segunda-feira, 29 de outubro de 2018

MEMÓRIAS E NERVOS À FLOR DA PELE




Em muitos países democráticos existe a tradição de os dirigentes políticos, após o exercício de funções de grande relevância, escreverem as suas memórias em que descrevem factos passados, o relacionamento com outros agentes e os sentimentos perante as situações que viveram.
Entre nós, não se tornou ainda habitual que os dirigentes políticos escrevam as suas memórias. Eventualmente, como fez o antigo Presidente Jorge Sampaio, participam na elaboração das suas biografias, através da colaboração de terceiros. Contudo, temos que convir na grande diferença entre a autoria de memórias na primeira ou na terceira pessoa.
Podemos atribuir esta situação portuguesa a várias causas, desde pessoais a sociológicas. Na realidade, não será fácil passar toda uma vivência pessoal ao papel, o que exige a tomada permanente de notas durante o exercício do cargo e uma posterior disponibilidade pessoal para assumir a tarefa dessa escrita, que dá muito trabalho. Também é bem conhecida, entre nós, a inexistência de uma cultura de avaliação do trabalho feito, mesmo de prestação de contas de dirigentes como é um facto corrente nos países de cultura anglo-saxónica. Por outro lado, há altos responsáveis políticos que afirmam não escrever memórias para preservar o presente e o próprio futuro, já que a sua acção se verificou em tempos tão conturbados que o conhecimento de alguns factos poderia ser desestabilizador. É o caso de Ramalho Eanes, cuja presidência ainda coincidiu com o PREC e também com os primeiros tempos de normalização democrática. Penso, no entanto, que ficamos todos a perder com isso, embora Eanes esteja no seu pleno direito ao tomar essa posição.

A excepção portuguesa notória é Cavaco Silva. Publicou as suas memórias de quando foi Primeiro-ministro e acaba agora de publicar o segundo volume sobre o seu exercício da presidência da República. Os motivos para essa publicação são assumidos pelo próprio como uma exigência ética pessoal de prestação de contas à boa maneira anglo-saxónica. Eu acrescentarei que, em minha opinião, um dirigente político tão atacado como ele sempre foi, à esquerda e mesmo à direita, não quis deixar passar a oportunidade de fornecer, para memória futura, a “sua verdade” sobre esses tempos. Se não o fizesse, correria o risco de, no futuro longínquo e mesmo próximo, a sua acção vir a ser descrita apenas pelo que dele dizem os seus adversários, passando ao lado daquilo que ele, eventualmente, achasse que seria mais justo dizer.
Mas não me lembro de que a publicação de um livro de memórias políticas tenha provocado de imediato tantas reações negativas, mais parecendo mesmo ter caído o Carmo e a Trindade. Qual o motivo imediato de tanta contestação? Falta de sentido de Estado, denuncia Carlos César que acrescenta: “mostra atitude de devassa e delação presidencial”. César confessa assim não ter gostado da revelação de situações descritas por Cavaco relativas às reuniões semanais dos primeiros-ministros socialistas com Cavaco Silva, enquanto presidente da República. Parece considerar essas reuniões como se se tratasse de conversas entre amigos à mesa do café e não relações institucionais entre Governo e presidência da República, logo de extrema responsabilidade. Já António Costa diz que não comenta memórias presidenciais, porque tem sentido de Estado. E lá vem outra vez o sentido de Estado que passa assim a ser como a água benta: cada um toma a que quer. Depois, acrescentou-se que o período de tempo a que este volume se refere ainda é muito recente, pelo que o autor deveria deixar passar mais uns anos; a esta crítica quase apetece responder que depois de morto ninguém escreve memórias.
É evidente que o autor destas memórias continua a suscitar uma rejeição profunda por parte de determinados sectores da sociedade portuguesa. Não por acaso, são os mesmos que por ele foram impiedosamente derrotados nas urnas em três eleições legislativas, sendo duas delas com maioria absoluta e duas eleições presidenciais à primeira volta. Claro que também perdeu umas presidenciais, mas das derrotas não reza a História, como se sabe. E, como se costuma dizer, o povo, em quem reside a legitimidade democrática, tem sempre razão quando vota, quer nas suas escolhas, quer nas suas rejeições.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

