segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

UM MUNDO CADA VEZ MAIS COMPLEXO

Começa a fazer o seu caminho a ideia de que um “capitalismo sem limites” assentou arraiais no mundo e que é o único responsável pela desigualdade e exclusão social que todos vemos aumentar à nossa volta. O próprio Papa Francisco fala nisso, para grande satisfação dos que há anos culpam o chamado neo-liberalismo por todos os nossos males, incluindo saudosistas do “socialismo real dos amanhãs que cantam”, ingénuos bem pensantes sempre solidários com os sofredores desde que higienicamente bem afastados ou mesmo todos os outros cientistas sociais com soluções milagrosas para todos os males da sociedade. Claro que muitas pessoas há, que solidária e genuinamente se preocupam e sofrem com as dores físicas e íntimas dos semelhantes, sem tentarem usá-las para atingirem os seus próprios fins.
O que vemos à nossa volta quer nas proximidades, quer no resto do mundo, é no entanto demasiado complexo, sério e novo para ser explicado pelos velhinhos manuais simplistas dos ricos a viverem à custa dos pobres.
A economia mundial mudou muito nos últimos anos e ainda vai mudar muito mais, assim como a forma como se faz política, e também cá em Portugal. A globalização e opções políticas erradas patrocinadas pela então Comunidade Europeia levaram à desindustrialização do país, com a miragem dos serviços a substituir com menos esforço os trabalhos duros da agricultura, da pesca e da fábricas.
Entretanto, o mundo foi mudando com grande rapidez. As tecnologias informáticas associadas à desmaterialização do dinheiro permitiram aos detentores e gestores de grandes quantidades de dinheiro como os fundos soberanos e de pensões investir naquela parte do mundo e no momento em que a rentabilidade é a maior. Os investimentos financeiros passaram a ser mais atractivos do que os investimentos na chamada economia real, porque com maires lucros, obtidos mais rapidamente e sem o trabalho de criar empresas para criar e vender produtos transacionáveis.
A finança acabou por entrar também na área dos investimentos públicos. Fazer estradas, hospitais e escolas deixou de ser uma actividade económica para passar um negócio essencialmente financeiro através das parcerias público-privadas, com custos muito maiores para os contribuintes que deixaram aliás, de ter capacidade de perceber o que se passa nessa nova esfera e portanto de reagir em conformidade. Os bancos passaram de financiadores da economia a intermediários de capitais e mesmo financiadores da dívida pública.
A “financeirização” da economia trouxe ainda consigo outras alterações na socidade e na política, que estão longe de ser bem percebidas e compreendidas pela população em geral, mas que vão ter consequências sérias a curto ou médio prazo. Sempre se assistiu à existência e trabalho de lobbies das diferentes actividades económicas junto dos governos. O que se passa hoje é, no entanto, muito diferente. O poder político foi tomado por dentro pelas diversas actividades económico/financeiras. As próprias leis são feitas, não por serviços públicos, mas por sociedades de advogados contratadas para tal. A promiscuidade da passagem directa de pessoas entre cargos governamentais e gestão de empresas é apenas a face mais visível da tomada da política pela economia. E não é por qualquer economia, é mesmo a finança, até porque residem aí as únicas pessoas que entendem bem as técnicas sofisticadas de gestão dos “produtos financeiros”: como exemplo, basta ver o que se tem passado com os “SWAPS”.
Quem não tem nem quer ter nada a ver com este estado de coisas, afasta-se. É por isso que a política atrai cada vez menos aqueles se preocupam verdadeiramente com a coisa pública, com o servir os seus concidadãos: esquerda e direita alternarão cada vez mais como fantoches ao serviço de quem efectivamente manda, quando não juntas como agora na Alemanha, mostrando à luz do dia que na realidade não são hoje alternativa uma à outra. Até quando? Não sei. Mas tenho medo do que se seguirá.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 2 de Dezembro de 2013

