segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Os portugueses e a saúde


António Arnaut considerava o Serviço Nacional de Saúde como sendo “a trave mestra da democracia”. E tinha evidentemente razão mal andando aqueles que de forma, para mim incompreensível, tantas vezes manifestam desrespeito quer pelo SNS, quer pelo que foi o responsável político pela Lei do Serviço Nacional de Saúde aprovada em 15 de Setembro de 1979. Não esquecendo Mário Mendes que tecnicamente lhe deu forma e conteúdo. Também mal andou então a direita, em particular o PSD que, por razões de pormenor, não lhe deu o seu aval, não sendo capaz de distinguir o essencial do assessório ficando para sempre com o ónus dessa opção política. Erro que logo depois foi ultrapassado, durante a governação da AD e do PSD em maioria absoluta, participando de forma decisiva na construção  e desenvolvimento do SNS. Recordo apenas a criação das carreiras de enfermagem, médicas e das Administrações Regionais de Saúde, por exemplo, a que se adicionam os passos decisivos na Saúde Materno-Infantil.

O SNS, garantindo cuidados de saúde de qualidade a todos os portugueses independentemente da sua condição social ou económica, é fundamental para a segurança dos cidadãos e deve ser não só aceite como acarinhado pelas diversas forças políticas, seja qual for a sua orientação política.

Mas o nosso SNS está, obviamente, doente. Não interessa para aqui quem é o culpado disto ou daquilo, já que dizendo respeito a todos os portugueses, é matéria que deveria ser objecto de consenso e não de querelas ideológicas. A realidade com as suas consequências está infelizmente à vista de todos não sendo possível iludi-la por mais tempo.

O que se passou na semana passada em que um cidadão com noventa e três anos ficou seis horas numa maca dentro do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, à espera de que o socorressem até morrer é bem a prova disso. Aos mais diversos níveis. Vou descartar a hipótese de ter sido preterido por doentes mais novos que ainda são contribuintes para o Estado a nível de segurança social em vez de beneficiários líquidos como ele era porque penso que ainda não chegámos a esse ponto. Por enquanto. O serviço de urgência do hospital estaria desfalcado a nível de pessoal, fosse médico da urgência ou da cirurgia. Não haveria também disponibilidade de transporte para outro hospital por parte de quem o deveria fazer. Tudo questões que se percebe não serem exclusivas daquele hospital, mas generalizadas por todo o país.

Acontece que aquele hospital é actualmente gerido pelo Estado, quando antes o era por privados em regime de PPP. E esta situação nunca aconteceria então, desde logo porque o Estado não o permitiria, o que deveria fazer pensar duas vezes quem ideologicamente se preocupa mais com quem presta os serviços de saúde pública do que com os respectivos utentes.

O grande crescimento da procura de serviços de saúde não foi acompanhado por uma correspondente adaptação do SNS, o que se veio a reflectir na falta de resposta adequada (de qualidade e em tempo útil) pelo que a confiança pública desceu. Em consequência, os doentes têm-se virado para a oferta privada, o que se vê no elevado número de seguros de saúde subscritos e na despesa com serviços de saúde privados que é já uma das maiores da Europa, situação tão mais grave quanto os nossos ordenados são dos mais baixos também na Europa.  Nos últimos dias soube-se também da transferência de partos do SNS para as maternidades privadas com a mesma justificação, falta de confiança, situação incompreensível para quem se lembra do que se verificava há alguns anos, que era exactamente o oposto. Como se se tratasse de uma pescadinha de rabo na boca, outra consequência é o abandono do SNS por elevado número de médicos e enfermeiros. A resposta tem sido contratar empresas que fornecem horas de médicos no que constitui uma total inversão do que deve acontecer em cuidados de saúde, pela mercantilização de uma das actividades mais dignas da Humanidade.

