segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Ministros, brincalhões e às vezes

 

Os congressos dos partidos que ocupam o poder, em particular quando o fazem sozinhos, são sempre momentos interessantes de seguir pelo que lá é dito, pelo que fica por dizer, pela encenação e também pelas reacções posteriores que suscitam. O recente Congresso do Partido Socialista não foi excepção.

Costa fez promessas como se estivesse a vender produtos numa feira. Há quem garanta que Costa mede sempre tudo o que afirma, nunca dizendo nem menos nem mais do que pretende em cada momento. Mas, naquela circunstância, será que teve mesmo consciência do que estava a fazer ou andará já naquele distanciamento da realidade que o exercício do poder durante muito tempo por vezes produz? Para se ter uma noção do desfasamento das promessas com a realidade, digamos assim, basta atender às promessas de diminuição do IRS para as classes médias e aumento do abono de família. Em menos de uma semana, o próprio ministro das Finanças veio «explicar» aquelas medidas fazendo, na prática, um desmentido das promessas do primeiro-ministro.

O que não se disse no congresso é que Portugal está a caminhar alegremente para último país da Europa em termos de riqueza, isto é para sermos os mais pobres da União. Nem foi dito que a dívida pública cresceu 40.000 milhões desde o início da pandemia, para ser hoje de 133% do PIB. Enquanto as promessas desfilavam tal como os previsíveis compromissos com o PCP e o BE para garantir a aprovação do próximo Orçamento Geral de Estado, ficava prudentemente omitido o facto de 2.000 milhões já estarem comprometidos à partida, o que só se soube dois dias depois. O que não podia faltar era a eterna lembrança da austeridade e do desemprego nos tempos de Passos Coelho, esse malandro que os praticou por gosto, calando mais uma vez que tudo isso se deveu às políticas de Sócrates e seus governos, de que o próprio António Costa e muitos ministros de hoje faziam parte. Até houve tempo para afirmar que os «mercados» gostam deste governo, ocultando que as reduzidas taxas de juro se devem apenas às políticas actuais do BCE que já detém metade da dívida pública portuguesa e que o volume enorme desta é uma espada de Dâmocles sobre a nossa cabeça.


Já a encenação do Congresso revestiu-se de aspectos bem mais interessantes. A novela ensaiada da sucessão de António Costa no PS serviu para colocar os putativos candidatos, homens e mulheres, numa mesa à parte, como que para os colocar numa montra. E o interessante é que esses militantes se sujeitaram a isso, supostamente com agrado, com a notória excepção de Pedro Santos, que mostrou não achar graça à situação, tendo entrado mudo e saído calado do Congresso já que, como inteligente que é, sabe que é no terreno que conquista o partido e não integrado numa encenação de mau gosto. Que se saiba, apenas reagiu ao comentário de A. Costa de que a sua chegada ao Congresso com atraso se teria devido a «um furo ou adormecido». O ministro respondeu que «o secretário-geral é um brincalhão». Sendo o sec. Geral e o primeiro-ministro uma e a mesma pessoa, estamos conversados sobre o ambiente no topo do Estado.

Restam as reacções externas ao que se passou no Congresso do partido do Governo. A mais notória foi da autoria do presidente da CIP António Saraiva, usualmente tão calmo e cordato, que comparou o que se disse no Congresso à orquestra que continuava a tocar enquanto o Titanic se afundava. Conhecendo a fundo o que se passa verdadeiramente na nossa economia sufocada pelos gastos do Estado e pela dívida pública, sabe que a realidade vai desfazer todas as fantasias políticas, como aconteceu já no passado, por exemplo em 2011. Curiosamente, a comunicação social pretendeu, como mo fez o Director do Público, acalmar as ondas dizendo que nem tudo é uma maravilha nem é um desastre, salientando o meio-termo como a análise mais correcta. Só que a questão é que os sensatos a bordo do Titanic não resolveram nada: num afundamento é a tremenda realidade que se mostra, não há lugar a posições de meio termo. “Remember” Sócrates, acrescento eu.

