Qualquer cidadão que se preocupe com
a sua cidade, ainda mais no caso de Coimbra, desenvolve com ela uma relação
necessariamente afectiva, cuja substância cresce muito para além de
preocupações técnicas ou político-ideológicas. E essa relação com a Cidade
surge, ainda que tantas vezes contraditoriamente, a níveis diversos, seja com a
evolução temporal do espaço público e em geral, do urbanismo, seja com as próprias
pessoas que a habitam, tantas vezes sem se darem conta do que as rodeia, e
ainda menos se questionarem sobre as razões da evolução.
É assim que, no que me diz respeito,
amo a memória das ruas da Baixa de Coimbra com pessoas a atropelarem-se, umas a
ver as montras e outras apenas a passar nos seus trânsitos entre a Estação Nova
e a zona da Câmara Municipal. Guardo com particular carinho, algures num
qualquer recanto cerebral, a visão da rua que, em criança, conhecia como rua
dos bazares, com montras cheias de brinquedos em particular milhares de
miniaturas de automóveis, pistas eléctricas de comboios e de carros, com que
apenas podia sonhar. Era também a rua do «hospital das bonecas», bem conhecido
das minhas irmãs. Sei hoje que a rua se chama Adelino Veiga, «que foi operário
honesto e poeta de mérito» e odeio ver como se encontra actualmente abandonada
e triste, sem bazares e sem pessoas.
Amo a cidade aberta no sec. XIX
sobre a antiga Cerca de Sta Cruz desde a Sá da Bandeira aos Arcos do Jardim,
com continuação pela alameda Júlio Gonçalves, sem réplica urbanística posterior
de qualidade urbanística equivalente. Odeio a incapacidade de recuperar o
Jardim de Sta Cruz para uma normal e aberta vivência mas amo a rua que, ao
lado, os jacarandás que a bordejam todos os anos por volta de Maio vestem com
as cores da Cidade. E amo o Jardim Botânico que distingue Coimbra com a sua
excepcionalidade e, sobretudo, é o palco de memórias guardadas. Mas odeio os
mostrengos construídos na Av. Sá da Bandeira, aguardando que alguém se lembre
de utilizar o dinheiro entregue aquando da construção do golden, destinado ao
parque de estacionamento da Praça da República, para a compra dos 4 pisos
superiores do próprio edifício e sua demolição.
Amo a vitalidade que a juventude
universitária transmite à cidade, com a sua paleta de características
afirmativas pela diferença, seja pela liberdade cosmopolita de aspecto
exterior, seja pela capacidade de apontar caminhos novos nas mais diversas
áreas do pensamento, da ciência, das artes e mesmo da intervenção social. Mas
odeio a conservadora e muito hipócrita sociedade da má-língua da nossa cidade
que se compraz em desfazer naqueles que considera inferiores e em repassar
mentiras e boatos, agindo como se a Inquisição não tivesse terminado há, passam
no próximo ano, 200 anos. Amo mesmo algo que já odiei, o aparentemente ingénuo
tratamento por Senhor Doutor dado a qualquer homem que se apresentasse de fato
e gravata e que na realidade escondia uma certa malandrice futrica que se
aproveitava da célebre doutorice coimbrã. E odeio a falta de oportunidades
proporcionadas pela cidade aos seus filhos (ainda que muito bons) que se vêem
obrigados a deixá-la para construir as suas vidas noutras paragens.
Amo as diversas imagens que o rio Mondego
nos oferece, como a névoa deslizante sobre as suas águas matinais ou o reflexo
da iluminação da colina sagrada em noites amenas, tal como amo a recuperação de
Sta. Clara-a-Velha e a sua envolvente, a ponte pedonal Pedro e Inês e o
Exploratório.
Mas odeio que o parque verde esteja há anos sem recuperação dos
estragos nem limpeza e que a margem esquerda sirva para parqueamento de
auto-caravanas, sem condições higiénicas para tal, quando Coimbra até dispõe de
um parque de campismo de 5 estrelas.
Sim, amo o Penedo da Saudade e as
memórias pessoais e de todos os que lá deixaram pedras evocativas da sua
passagem pela Universidade, reveladoras de um encantamento que se sobrepõe a
todas as agruras por que passamos durante a vida.
Como acontece com as pessoas que
amamos, a relação com Coimbra pode ser de tal intensidade que até as
imperfeições que nela possamos odiar ou apenas desgostar passam, no fundo, a
fazer parte do todo como se rugas da velhice fossem tornando, por isso mesmo,
possível «amar a própria cidade que se odeia».
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Fevereiro de 2020