A reforma do SNS é urgentíssima e nunca será constituída por uma soma de remendos pontuais ditados pela necessidade de correr a resolver situações urgentes. Exige capacidade de diálogo e vontade política de obter compromissos, para além de competência. O SNS é demasiado valioso para os portugueses para ser destruído à vista de todos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 de Agosto de 2023

Imagens retiradas da internet

 

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Aprender com a História

 


Que aprendemos muito pouco com a História é uma verdade quotidianamente provada, nas mais diversas áreas, incluindo a Guerra.

Quando o Marechal Massena iniciou a terceira Invasão Francesa a Portugal fez publicar uma proclamação em que afirmava: “Não entrámos no vosso território como conquistadores. Não viemos para vos dar guerra, mas para combater aqueles que vos obrigam a guerrear”. Assim começava a mais destrutiva das invasões ordenadas por Napoleão. Com uma justificação, ou desculpa conforme lhe quisermos chamar, gasta de tanto uso mas ainda utilizada nos nossos dias. Basicamente foram as palavras de Putin em Fevereiro do ano passado quando mandou invadir militarmente um país soberano, a Ucrânia.

A proclamação de Massena espelhava uma preocupação pela resistência que os civis portugueses pudessem opor à invasão, cujo objectivo era tomar Lisboa e instalar no país um regime dominado por Napoleão à semelhança do já sucedido noutras paragens. Mas pretendia também usar alguma revolta popular contra a atitude dos aliados ingleses, que mais faziam Portugal parecer um protectorado inglês. A proclamação surgia necessária depois de uma surtida pelo território do marquês de Alorna, um português ao serviço dos franceses, que verificou por si mesmo a revolta dos camponeses contra os franceses obedecendo, ainda que contra vontade, às directivas de Wellington que impunham a destruição de tudo o que pudesse interessar aos franceses. O que era importante para Massena, já que naquele tempo os exércitos sobreviviam daquilo que encontravam e pilhavam nos locais por onde passavam.

Foi em Agosto de 1810 que os exércitos franceses de Massena cercaram a praça-forte de Almeida, depois de tomada Ciudad Rodrigo. Ao fim da tarde do dia 27 desse mês uma terrível explosão do paiol de pólvora de Almeida surpreendeu sitiados e sitiantes, matando cerca de 600 soldados de artilharia e 200 artilheiros, bem como cerca de 500 civis. Massena tinha o caminho livre para entrar em força em Portugal, apenas sendo detido nas Linhas de Torres, já perto de Lisboa, embora sofresse percalços pelo caminho como aconteceu no Bussaco, consequência de más opções suas.

A terceira invasão foi terrível em termos de perdas de vidas, mas também de destruição de terras e património. Depois da retirada dos franceses em Abril de 1811 pouco ou nada restava do Portugal anterior, exaurido e faminto, com hordas de banditismo a dominar o interior do país. As elites que anteriormente governavam o país tinham praticamente desaparecido, deixando lugar a que novas surgissem, assim abrindo caminho ao liberalismo, mas essa já é outra história.


 Neste mês de Agosto de 2023 ao prestar tributo aos portugueses de há 213 anos que resistiram contra o invasor com tanta bravia mas sobretudo sofrimento não podemos deixar de estabelecer comparações com a invasão da Ucrânia pela Rússia e não só pelas razões apresentadas, mas também pela destruição sistemática de um país. As armas podem ser diferentes, mas a relação de dimensões do atacante e do invadido é semelhante. Tal como o é a completa falta de consideração para com os civis apanhados no caminho dos exércitos, com massacres perpetrados contra homens, mulheres e crianças sem culpa nenhuma do que acontece. E como o é a resistência patriótica de um povo contra quem o invade, contra todas as probabilidades e apesar da traição de tantos que pertencendo a elites privilegiadas pensam apenas nos seus interesses imediatos.

