Para grande espanto
de muitos, a Academia Sueca decidiu este ano entregar o prémio Nobel da
Literatura a Bob Dylan.
Esta escolha
levantou uma grande celeuma porque Bob Dylan é de facto conhecido no mundo
inteiro pelas suas canções e não pelos seus livros de poemas, embora também os
tenha. Discute-se o que é literatura, defendendo muitos que as letras das
canções não têm a dignidade da poesia que deveria ser escrita e publicada em
papel antes de, eventualmente, ser cantada. Uma escritora portuguesa chegou
mesmo a sugerir que no próximo ano a Academia Sueca poderia entregar o prémio a
Quim Barreiros. Para além do notório despeito revelado, o que mais importa nestes
comentários, já que aquele não foi o único, é a revelação de um espírito de
casta mais próprio de literatos e não de quem ama verdadeiramente a cultura no
respeito pelos diversos cultores, pelas diferentes maneiras de ser expressa e
até pelas transformações trazidas pelos novos processos de comunicação. A
instituição de um cânon definidor do que é a literatura, fechando a porta a
toda e qualquer intervenção que não o respeite diz mais sobre o conservadorismo
de quem o defende do que sobre aquilo que se discute. Ironicamente trata-se do
fecho de um círculo histórico: a transmissão da poesia ter-se-à iniciado
através das canções, antes até do surgimento da escrita e a modernidade vem
reconhecer o valor e a importância da poesia cantada nos dias de hoje. Claro
que há muitos escritores que merecem o prémio Nobel da Literatura. Como há
outros cantores cuja poesia é tão importante como a de Bob Dylan. Mas a decisão
da Academia Sueca, para além de reconhecer a qualidade intrínseca da poesia de
Bob Dylan, vinca a sua importância social nas últimas décadas e a influência
que teve na juventude no mundo inteiro ao longo de várias gerações. O cantor
adoptou desde muito cedo o nome de um poeta que muito admirava: Dylan Thomas;
curiosamente, a sua ligação ao mundo literário foi sempre muito profunda, para
além da adopção do nome Dylan, já que acompanhou de muito perto escritores como
Allen Ginsberg e Jack Kerouac.
Apoiar ou discordar
deste prémio não se trata de uma questão de gosto, que se coloca exactamente do
mesmo modo em relação à obra dos galardoados com o Prémio Nobel da Literatura
desde que o francês Sully Prudhomme recebeu o primeiro em 1901. Muitos não
gostarão das canções de Bob Dylan ou da sua forma de cantar, ou mesmo da sua voz,
e estão naturalmente no seu direito. A sua forma de estar ao longo da sua
carreira foi-lhe granjeando admiradores incondicionais, mas também muitos descontentes.
Às diversas classificações que lhe tentaram colar ao longo dos anos foi sempre
respondendo com mudanças, por vezes radicais, na música que ia fazendo. E manifestando
sempre independência de espírito e mesmo alheamento em relação ao mundo da
música e de tudo o que gira à sua volta, tendo nessa atitude a mesma
integridade e coerência da sua arte. Só quem não tem seguido a sua carreira poderá
ficar admirado com o distanciamento perante a atribuição do prémio Nobel, que
muitos logo classificaram como manifestação de arrogância.
A sua obra fica e a
sua importância não lhe advém da atribuição deste prémio Nobel, mas do seu
valor que levou a que Bob Dylan seja desde há muito tempo conhecido e admirado no
mundo inteiro. Como é natural, algumas das suas canções são mais conhecidas do
que outras e merecem ser destacadas pelos poemas e pela influência que tiveram.
“Blowing in the
wind” é certamente uma delas e, na sua simplicidade dos primeiros tempos, foi
esse verdadeiro hino da juventude, editado em 1963 e cantado desde então por
uma infinidade de artistas, que o Papa João Paulo II destacou ao pedir a Bob
Dylan que a cantasse. “Like a rolling stone” ou “Forever young” estão também
entre as suas canções cujos poemas mais importância tiveram nos movimentos
sociais dos anos 60 e 70, em todo o mundo.
Para terminar, o
grito de Dylan em “The Times They Are
A-Changin” é bem um símbolo dos tempos que vivemos, de que a atribuição do
Prémio Nobel da Literatura a Bob Dylan não é mais do que um sinal bem visível.