segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Armistício: mitos e celebrações




Desde muito novo que me lembro de ouvir falar na heróica participação portuguesa na 1ª Guerra Mundial, onde os soldados portugueses teriam demonstrado mais uma vez a sua bravura, nomeadamente na batalha de La Lys ocorrida em 9 de Abril de 1918 que, assim, tinha passado a fazer parte do conjunto das glórias militares portuguesas. Era tido como certo que os soldados do Corpo Expedicionário Português (PEP) tinham lutado com toda a valentia contra o poderoso inimigo alemão, sacrificando-se gloriosamente pelo seu país que, de forma una, lhes tinha confiado essa missão.
Sabemos hoje que a realidade do sucedido não teve nada a ver com aquele mito propagado quer na 1ª República, quer no Estado Novo, embora por razões diferentes. Em primeiro lugar, não houve nada que se parecesse com unanimidade no país, no que toca à participação naquele conflito. Nesta guerra defrontaram-se os representantes de um mundo que estava a acabar, em que os respectivos chefes de Estado até eram quase todos primos que nem se aperceberam bem por que começou o conflito, mas sem capacidade para se sentarem à mesa e evitarem a hecatombe que acabou com 4 impérios.
A decisão da participação portuguesa na guerra ocorreu poucos meses depois do 14 de Maio de 1915, em que morreram centenas de pessoas nas ruas de Lisboa. Afonso Costa e o seu PRP ficaram donos e senhores absolutos do poder, embora não do país, pelo que pressionaram a Inglaterra a pedir a Portugal o apresamento dos navios alemães no porto de Lisboa, o que foi feito em 23 de Fevereiro de 1916. O objectivo assumido era o de conseguir uma “unidade nacional” que lhes permitisse a manutenção no poder, sem limitações, além de Portugal vir a poder sentar-se à mesa com os vencedores. A Alemanha declarou guerra a Portugal e o General Norton de Matos preparou os pouco mais de 50.000 homens do Corpo Expedicionário Português para seguirem para o teatro de guerra, na Flandres. 

Soldados mal preparados, mal alimentados e pior vestidos e calçados para o que os esperava. E o que os esperava era uma desgraça imensa, numa guerra de trincheiras horrível, com a qual Portugal nada tinha a ver, e na qual os soldados portugueses não eram mais do que carne para canhão. Literalmente. Os diversos ministérios da guerra, quer da “União Sagrada”, quer de Sidónio Pais, deixaram os soldados na frente sem procederem à sua necessária rotatividade, a comerem alimentos ingleses que detestavam e com roupas que se desfaziam na humidade das trincheiras. A partir de Março de 1918 os alemães lançaram uma última ofensiva no Somme e, na noite de 8 para 9 de Abril, atacaram o sector português em La Lys numa ofensiva fortíssima de artilharia e posterior ataque de infantaria numa frente de 20 quilómetros que desbaratou as defesas portuguesas, provocando mais de 400 mortos e 6.000 prisioneiros.
Tudo correu mal nesta nossa participação na Primeira Grande Guerra. Tal não impediu que, depois da guerra, Portugal ainda tentasse receber a espantosa indemnização de guerra de centenas de milhões de libras correspondentes a 1.050 libras por cada um dos muitos milhares de civis africanos supostamente mortos na guerra e antes vítimas de bárbaro colonialismo, numa falta de vergonha a vários títulos lamentável.
Por tudo isto mal se percebe o entusiasmo das comemorações portuguesas do centenário do Armistício, que ocorre no próximo dia 11 de Novembro e a que se decidiu dar “grande relevo”. Nem as razões da entrada na guerra, nem a desgraça que foi essa participação são de molde a suscitar orgulhos e festividades militares. Deveriam ser antes motivo de reflexão sobre o nosso papel no mundo e de como os nossos atrasos atávicos servem de base para os maiores disparates dos governantes com sacrifícios acrescidos para os portugueses que não têm culpa nenhuma disso, a não ser pela sua passividade crónica.
A construção de mitos históricos corresponde à necessidade de sublimar colectivamente desgraças e frustrações, dizendo mais de quem a promove do que dos acontecimentos que lhes estão na origem. E os mitos são frequentemente nocivos para as sociedades: lembremo-nos do sebastianismo que se seguiu à derrota de 4 de Agosto de 1578 e do mal que fez e faz à maneira de ser portuguesa.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Nara Noïan - Hier Encore

