Tornou-se um lugar-comum, embora frequentemente usada por populistas, a afirmação de que há, em Portugal, uma Justiça para ricos e outra para pobres. Infelizmente, a realidade aí está para o provar, com uma frequência maior do que seria aceitável.
Uma das diversas causas para que essa percepção seja demasiadas vezes coincidente com a realidade tem a ver com as prescrições que, normalmente, só acontecem em casos conspícuos pelas personalidades ou instituições em causa que se destacam pelo poder político ou económico.
Há poucos dias tomou-se conhecimento de uma decisão do tribunal da Relação de Lisboa que libertou os 11 maiores bancos que operam em Portugal de pagarem coimas que, no total, somariam quase 225 milhões de euros. A aplicação das coimas deveu-se à Autoridade da Concorrência, tendo os bancos recorrido para os tribunais, daí esta decisão da Relação de Lisboa. A decisão da Autoridade da Concorrência deveu-se a uma situação de cartelização dos bancos, que teriam trocado entre si informação sensível entre 2002 e 2013, com vantagens para os bancos e claro prejuízo para os clientes da banca. De acordo com a Relação o caso é para arquivar, embora ainda se vislumbrem eventuais possibilidades de recurso por parte da Autoridade da Concorrência e da Procuradoria. De notar que os bancos com maiores coimas seriam a CGD e o BCP. Qual a razão apontada pela Relação para esta decisão? Mais uma vez a prescrição do processo. A decisão não foi unânime, mas o principal está à vista. A matéria de facto estava provada, o que falhou foi o procedimento judicial que não permitiu decisão a tempo para punir os infractores.
A garantia de existência de uma sã e livre concorrência é fundamental para dar aos simples cidadãos a possibilidade de verdadeira escolha com garantia de que não está a ser enganado nos preços que lhe são apresentados nos diversos produtos ou serviços que tem de comprar. Tal como a ASAE é fundamental para que o bife no prato tenha garantia de qualidade numa economia tão complexa como é a actual, o papel da Autoridade da Concorrência defende-nos de más práticas e das mais diversas cartelizações, num tempo em que até a inteligência artificial ajuda os prevaricadores. Mas não só. A concorrência é a base da inovação e consequente crescimento sustentado da economia.
Se empresas com a responsabilidade dos bancos, de cuja actividade ninguém pode hoje fugir entram pelos caminhos detectados pela Autoridade da Concorrência e conseguem escapar às consequências, algo vai muito mal e tem de ser corrigido. A Lei da Concorrência data de 2012 e já sofreu quatro alterações desde então. Contudo, raros são os casos levados pela Autoridade a Tribunal que terminam com a condenação dos acusados. Este, da banca, será apenas mais um. Sem colocar em causa a sua independência, será que a Autoridade constrói bem os processos? Dispõe da capacidade técnica e humana para analisar e levar a bom termo os processos numa área tão complexa e de difícil? A legislação do processo penal e a própria organização dos tribunais está adaptada a estes tempos em que o dinheiro dá a volta à Terra em milésimos de segundo em volumes extraordinários?
Vivemos tempos extraordinários em que as televisões nos mostram todas as tragédias em directo, em que governantes não podem ter tido vida económica antes de chegarem ao poder e em que o candidato militar à presidência parece estar ainda no PREC em que se imaginava que o lugar político puro (e, claro, inexistente) estava entre o socialismo e a social-democracia, seja lá o que forem nos nossos dias.
A Justiça é o último reduto da Democracia e o que defende a sociedade das mais diversas malfeitorias. Mas quem faz as leis aplicadas pelos tribunais é o poder político na sua vertente legislativa. Poder este que reside na Assembleia da República. Vale a pena pensar nisto.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Fevereiro de 2025