Já Rui Rio o actual presidente do maior partido da oposição, que supostamente representa permanentemente a alternativa, decidiu falar da falta de ética por no Congresso se ter feito propaganda antes de eleições. Mas não é isso mesmo que os partidos todos fazem? Só que uns estão no poder e outros têm que fazer pela vida. O que interessa verdadeiramente em política é a substância. Vir dizer ainda que as eleições autárquicas de 2025 é que são importantes para o PSD porque mais de 60% dos eleitos socialistas têm que sair nessa altura faz algum sentido? Sim, pelos vistos até faz. O de quem se sente incapaz de convencer os eleitores e apenas espera que quem ocupa o poder se vá embora, no governo, nas câmaras e nas juntas de freguesia, numa posição política para mim completamente incompreensível.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Setembro de 2021

Fotos recolhidas na internet

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Coimbra e mobilidade segura

 


Há poucos dias a PSP divulgou ter realizado uma acção de controlo de corridas ilegais de automóveis nas ruas da nossa Cidade. Só podemos bater palmas e agradecer por essa acção. Mas não chega. O problema das corridas de carros transformados existe, mas restringe-se a determinados locais bem conhecidos só sendo surpreendente que não haja mais acções policiais nos dias em que toda a gente sabe que se realizam. Mas o problema do excesso de velocidade nas nossas ruas é muito mais vasto, perigoso e resulta de vários factores que concorrem todos para que seja uma realidade diária um pouco por toda a cidade.

A falta de policiamento permanente e eficaz é uma evidência diária. Por alguma razão, seja por falta de dinheiro ou de pessoal efectivo para andar nas ruas, seja por uma qualquer política policial estratégica, para além de alguma viatura da polícia a passar de vez em quando ou haver operações stop em determinados locais, quase sempre os mesmos, não há policiamento nas ruas. Nem é uma questão apenas de trânsito, é também a segurança geral nas ruas que está em causa e não vale a pena atirarem-nos areia para os olhos com estatísticas fantásticas de segurança: como eu já vi apenas por andar na rua, a distribuição de droga entre a baixa e a Praça da República, por exemplo, é praticada às escâncaras sem qualquer tipo de problema.

O crescimento urbano de Coimbra durante o século XX verificou-se como em quase todo o país privilegiando a utilização do automóvel, à qual todos os outros modos de transporte são subordinados. Com a agravante de não ter havido planeamento urbanístico, pelo que não existe hierarquia viária consistente.

Assistimos hoje em dia em todo o mundo a uma mudança muito rápida do paradigma da mobilidade urbana, com recuperação de modos tradicionais mas alterados com a evolução tecnológica, como as bicicletas ou as trotinetas, além de se passar também a percorrer distâncias maiores a pé. Todas estas mudanças exigem das autoridades públicas uma nova maneira de encarar a mobilidade urbana, criando condições de convivência segura entre os diversos modos de transporte, sem esquecer as políticas de estacionamento e de transporte público que deverão ser interligadas e eficientes do ponto de vista ambiental, mas também económico.


A velocidade prevista no Código da Estrada para a circulação no interior das localidades, que é de 50Km/h não é cumprida pela maior parte dos condutores apesar de, em muitas situações, aquele valor já ser em si excessivo. Por isso, as autoridades municipais deveriam ter um cuidado muito particular em proteger os utentes, em particular os peões, em determinadas situações concretas. Por exemplo, nas proximidades de zonas escolares, a velocidade máxima deveria ser restringida a 30Km/h. Tal como as passadeiras de peões semaforizadas deveriam ser todas dotadas de sistemas de radar detector de excesso de velocidade à aproximação de veículos com a dupla função de proteger os peões e restringir a velocidade de circulação. A título de exemplo recordo que, em Paris, a presidente da câmara municipal Anne Hidalgo anunciou que todos os transportes municipais vão circular a um máximo de 30Km/ a partir de 30 de Agosto.