MEMÓRIAS E NERVOS À FLOR DA PELE




Em muitos países democráticos existe a tradição de os dirigentes políticos, após o exercício de funções de grande relevância, escreverem as suas memórias em que descrevem factos passados, o relacionamento com outros agentes e os sentimentos perante as situações que viveram.
Entre nós, não se tornou ainda habitual que os dirigentes políticos escrevam as suas memórias. Eventualmente, como fez o antigo Presidente Jorge Sampaio, participam na elaboração das suas biografias, através da colaboração de terceiros. Contudo, temos que convir na grande diferença entre a autoria de memórias na primeira ou na terceira pessoa.
Podemos atribuir esta situação portuguesa a várias causas, desde pessoais a sociológicas. Na realidade, não será fácil passar toda uma vivência pessoal ao papel, o que exige a tomada permanente de notas durante o exercício do cargo e uma posterior disponibilidade pessoal para assumir a tarefa dessa escrita, que dá muito trabalho. Também é bem conhecida, entre nós, a inexistência de uma cultura de avaliação do trabalho feito, mesmo de prestação de contas de dirigentes como é um facto corrente nos países de cultura anglo-saxónica. Por outro lado, há altos responsáveis políticos que afirmam não escrever memórias para preservar o presente e o próprio futuro, já que a sua acção se verificou em tempos tão conturbados que o conhecimento de alguns factos poderia ser desestabilizador. É o caso de Ramalho Eanes, cuja presidência ainda coincidiu com o PREC e também com os primeiros tempos de normalização democrática. Penso, no entanto, que ficamos todos a perder com isso, embora Eanes esteja no seu pleno direito ao tomar essa posição.

A excepção portuguesa notória é Cavaco Silva. Publicou as suas memórias de quando foi Primeiro-ministro e acaba agora de publicar o segundo volume sobre o seu exercício da presidência da República. Os motivos para essa publicação são assumidos pelo próprio como uma exigência ética pessoal de prestação de contas à boa maneira anglo-saxónica. Eu acrescentarei que, em minha opinião, um dirigente político tão atacado como ele sempre foi, à esquerda e mesmo à direita, não quis deixar passar a oportunidade de fornecer, para memória futura, a “sua verdade” sobre esses tempos. Se não o fizesse, correria o risco de, no futuro longínquo e mesmo próximo, a sua acção vir a ser descrita apenas pelo que dele dizem os seus adversários, passando ao lado daquilo que ele, eventualmente, achasse que seria mais justo dizer.
Mas não me lembro de que a publicação de um livro de memórias políticas tenha provocado de imediato tantas reações negativas, mais parecendo mesmo ter caído o Carmo e a Trindade. Qual o motivo imediato de tanta contestação? Falta de sentido de Estado, denuncia Carlos César que acrescenta: “mostra atitude de devassa e delação presidencial”. César confessa assim não ter gostado da revelação de situações descritas por Cavaco relativas às reuniões semanais dos primeiros-ministros socialistas com Cavaco Silva, enquanto presidente da República. Parece considerar essas reuniões como se se tratasse de conversas entre amigos à mesa do café e não relações institucionais entre Governo e presidência da República, logo de extrema responsabilidade. Já António Costa diz que não comenta memórias presidenciais, porque tem sentido de Estado. E lá vem outra vez o sentido de Estado que passa assim a ser como a água benta: cada um toma a que quer. Depois, acrescentou-se que o período de tempo a que este volume se refere ainda é muito recente, pelo que o autor deveria deixar passar mais uns anos; a esta crítica quase apetece responder que depois de morto ninguém escreve memórias.
É evidente que o autor destas memórias continua a suscitar uma rejeição profunda por parte de determinados sectores da sociedade portuguesa. Não por acaso, são os mesmos que por ele foram impiedosamente derrotados nas urnas em três eleições legislativas, sendo duas delas com maioria absoluta e duas eleições presidenciais à primeira volta. Claro que também perdeu umas presidenciais, mas das derrotas não reza a História, como se sabe. E, como se costuma dizer, o povo, em quem reside a legitimidade democrática, tem sempre razão quando vota, quer nas suas escolhas, quer nas suas rejeições.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

