Numa reunião de apresentação da
proposta governamental do Orçamento Geral de Estado para 2020 ao partido
Socialista, o ministro das Finanças Mário Centeno garantiu, por mais de uma
vez, ser este OGE de esquerda. Ao contrário de muita gente, à direita e mesmo
na comunicação social, eu dou toda a razão ao ministro das Finanças nesta sua
observação.
As «contas certas», como agora o
Primeiro-ministro não se cansa de dizer, são fundamentais para o funcionamento
da economia e, essencialmente, para o pagamento da dívida pública que cresce
nominalmente de cada vez que o Estado tem défice. Para a esquerda, trata-se de
uma verdadeira descoberta e só podemos ficar satisfeitos com isso, já que deixa
de ser apenas a direita a defender as «contas certas», passando as mesmas a ser
uma base comum, o que só pode ser saudado pela própria direita ao ver a
esquerda juntar-se a ela neste seu novo entendimento. Para não ir mais longe,
todos nós nos recordamos de José Sócrates, ainda há poucos anos, defender que
«a dívida pública não é para se pagar, é para se ir gerindo». Um proeminente
político socialista, hoje ministro, chegou mesmo a declarar que «basta
ameaçarmos não pagar, que as pernas dos banqueiros alemães até se lhes tremem».
E atribui-se a outro político socialista, que foi presidente da República, a
afirmação de que «há mais vida para além do défice», em que se resumia uma
posição política de toda a esquerda naquela matéria que seria, precisamente, a
que estabelecia a maior clivagem ideológica entre esquerda e direita portuguesas.
Não será preciso mais para concluir que houve, portanto, uma alteração radical
da posição da esquerda portuguesa sobre o significado do défice e da dívida
pública. As razões profundas desta mudança crucial serão, eventualmente,
conhecidas um dia, mas não deverão andar longe da imposição da realidade sobre
a fantasia, muito pela participação na União Europeia e, em particular, pelas
ambições de alguns políticos socialistas.
Digo epifania da esquerda, e não
apenas do partido Socialista, por boas razões. Bem poderão o PCP e o BE soltar
uns resmungos (chamam-lhes avisos) sobre a falta que os dinheiros para pagar a
dívida fazem na falta de investimento público e na degradação da prestação dos
serviços públicos, de cujo estado os portugueses começam, finalmente, a
aperceber-se. Na realidade, andaram quatro anos a aprovar OGE’s cuja principal
característica era precisamente fazer aproximar o défice de zero, a todo o
custo. E no OGE para 2020 não deverá ser diferente, ainda que por abstenção, já
que o objectivo será o mesmo: conseguir que o Orçamento seja aprovado.
Eis-nos, portanto, chegados,
finalmente, ao primeiro OGE, depois do 25 de Abril, em que não se discute a
necessidade de «contas certas». Demorou, mas chegámos. A partir daqui, já não
se discutirá o défice zero ou mesmo excedente, mas partir-se-á desse ponto para
depois se discutir o resto. E o resto são a qualidade da despesa pública e o
montante e justiça dos impostos, isto é, a receita. Aqui, sim, entram as
diferentes propostas da direita e da esquerda.
É nesta perspectiva que,
pessoalmente, defendo que o ministro das Finanças tem toda a razão em
considerar o OGE para 2020 como sendo de esquerda. A carga fiscal é altíssima,
talvez a maior de sempre, já não se devendo tal apenas aos impostos indirectos
que, como todos sabemos, são os socialmente mais injustos, mas também à subida
do próprio IRS para as famílias. Bem pode a esquerda argumentar que não somos o
país europeu com a carga fiscal mais elevada, porque o que as famílias sentem é
a «pressão fiscal» que relaciona os impostos com o nível salarial e, aí, somos
mesmo dos piores. Como é bem conhecido, se há matéria em que direitas e
esquerdas divergem é precisamente nos impostos, com a direita a propor a sua
diminuição e a esquerda a usar todos os argumentos para os manter ou aumentar.
A outra diferença histórica entre direita e esquerda reside na despesa. À
defesa pela direita da reestruturação do Estado para a reduzir, as tais
reformas estruturais, a esquerda tem respondido sistematicamente que está a
defender o «estado social». Também aqui o OGE 2020 é bem de esquerda.
Tal como na questão do défice e da necessidade de diminuição da dívida a
esquerda se juntou à direita, resta aguardar que o faça noutras matérias
essenciais para que o crescimento efectivo e sustentável de Portugal se torne
numa realidade. Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 de Janeiro de 2019