O nosso Código da Estrada prevê, desde as alterações de 2013, a possibilidade de serem criadas Zonas de Coexistência, onde o peão é considerado como elemento privilegiado em relação ao tráfego motorizado e onde é imposta a velocidade máxima de 20 Km/h. Estas zonas têm muitas vantagens relativamente ao corte puro e simples da circulação automóvel. Mas a resistência à mudança de mentalidades e de capacidade de resposta às novas exigências de cidadania por parte das nossas autarquias é tão grande que não se conhece ainda qualquer criação de Zona de Coexistência deste tipo. Coimbra não foge à regra. Já que estamos em campanha eleitoral autárquica, que tal as candidaturas abordarem este tema? Estas zonas são já vulgares em países como a Alemanha, o Reino Unido, Suécia, Dinamarca, França, Japão, Israel e Suíça, pelo que nem será preciso inventar nada.


Curiosamente, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária publicou em 2020 um Manual de Apoio às Zonas Residenciais e de Coexistência que fornece apoio técnico às autarquias que pretendam adoptar esta solução para áreas específicas das cidades, pelo que nem a falta de normalização e regulamentação pode ser apontada como desculpa para a sua não concretização. Acresce, como pormenor interessante para Coimbra, que da equipa técnico-científica do referido Manual fazem parte dois distintos colegas engenheiros professores de Eng. Civil da nossa Universidade, o Prof. Doutor Álvaro Seco e a Prof. Ana Bastos Silva, pelo que o apoio científico para a melhoria da nossa cidade nestes aspectos está, como se costuma dizer, à mão de semear. É só uma questão de vontade política.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Agosto de 2021

Imagens recolhidas na internet

Sobre «manutenção» de jardins públicos.

 Num dia destes, no meu passeio matinal com o cachorro, encontrei uma equipa de pessoal a tratar de uma zona ajardinada anexa ao Mosteiro de Celas, junto ao acesso do antigo pediátrico, onde se encontra a funcionar provisoriamente uma unidade de saúde de Celas. Aquilo estava, de facto, um verdadeiro nojo e precisava de limpeza. O pessoal estava a utilizar máquinas de corte de fio. No dia seguinte passei lá de novo. Os sacos e outros recipientes de plástico que lá estavam no meio do matagal lá continuavam, agora reduzidos a pequenos pedaços e mesmo micro pedaços, que ninguém se deu ao trabalho de os recolher e levar para local adequado. Mas pior, muito pior, é que afinal a área em causa tinha um sistema de rega automática, tendo os aspersores sido quase todos destruídos e deixados no local como o resto. E isto já não é desleixo ou incompetência: é crime económico! Nem sei se a brigada era da Câmara, da Junta de Freguesia ou de empresa contratada, nem me interessa. O que importa é a forma como os espaços públicos são tratados, do ponto de vista ambiental, mas também económico.


 

Sissel Kyrkjebø - Shenandoah - 2001

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Outra vez «o cemitério dos impérios»


O Afeganistão é um país asiático, muito montanhoso, com cerca de 38 milhões de habitantes, limitado a Norte pelo Turquemenistão, pelo Uzbequistão e pelo Tajiquistão, que pertenceram todos à antiga URSS, a Sul e Nascente pelo Paquistão e a Poente pelo Irão. Curiosamente, a Nascente tem ainda uma estreita língua de território entre o Tajiquistão e o Paquistão que só termina numa fronteira com a China, donde ser também o Afeganistão de certa forma vizinho da grande potência asiática; servia esta estreita faixa de separação entre os antigos impérios russo e britânico que, assim, não se tocavam. É um país habitado há milhares de anos, com uma localização privilegiada para as rotas entre o oriente e o ocidente, nomeadamente as antigas chamadas «rotas da seda», tendo sido, em consequência, alvo da cobiça dos mais diversos impérios ao longo da História, desde os tempos de Alexandre o Grande, dos Mongóis, até aos impérios russo e britânico. É devido aos sucessivos insucessos destas tentativas de dominação que o Afeganistão ganhou a designação que vai no título desta crónica.