DEMOCRACIA NEGATIVA



É uma evidência que salta aos nossos olhos: os regimes democráticos, tal como os conhecemos, passam por transformações profundas que poderão mesmo vir a colocá-los em questão.
Não me refiro a aspectos pontuais em que políticos mais ou menos conspícuos se servem de mentiras camufladas ou mesmo descaradas para justificarem as suas actuações. Tal sempre houve em todas as sociedades e, perdoe-se-me o pessimismo, sempre haverá. Tal como é de todos os tempos a capacidade de dizer mal dos adversários, inventando mesmo mentiras sobre eles.
Mas os regimes democráticos têm como substância a possibilidade de o povo escolher entre as diversas opções que lhe são propostas na altura das eleições. As campanhas com os programas e os candidatos permitem aos eleitores perceber quem lhes convém, de acordo com os seus interesses. Estes até poderão ser diferentes entre os mais diversos sectores sociais, e são-no normalmente, permitindo o resultado global atribuir as funções governativas da comunidade como um todo às maiorias que se possam constituir ou ao candidato que recolher mais votos, no caso de candidaturas individuais.
Contudo, nos últimos anos assiste-se, um pouco por todo o mundo, a uma mudança neste paradigma democrático que está a produzir resultados inesperados e a causar espanto em quem não percebe o que se passa e que, na realidade, é tantas vezes responsável pela mudança. As razões poderão ser muitas, desde o fim do mundo bipolar em que duas potências dominavam completamente as suas respectivas áreas de influência até à globalização, passando pelas profundas mudanças trazidas pela tecnologia da informação. O que é visível é uma crescente fuga dos eleitorados para os extremos políticos, abandonando um centrismo que é sempre algo conservador e que, pelo menos na minha opinião, durante décadas foi gerador de uma prosperidade generalizada sem paralelo na História.
A sociedade passou a dividir-se entre bons e maus, para além das clássicas diferenças entre esquerdas e direitas. Perante as mais diversas situações, criam-se ondas de indignação e campanhas mediáticas instantâneas que a internet se encarrega de transformar em manifestações à escala global. E ninguém tem capacidade para colocar os factos que deram origem a essas ondas de indignação em questão porque ninguém quer ficar do “lado dos maus”, abandonando-se a razão e mesmo o bom-senso. A sociedade mundial é hoje, mais do que uma sociedade da informação, uma sociedade da indignação. O “somos todos Charlie” ou “me-too” são apenas exemplos dessas vagas que tantas vezes acabam por engolir, levar na frente e destruir os próprios que lhes deram origem.

E tudo isto se transferiu para as democracias. Vimos este fenómeno nos Estados Unidos da América nas últimas eleições presidenciais e também no referendo do Reino Unido que deu origem ao Brexit. Nas eleições presidenciais no Brasil a demonização do adversário atinge níveis nunca vistos. Chega-se a afirmar que não interessa quem está com quem e o que fez, mas sim impedir que o adversário vença, e não estou aqui a defender ou atacar seja quem for em concreto, mas apenas a descrever o que se passa, como exemplo das mudanças a que assistimos em todo o mundo.
As discussões políticas transferiram-se do campo das ideias para o campo da moral, em que sistematicamente cada lado extremado se arroga de superioridade nessa matéria. Como sabemos da História, sempre que alguém, de esquerda ou de direita, se arroga de superioridade moral e chega ao poder, quem fica a perder é a Liberdade.
Os resultados estão à vista e não são animadores para quem acredita no valor da Democracia. Quem sai sistematicamente vencedor destas lutas são populistas que defendem velhas ideias que ressumam nacionalismos, xenofobias e mesmo racismos, aproveitando-se oportunisticamente dos medos que eles próprios fomentam e a tecnologia difunde. Num futuro próximo, estes vencedores até poderão dar a ideia de que continuam a respeitar os cânones democráticos mas, na realidade, os regimes aproximar-se-ão cada vez mais de fachadas normalizadas de sistemas destruidores da cidadania e da liberdade.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