DEMOCRACIA NEGATIVA



É uma evidência que salta aos nossos olhos: os regimes democráticos, tal como os conhecemos, passam por transformações profundas que poderão mesmo vir a colocá-los em questão.
Não me refiro a aspectos pontuais em que políticos mais ou menos conspícuos se servem de mentiras camufladas ou mesmo descaradas para justificarem as suas actuações. Tal sempre houve em todas as sociedades e, perdoe-se-me o pessimismo, sempre haverá. Tal como é de todos os tempos a capacidade de dizer mal dos adversários, inventando mesmo mentiras sobre eles.
Mas os regimes democráticos têm como substância a possibilidade de o povo escolher entre as diversas opções que lhe são propostas na altura das eleições. As campanhas com os programas e os candidatos permitem aos eleitores perceber quem lhes convém, de acordo com os seus interesses. Estes até poderão ser diferentes entre os mais diversos sectores sociais, e são-no normalmente, permitindo o resultado global atribuir as funções governativas da comunidade como um todo às maiorias que se possam constituir ou ao candidato que recolher mais votos, no caso de candidaturas individuais.
Contudo, nos últimos anos assiste-se, um pouco por todo o mundo, a uma mudança neste paradigma democrático que está a produzir resultados inesperados e a causar espanto em quem não percebe o que se passa e que, na realidade, é tantas vezes responsável pela mudança. As razões poderão ser muitas, desde o fim do mundo bipolar em que duas potências dominavam completamente as suas respectivas áreas de influência até à globalização, passando pelas profundas mudanças trazidas pela tecnologia da informação. O que é visível é uma crescente fuga dos eleitorados para os extremos políticos, abandonando um centrismo que é sempre algo conservador e que, pelo menos na minha opinião, durante décadas foi gerador de uma prosperidade generalizada sem paralelo na História.
A sociedade passou a dividir-se entre bons e maus, para além das clássicas diferenças entre esquerdas e direitas. Perante as mais diversas situações, criam-se ondas de indignação e campanhas mediáticas instantâneas que a internet se encarrega de transformar em manifestações à escala global. E ninguém tem capacidade para colocar os factos que deram origem a essas ondas de indignação em questão porque ninguém quer ficar do “lado dos maus”, abandonando-se a razão e mesmo o bom-senso. A sociedade mundial é hoje, mais do que uma sociedade da informação, uma sociedade da indignação. O “somos todos Charlie” ou “me-too” são apenas exemplos dessas vagas que tantas vezes acabam por engolir, levar na frente e destruir os próprios que lhes deram origem.

E tudo isto se transferiu para as democracias. Vimos este fenómeno nos Estados Unidos da América nas últimas eleições presidenciais e também no referendo do Reino Unido que deu origem ao Brexit. Nas eleições presidenciais no Brasil a demonização do adversário atinge níveis nunca vistos. Chega-se a afirmar que não interessa quem está com quem e o que fez, mas sim impedir que o adversário vença, e não estou aqui a defender ou atacar seja quem for em concreto, mas apenas a descrever o que se passa, como exemplo das mudanças a que assistimos em todo o mundo.
As discussões políticas transferiram-se do campo das ideias para o campo da moral, em que sistematicamente cada lado extremado se arroga de superioridade nessa matéria. Como sabemos da História, sempre que alguém, de esquerda ou de direita, se arroga de superioridade moral e chega ao poder, quem fica a perder é a Liberdade.
Os resultados estão à vista e não são animadores para quem acredita no valor da Democracia. Quem sai sistematicamente vencedor destas lutas são populistas que defendem velhas ideias que ressumam nacionalismos, xenofobias e mesmo racismos, aproveitando-se oportunisticamente dos medos que eles próprios fomentam e a tecnologia difunde. Num futuro próximo, estes vencedores até poderão dar a ideia de que continuam a respeitar os cânones democráticos mas, na realidade, os regimes aproximar-se-ão cada vez mais de fachadas normalizadas de sistemas destruidores da cidadania e da liberdade.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

