhas com umas coisas – migalhas para países de um continente
inteiro em sofrimento - e fica-se com a consciência menos pesada. Permitimos e
até apoiamos cleptocracias erigidas em governos e permitimos todo o horror que
se passa permanentemente da Nigéria à Eritreia.
Hoje em dia, até os desgraçados
dos moçambicanos que trabalham pacificamente na África do Sul são chacinados à
catanada por motivos rácicos. Perante isto que faz a ONU? Os países que autorizam
e até promovem toda esta situação continuam a ser membros de pleno direito, sem
qualquer sanção. Recordamos, e bem, os mortos de Auschwitz, Treblinka e Gulags
como exemplos do que não se pode repetir, mas no fundo falamos do nosso próprio
passado europeu, calando o que se passa hoje sob os nossos olhos no continente
que explorámos durante centenas de anos.
Os
africanos fogem em massa de um continente onde quase tudo está errado e onde,
em muitos países, não estão minimamente garantidas as condições básicas de
sobrevivência e segurança. A tragédia humana que se passa no Mediterrâneo é
apenas o que se vê de um iceberg dantesco do tamanho de um continente. A nossa
sensibilidade é agitada pelas imagens terríveis dos barcos apinhados de
fugitivos e dos corpos resgatados de pessoas afogadas aos milhares, e este problema
concreto tem de ser resolvido de imediato, mas que o mundo não continue a
ignorar o que se passa no continente africano, isso sim, uma tragédia a nível
planetário.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 de Maio de 2015