Se Putin e os seus oligarcas de serviço se dedicassem por uma vez que fosse a estudar os clássicos ocidentais em vez de insultarem sistematicamente o nosso modo de vida e os valores liberais, poderiam aprender alguma coisa com Aldous Huxley quando escreveu: "(…) Que os homens não aprendem muito com as lições da História é a mais importante de todas as lições que a História tem para ensinar (…)”. Mas não tenho essa esperança.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 de Agosto de 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

EXTRACÇÃO OU CRESCIMENTO

 


Seja qual for a perspectiva pela qual se observe a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, não é possível deixar de a considerar como um sucesso completo. Claro que se tratou de um encontro de carácter religioso organizado pela Igreja Católica e esse será o primeiro olhar a ter. Juntar cerca de um milhão e meio de jovens numa iniciativa católica nos dias de hoje é, só por si algo de excepcional. Mais importante ainda, a mensagem transmitida pelo Papa que, a ser seguida pelos participantes só poderá ser muito positivo para o mundo. Mas a forma como decorreram toda a JMJ, desde o comportamento dos jovens até à organização em si foi igualmente exemplar. Outro aspecto muito importante teve a teve com as instalações e as obras que lhe estiveram associadas. Em particular, o enorme espaço ribeirinho junto à foz do Trancão, bem perto da Parque Expo, que se encontrava até agora ainda por recuperar para a Cidade. Em muito pouco tempo as obras feitas proporcionaram a possibilidade de juntar um milhão e meio de pessoas num mesmo local. Toda aquela zona foi beneficiada, ficando agora ligada a um percurso ao longo do rio Tejo com dezenas de quilómetros de extensão, possibilitando ainda a realização futura das mais variadas realizações colectivas, de que a próxima Semana Académica de Lisboa será só um exemplo. Trata-se de mais um exemplo de como os portugueses conseguem superar dificuldades quando a tarefa é urgente, por mais volumosa e complexa que seja.

Tal como Portugal foi capaz de organizar a Expo 98, projecto de grande dimensão que, para além de construir o certame, obrigou a recuperar uma área considerável que se encontrava num estado de degradação e poluição incríveis. Foi possível fazer tudo em tempo e horas e a Cidade beneficiou largamente dessa organização.

Assim como foi possível, a um nível mais reduzido, por se tratar de projectos mais pequenos e dispersos pelo país, levar a cabo os POLIS que foram executados e bastante beneficiaram as cidades que os receberam. Coimbra é bem o exemplo disso com a construção do Parque Verde que finalmente possibilitou uma ligação dos conimbricenses ao Mondego.

Ou os estádios de futebol do Euro2004. Independentemente da bondade da decisão, que não é isso que está aqui em causa, fomos capazes de concluir tudo em tempo, tarefa que não foi nada fácil.

Estes exemplos mostram como temos capacidade para realizar projectos bem definidos no tempo, por maior complexidade de que se revistam.


Algo que contrasta de forma chocante com a incapacidade de levar a cabo tarefas prolongadas no tempo que exijam capacidade de organização, mas também persistência e esforço continuado. Precisamente o que demonstrámos ao mundo durante quase todo o sec. XV. Foram oitenta e poucos anos de organização, capacidade tecnológica, método, aplicação de ciência e essencialmente persistência no foco. Depois tivemos a dominação filipina mas, quando recuperámos a independência com a dinastia dos Bragança, abraçámos o sistema extrativo vivendo das riquezas vindas do Brasil e de África.

Actualmente o sistema político tornou-se novamente extractivo, no que se tornou num verdadeiro vício, conjugando a maior carga fiscal de sempre com a vinda de um milhão de euros de fundos europeus por hora. Será mesmo essa a razão para a total incapacidade para reformar tudo aquilo que é necessário e urgente reformar, desde a Educação à Saúde, da Justiça à Segurança Social, das forças de segurança às Forças Armadas. Tudo o que exige competência, mas sobretudo vontade política e perseverança que promovem crescimento sustentado. Algo muito diferente do nosso famoso “desenrascanço” que, à última hora, nos permite organizar feiras, campeonatos ou encontros e festivais os quais, por mais apelativos e importantes que sejam naquele momento em que são promovidos, rapidamente passam para a categoria de memórias.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 14 de Agosto de 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