HONRA, DESONRA, LEALDADE, FALSIDADE



A ópera bufa a que os portugueses têm sido obrigados a assistir e que se chama “furto de Tancos” é, como tantas vezes sucede nas peças de teatro, mesmo aquelas que à superfície parecem ligeiras, um mergulho nas profundezas de uma sociedade, no caso a portuguesa de 2018. Tem-nos sido dado a observar a mais completa inexistência de valores que é suposto serem a base de funcionamento de qualquer sociedade. E isto, no núcleo central do último reduto da defesa da soberania, que são as Forças Armadas. Um caso que à partida teria uma gravidade limitada veio a ter desenvolvimentos complexos, envolvendo oficiais das mais altas patentes, até chegar ao próprio gabinete do ministro da Defesa que acabou por se demitir. Há Majores, Coronéis e Generais a desmentirem-se mutuamente, a apresentarem relatos contraditórios e documentos por assinar, enquanto as chefias máximas militares se encolhem.
Claro que a situação política e o próprio ambiente social do país não são inseparáveis de tudo o que se está a ver. Não vale a pena espantarmo-nos se o deslaçar da sociedade que se observa um pouco por todo o lado tiver também já corroído alguns sectores das Forças Armadas, precisamente aqueles que estão em contacto directo com o Governo.
É que as coisas estão muito mais ligadas do que às vezes possa parecer. O país tem assistido a uma encenação directamente decorrente da solução governativa saída das eleições de 2015. Pela primeira vez na democracia portuguesa, quem ganhou as eleições não formou governo, tendo o partido Socialista criado uma disrupção política ao formar um Governo minoritário com o apoio parlamentar dos partidos mais à esquerda, contrariando tudo o que se afirmara até então. A solução, que é evidentemente legítima, democrática e constitucional, introduziu contudo uma forma de governar que, se muitos consideram hábil, mais não é do que um jogo de espelhos em que os três partidos que sustentam o governo vão dançando as suas próprias danças, juntando-se no momento da aprovação dos Orçamentos de Estado.

E os enganos constituíram-se assim na essência da governação. Desde que o primeiro Orçamento de 2016 voltou para trás da Comissão Europeia, o Governo mudou em 180º o rumo que tinha sido definido pelo PS nas eleições e assumiu o cumprimento dos critérios orçamentais ditados pela União Europeia. Claro que, perante essa mudança, Wolfgang Schauble (lembram-se dele?) e o BCE prestaram toda a ajuda preciosa no controlo das taxas de juro. A execução dos orçamentos seguintes veio mostrar como esses objectivos foram conseguidos: queda abrupta no investimento público, cativações um pouco por todas áreas governativas e uma carga fiscal inaudita baseada essencialmente em impostos indirectos a que ninguém pode fugir. A aprovação dos orçamentos é um momento de superior hipocrisia política, porque já se sabe que a taxa de execução do investimento previsto dificilmente superará os 50% e a libertação das cativações previstas dependerá apenas da aproximação do objectivo do défice e não das necessidades do país. E mesmo o proclamado grande crescimento da nossa economia afinal nunca passa além de ser dos mais fracos da União Europeia.
Perante toda esta realidade, que desmente a retórica governativa, os partidos da esquerda parlamentar calam-se e consentem inclusivamente a degradação generalizada nos serviços públicos. Situação que alguém terá que inverter num dia destes, à custa de dinheiro que não existe, a não ser com aumento da dívida pública que, essa, continua a níveis estratosféricos.
Em política as atitudes têm consequências que vão muito além do que às vezes se imagina. As pessoas comuns apercebem-se perfeitamente do ambiente hipócrita de enganos e fantasias criado no país, origem de um sentimento generalizado de apatia e indiferença. Não será por acaso que nos últimos dias se soube que Portugal surge na quinta posição entre os países mais corruptos. E sabe-se que de um ambiente de falsidade generalizada nunca surgiu nada de bom; antes pelo contrário, é o terreno fértil para o germinar de nacionalismos e surgimento de “salvadores providenciais”, tantas vezes trazidos pelos próprios votos da democracia.

sábado, 13 de outubro de 2018

As ministras

Azeredo Lopes foi-se embora do Ministério da Defesa. Em boa verdade, já só ocupava o cargo sem exercer, há muito tempo.
Agora, as expressões das duas ex-colegas de Governo na sua última aparoção pública como tal são um tratado.