HONRA, DESONRA, LEALDADE, FALSIDADE



A ópera bufa a que os portugueses têm sido obrigados a assistir e que se chama “furto de Tancos” é, como tantas vezes sucede nas peças de teatro, mesmo aquelas que à superfície parecem ligeiras, um mergulho nas profundezas de uma sociedade, no caso a portuguesa de 2018. Tem-nos sido dado a observar a mais completa inexistência de valores que é suposto serem a base de funcionamento de qualquer sociedade. E isto, no núcleo central do último reduto da defesa da soberania, que são as Forças Armadas. Um caso que à partida teria uma gravidade limitada veio a ter desenvolvimentos complexos, envolvendo oficiais das mais altas patentes, até chegar ao próprio gabinete do ministro da Defesa que acabou por se demitir. Há Majores, Coronéis e Generais a desmentirem-se mutuamente, a apresentarem relatos contraditórios e documentos por assinar, enquanto as chefias máximas militares se encolhem.
Claro que a situação política e o próprio ambiente social do país não são inseparáveis de tudo o que se está a ver. Não vale a pena espantarmo-nos se o deslaçar da sociedade que se observa um pouco por todo o lado tiver também já corroído alguns sectores das Forças Armadas, precisamente aqueles que estão em contacto directo com o Governo.
É que as coisas estão muito mais ligadas do que às vezes possa parecer. O país tem assistido a uma encenação directamente decorrente da solução governativa saída das eleições de 2015. Pela primeira vez na democracia portuguesa, quem ganhou as eleições não formou governo, tendo o partido Socialista criado uma disrupção política ao formar um Governo minoritário com o apoio parlamentar dos partidos mais à esquerda, contrariando tudo o que se afirmara até então. A solução, que é evidentemente legítima, democrática e constitucional, introduziu contudo uma forma de governar que, se muitos consideram hábil, mais não é do que um jogo de espelhos em que os três partidos que sustentam o governo vão dançando as suas próprias danças, juntando-se no momento da aprovação dos Orçamentos de Estado.

E os enganos constituíram-se assim na essência da governação. Desde que o primeiro Orçamento de 2016 voltou para trás da Comissão Europeia, o Governo mudou em 180º o rumo que tinha sido definido pelo PS nas eleições e assumiu o cumprimento dos critérios orçamentais ditados pela União Europeia. Claro que, perante essa mudança, Wolfgang Schauble (lembram-se dele?) e o BCE prestaram toda a ajuda preciosa no controlo das taxas de juro. A execução dos orçamentos seguintes veio mostrar como esses objectivos foram conseguidos: queda abrupta no investimento público, cativações um pouco por todas áreas governativas e uma carga fiscal inaudita baseada essencialmente em impostos indirectos a que ninguém pode fugir. A aprovação dos orçamentos é um momento de superior hipocrisia política, porque já se sabe que a taxa de execução do investimento previsto dificilmente superará os 50% e a libertação das cativações previstas dependerá apenas da aproximação do objectivo do défice e não das necessidades do país. E mesmo o proclamado grande crescimento da nossa economia afinal nunca passa além de ser dos mais fracos da União Europeia.
Perante toda esta realidade, que desmente a retórica governativa, os partidos da esquerda parlamentar calam-se e consentem inclusivamente a degradação generalizada nos serviços públicos. Situação que alguém terá que inverter num dia destes, à custa de dinheiro que não existe, a não ser com aumento da dívida pública que, essa, continua a níveis estratosféricos.
Em política as atitudes têm consequências que vão muito além do que às vezes se imagina. As pessoas comuns apercebem-se perfeitamente do ambiente hipócrita de enganos e fantasias criado no país, origem de um sentimento generalizado de apatia e indiferença. Não será por acaso que nos últimos dias se soube que Portugal surge na quinta posição entre os países mais corruptos. E sabe-se que de um ambiente de falsidade generalizada nunca surgiu nada de bom; antes pelo contrário, é o terreno fértil para o germinar de nacionalismos e surgimento de “salvadores providenciais”, tantas vezes trazidos pelos próprios votos da democracia.

sábado, 13 de outubro de 2018

As ministras

Azeredo Lopes foi-se embora do Ministério da Defesa. Em boa verdade, já só ocupava o cargo sem exercer, há muito tempo.
Agora, as expressões das duas ex-colegas de Governo na sua última aparoção pública como tal são um tratado.