UM PAÍS FAZ DE CONTA

 


Quando se vai aos restaurantes e se verifica que estão muitas vezes completos, mesmo aqueles mais caros que o habitual, pode facilmente ficar-se com a ideia de que, realmente, o país está a atravessar aquela fase de sucesso económico que todos os dias os governantes nos vendem nas televisões. Tal como o elevado número de automóveis novos, eléctricos e híbridos como está na moda, em grande parte de gama alta, parece indicar uma saúde económica generalizada.

Constatações que se fazem apesar do aumento das taxas de juro que têm levado a subidas terríveis das prestações das casas, tal como da subida generalizada de preços dos últimos dois anos que não é acompanhada por correspondentes actualizações salariais.

Em consequência cresce a sensação de que há uma disfunção económica em Portugal cujas consequências todos podemos observar directamente, mas com causas profundas mais difíceis de descobrir. Isto para além de um expressivo alargamento do fosso salarial de que um exemplo é o facto de “os presidentes executivos das empresas cotadas no índice PSI-20 logo em 2018 terem ultrapassado a crise e o período de resgate da troika com aumentos salariais de quase 50%, enquanto os trabalhadores perderam 6,2%”, como informou o jornal Expresso na altura.

Mas, se este alargamento do fosso salarial explica boa parte dos automóveis topo de gama, já a ocupação dos restaurantes terá outras causas.

A economia portuguesa sofre de vários males crónicos, na realidade ligados entre si. Um deles é a falta de capitalização e outro é o excessivo número de pequenas e médias empresas, mesmo de micro-empresas.

Aqui residirá uma das razões das disfunções sociais, dado que uma boa parte da economia existe na fronteira da legalidade, terreno favorável a uma elevada fuga ao fisco, ou mesmo é dizer, a existência de uma economia paralela de grande dimensão. Tem-se a noção de que ao crescimento económico que acompanhou a redução da economia paralela até meados da década de noventa do século passado se seguiu uma fase, de que agora temos uma visão mais nítida, de retrocesso nessa evolução. No fundo, como se costuma dizer, deixámos de nos aproximar do Norte da Europa, para nos “magrebizarmos” cada vez mais.

Este processo é ainda favorecido por uma carga fiscal verdadeiramente obscena, que bateu um novo recorde, tendo aumentado 14,9% em termos nominais em 2022, atingindo 87,1 mil milhões de euros, correspondendo a 36,4% do PIB contra 35,3% em 2021, que já tinha sido um recorde relativamente aos anos anteriores.

Só para dar um exemplo, um cidadão que ganhe 2.760 euros por mês, o que é bastante baixo em termos europeus, em Portugal é considerado milionário. Só assim se explica que pague 43,5% de IRS, isto é, entregue só do seu trabalho, 1.200 € ao Estado, quase metade do que ganha, não contando com o IVA sobre praticamente tudo o que compra para viver, para além das dezenas de outros impostos e taxas como sucede nos combustíveis, não incluindo ainda a contribuição para a Segurança Social. Se a carga fiscal já é completamente desajustada, constituindo uma canga sobre todos os contribuintes, sejam pessoas singulares ou empresas, a pressão fiscal em função das receitas torna-se insuportável e mesmo uma das maiores da EU, se não mesmo a maior.


A consequência é evidente. O ponto de equilíbrio já estará longe e foge-se aos impostos como poucas vezes aconteceu na História, existindo na realidade dois países no mesmo espaço geográfico, com todas as injustiças inerentes e a falta de competitividade da nossa economia.

O que mais impressiona é a aparente falta de atenção dedicada a esta questão por parte de políticos, governantes e da oposição. Qual será a razão dessa atitude bem como, para ser inteiramente verdadeiro, da falta de reação por parte dos portugueses?

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 7 de Agosto de 2023

Imagens recolhidas  na internet