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

COIMBRA, CAPITAL DE



O título desta crónica vai propositadamente inconclusivo, oferecendo a quem a lê a hipótese de colocar o remate que achar mais adequado.
Na realidade Coimbra já foi capital de muitas coisas e pretendeu ser de outras tantas. Foi, imagine-se, a primeira capital de Portugal, a Cidade onde o nosso primeiro Rei estabeleceu a sua Corte e onde vieram a nascer quase todos os reis da Dinastia que fundou.
Durante séculos Coimbra foi a verdadeira “Capital do Conhecimento” por nela se localizar a única Universidade do país. Por isso se diz que era também a Capital da Língua Portuguesa, onde aprendiam todos os doutores ou bacharéis que se espalhavam posteriormente pelo mundo, difundindo o conhecimento adquirido em Coimbra.
Foi capital de Distrito até essa divisão territorial e política desaparecer, para ser integrada numa Região Centro de que os mais diversos poderes sempre impediram que fosse capital, o que faria todo o sentido para bem de Coimbra e da própria região que não apresenta mais nenhuma cidade de dimensão média. Também não é capital da Região de Turismo em que se insere, nem lhe empresta o nome ou a sede.

Alguém sonhou que fosse Capital da Saúde, o que não sucedeu e está cada vez mais longe da realidade. Quando ouvi um antigo ministro da Saúde cá em Coimbra afirmar que a nossa cidade tinha uns HUC com uma dimensão que não se justificava e que ainda por cima existia do outro lado do Mondego o Hospital dos Covões também plenamente utilizado, o que era algo que já tinha desistido de entender, antevi o que hoje é já a plena e triste realidade. O Parque Tecnológico que era para ser também da Saúde é hoje uma pálida imagem do que poderia ter sido.
É, contudo, capital de obras e projectos inacabados. Sobre o Metro Mondego a que os governantes até em tempos deram a pomposo designação de Plano de Mobilidade do Mondego não é preciso grandes considerações face à vertiginosa descida de expectativas que, com sorte, ainda terminarão com mais uns autocarros sem via dedicada. A auto-estrada A13, talvez pelo azar que a designação lhe trouxe, incluiu uns viadutos gigantescos, mas morreu contra um monte ali pelas bandas de Ceira, ficando-se por ser uma excelente ligação a Tomar onde, de vez em quando, lá passam uns carros. A auto-estrada A14 vem da Figueira da Foz para desaparecer em Coimbra, dando lugar ao malfadado IP3, desgraçada via que substitui a auto-estrada que nos devia ligar a Viseu.
É também a capital das promessas falhadas. O novo Tribunal, que até já teve um projecto completo elaborado para o mesmo local onde ainda hoje está “previsto”, pago e tudo, continua a existir apenas numas vagas declarações ministeriais sobre novos projectos e estudos; claro que as últimas eleições proporcionaram que o estacionamento que lá existe há dezenas de anos passasse a ter melhor aspecto, mas não mais que isso. A nova Maternidade sai de vez em quando do esquecimento para ser motivo das mais desencontradas discussões, mais apetecendo dizer como em Alqueva: “construam-me, porra!”. E o mesmo direi para o parque de estacionamento dos HUC, sem mais comentários. Quanto à promessa do aeroporto internacional em Cernache, nem vale a pena falar, porque Coimbra não pode ser a Capital do ridículo isso, decididamente, nunca.
Perante tudo isto, que resta aos conimbricenses no ano da graça de 2018? Que Coimbra seja a Capital da Esperança. E a Esperança tem que estar nas pessoas de Coimbra. É tempo de acreditarmos nos conimbricenses todos, no conhecimento que detêm e na capacidade de realizar, com excelência, de que por cá se dá provas em suficiência. As mudanças nos paradigmas urbanos têm sido avassaladoras nos últimos anos e só se pode esperar que acelerem no futuro próximo. As actividades humanas, a todos os níveis, estão a sofrer profundas alterações e as cidades não fogem a essas mudanças Por isso é mais do que nunca necessária e urgente a máxima exigência para com os governantes nacionais, mas também e sobretudo para com os governantes mais próximos e para com todos os que democraticamente nos representam independentemente das ideologias e partidos. Para que Coimbra seja realmente a capital da Esperança para todos, progressiva, culta e progressista, finalmente livre de atavismos seculares ainda hoje causadores de injustiças e atrasos a todos os níveis.