Mais recentemente, os soviéticos tentaram, a partir de 1979, conquistar o Afeganistão para a área de influência comunista tendo invadido o país numa guerra tão traumatizante para o povo russo como o foi a do Vietname para os americanos. A guerra durou dez anos, tendo terminado com a retirada definitiva em 1989, já com Mikhail Gorbachev na liderança da URSS. Não foi certamente por coincidência que o «muro de Berlim» caiu logo naquele ano e também que a própria União Soviética foi dissolvida pouco tempo depois, em Dezembro de 1991. Como consequência imediata terminou a «guerra fria» que durava desde o fim da 2ª Guerra Mundial em 1945, dando-se origem a um mundo completamente diferente.


À saída dos soviéticos seguiu-se uma fase de lutas extremamente violentas entre diversos grupos de Mujahideen que terminou em 1996, quando os Talibãs conseguiram o controlo de todo o território afegão. Assim se iniciou um dos regimes mais bárbaros da actualidade, já que um fundamentalismo islâmico muito próprio dos Talibãs (ou estudantes do Islão) foi aplicado a todos os aspectos da vida individual e em sociedade. É impossível esquecer as transmissões, em directo, dos assassínios em massa levados a cabo de forma fria em estádios perante as bancadas cheias de assistência. Tal como o tratamento dado às mulheres, transformadas em meros seres inferiores com as únicas funções de reprodução e satisfação dos desejos sexuais dos homens. Muito mais haveria a dizer, mas por aqui me fico, que a mera recordação daquele regime leva qualquer pessoa normal civilizada ao vómito, lembrando apenas que todos os direitos humanos foram suspensos pelo regime Talibã que governava pelo medo total e absoluto.

O regime Talibã só terminou quando os americanos e aliados invadiram o país, na sequência dos atentados de Setembro de 2001, dado que o regime acolheu e protegeu o grupo dos seus autores sob a liderança de Bin Laden, recusando-se a entregar este último. Recorde-se que a invasão do Afeganistão de 2001 foi sancionada pelas Nações Unidas, ao contrário do que sucedeu no Iraque.

Vinte anos depois, os americanos decidem sair do Afeganistão e só se pode dizer que já não era sem tempo, ou o país passaria a ser um protectorado. A saída começou a ser preparada por Obama, negociada directamente com os Talibãs por Trump e efectuada por Biden. Seria de supor que a saída se processasse de forma organizada, não esquecendo as lições da História, mas foi um desastre que fez lembrar Saigão em 1975. O que se passou foi apenas um puro e simples abandono quer das populações, quer dos militares afegãos deixados à sua sorte, criando-se um vazio que, como seria de supor, foi imediatamente ocupado pelos Talibãs com a maior das facilidades.


Hipocrisias à vista de todos são mais que muitas: de Biden, alijando as suas óbvias responsabilidades no processo de saída, atirando as culpas para os militares afegãos e para Trump; dos europeus que, prevendo já uma vaga de refugiados, acusam os americanos de criarem esta situação, quando são incapazes de constituir umas forças armadas europeias e esperam sempre que outros (os americanos) resolvam os problemas quando necessário; hipocrisia dos que apontam a invasão de há vinte anos como a responsável pela situação e são incapazes de responsabilizar os Talibãs, apenas porque do outro lado estão os americanos ou, melhor dito, o inimigo capitalismo. E não podemos deixar de notar que, se há trinta anos o império soviético se desmoronou logo após a derrota no Afeganistão, a América também se vira agora para dentro, abandonando muitos dos que nela confiavam, evidenciando graves problemas internos que ameaçam colocar em perigo a própria Democracia americana.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 23 de Agosto 2021

Imagens recolhidas na internet