domingo, 1 de dezembro de 2013

Calafetar a Alemanha

"Para evitar a repetição da I Guerra e das cenas de 1940, Mitterrand resolveu exigir o euro, que teoricamente evitaria uma nova hegemonia de Berlim. Mal preparado e mal pensado, o euro levou em pouco tempo ao resultado contrário: ao empobrecimento dos países mais fracos, da própria França ao nosso pindérico Portugal, e estabeleceu a Alemanha como a única potência económica e financeira da região – o que não deixa de a consolar e satisfazer e a conduziu a um isolamento pacato e certamente feliz, que não quer ver perturbado pelas raças inferiores do Sul e os seus sarilhos. O acordo entre os socialistas do SPD e as tropas de Merkel revela bem o estado da Alemanha em 2013. O SPD conseguiu alguns limitados gestos a benefício da populaça mais pobre. Merkel conseguiu que não se mexesse no resto, nomeadamente na política europeia: nada de dívidas soberanas, nada de défices para esconder a miséria de cada um e, principalmente, nada de eurobonds para obrigar o contribuinte alemão a pagar a irresponsabilidade e a incúria de estranhos. O contribuinte alemão usará as suas poupanças para viver bem, embora modestamente, e para se passear no Verão por climas quentes, como de resto inteiramente merece. Do que Merkel mais gosta na Alemanha são janelas bem calafetadas. Chegou agora a altura de calafetar a Alemanha. Por aqui, nem a esquerda, nem a direita falaram disso. Continuam ainda em 1988."

Vasco Pulido Valente, Público

sábado, 30 de novembro de 2013

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

VIVA O ALMADA, PIM!



Quem algum dia teve aulas no “Edifício das Matemáticas”, terá eventualmente uma vaga lembrança dos frescos que decoram as paredes laterais do átrio de entrada. Recordar-se-à, talvez, que são bonitos e diferentes e têm relação com as ciências exactas – as mais exactas de todas – que lá se ensinam e investigam, mas provavelmente pouco mais. Os conimbricenses em geral também saberão só isso ou, eventualmente, ainda um pouco menos.
E no entanto, aqueles frescos são obras de arte a conhecer. Não só pela beleza e significado artístico e cultural, mas porque são as únicas obras daquela dimensão existentes em Coimbra, da autoria de Almada Negreiros.
Passam este ano 120 anos sobre o nascimento da figura ímpar da Cultura portuguesa do século XX, que um dia escreveu ser Portugal “A Pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões”. Almada foi um artista multifacetado, tendo colaborado logo em 1915 no primeiro número da revista “Orpheu” e o seu modernismo ainda hoje surpreende pela irreverência iconoclasta, tendo assumido desde cedo a bandeira do futurismo com Santa Rita Pintor.
Revoltando-se contra o cinzentismo da literatura portuguesa e a decadência passadista da cultura nacional em geral, Almada fez de Júlio Dantas o seu alvo e escreveu o famoso “Manifesto Anti-Dantas” que muitos contemporâneos nossos deveriam ler para fugirem do bolor mal cheiroso de algum academismo que ainda hoje para aí anda, por vezes a coberto se um pseudo modernismo de pacotilha e, na realidade, velho, muito velho. No entanto, Dantas foi para Almada apenas o símbolo daquilo que era preciso mudar com urgência, uma sociedade tradicionalista, um país que já então precisava da “Invenção do Dia Claro”: “Basta pum basta!!! Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero!”
Almada caminhou sempre na vanguarda, desde o ballet (depois de assistir às representações dos Ballets Russes de Diaghilev) à pintura, passando pela literatura. São suas as decorações a fresco das Gares Marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, bem como o painel “Começar” da entrada da Fundação Calouste Gulbenkian. O seu auto-retrato de 1943 e o retrato de Fernando Pessoa para o restaurante Irmãos Unidos, antigo ponto de encontro do grupo do Orpheu são justamente famosos e icónicos da pintura portuguesa do século XX.
Neste mês de Novembro, integrado nas comemorações dos 120 anos do seu nascimento, decorreu em Lisboa, na Fundação Gulbenkian, o Colóquio Internacional Almada Negreiros. As comemorações incluíram ainda tertúlias, exposições e visitas guiadas. Tudo em Lisboa, claro, como é de uso.
O leitor, se quiser dar-se a esse trabalho, vá ver por si os frescos da entrada do Departamento de Matemática da FCTUC da Universidade de Coimbra, que não perderá o seu tempo Os frescos de Almada estão lá a cumprir a sua função, não num museu, mas no local para que foram criados. Um deles é dedicado à “Matemática portuguesa ao serviço da epopeia nacional” e o outro representa as principais figuras de “A Matemática desde os Caldeus e Egípcios até aos nossos dias” que, curiosamente, não esquece o “encontro com os árabes na península”.

Sobre a sua arte passou já o crivo do tempo, único que atesta a qualidade e importância artística de um autor. Nos dias de hoje, não há uma arte moderna, porque coexistem todas as correntes. É por isso surpreendente que ainda hoje as manifestações artísticas de Almada Negreiros surjam associadas à palavra “moderno” e que muitas das suas provocações ainda choquem tantos espíritos.


Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 de Novembro de 2013 

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Sofia


KENNEDY, ROBERT



As efemérides são uma boa ocasião para lembrar alguém ou alguma situação marcante, para daí extrair algo que nos pareça interessante ou mesmo exemplar para os dias de hoje. É quase sempre impossível, no reduzido espaço de uma crónica, dizer tudo aquilo que respeita a um assunto ou pessoa que nos marcou intensamente. Com John Kennedy, a quem dediquei a minha última crónica, tudo parece atingir uma grandiosidade excepcional, o que tem dado origem a numerosos livros e filmes sobre as circunstâncias da sua morte, mas também sobre a sua vida e até sobre quão diferente poderia ter sido o mundo se não tivesse ocorrido o 22 de Novembro de 1963 em Dallas. Basta pensar na guerra do Vietname, da qual Kennedy discordava. Mas quando se aborda um assunto destes, aparecem tantos fios para puxar, que é difícil escolher.
Falando de John Kennedy, não se pode deixar de falar da sua própria família. Por exemplo, dos quatro filhos de John e Jackie Kennedy, hoje apenas sobrevive Caroline Bouvier Kennedy. E é alguém que faz bem jus aos pais que teve. Com ideias próprias que defende com firmeza, é escritora e advogada, sendo desde o mês passado a Embaixadora dos EUA no Japão.
Mas de toda a família Kennedy, uma pessoa há que desde sempre me habituei a considerar como exemplar e a admirar como homem público. Trata-se de Robert Kennedy, um dos irmãos do antigo presidente. Robert foi o grande apoio de Jonh enquanto candidato a presidente e depois enquanto exerceu a presidência dos EUA, estando presente em todas as suas grandes decisões políticas. Diferentes um do outro até mais não, completavam-se no entanto de uma forma tão impressionante que deles disse o historiador Arthur Schlesinger: “John era um realista brilhantemente disfarçado de romântico, sendo Robert um romântico obstinadamente disfarçado de realista”.
Robert Kennedy foi nomeado pelo irmão como Ministro da Justiça (General Attorney) tendo sido um perseguidor determinado do crime organizado. De tal forma se dedicou a esta tarefa, que até morrer carregou a cruz da ideia de a sua acção ter de alguma forma contribuído para o assassinato do seu irmão John.
Robert dedicou-se à vida pública com toda a sua energia, levando para essas tarefas as suas características pessoais de entrega total. Robert Kennedy tinha uma enorme sensibilidade para as causas sociais, revoltando-se contra as injustiças, onde quer que elas surgissem, fosse na segregação racial, fosse nas questões dos índios ou apenas na pobreza. É preciso lembrar que Robert nasceu na família Kennedy que, sendo uma família riquíssima, nunca deixou de manifestar solidariedade para com os fracos. Basta dizer que o enorme hospital pediátrico de Boston todos os anos apresenta a factura dos prejuízos à família Kennedy, que os cobre sistematicamente, isto desde muito antes do aparecimento do conceito de responsabilidade social das empresas.
Após a morte do irmão, Robert deixou-se abater, criando a ideia de que abandonaria a vida pública. Mas por volta dos fins de 1967, pareceu que uma nova vida o tomou e decidiu em Março de 1968 candidatar-se à presidência dos EUA. E entrou na campanha da única maneira que sabia: sem medo e como se fizesse uma cruzada contra o que achava serem os males do seu país. Dizia que vivia um dia de cada vez, sabendo perfeitamente que desafiava a sorte ao agir daquela maneira.
Tal como o irmão Jonh, caiu às balas de um assassino, em 6 de Junho de 1968 logo após a vitória no Estado da Califórnia para a sua nomeação a candidato pelo Partido Democrata.
Não tendo sido presidente, a memória da sua vida e da sua actividade, designadamente a favor dos direitos dos negros em plena década de 60 e a luta contra o crime organizado mas, essencialmente, a alegria e a energia que colocava no que fazia e no que acreditava, fazem de Robert Kennedy um símbolo e um exemplo a seguir, bem diferente do cinismo e falta de alma da generalidade dos políticos de hoje.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em !8 Novembro 2013

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

KENNEDY, JOHN

Faz este mês cinquenta anos que um presidente americano entrou de forma trágica na mitologia do século XX. Foi a 22 de Novembro de 1963 que John Fitzgerald Kennedy foi brutalmente assassinado a tiro numa avenida de Dallas. Nasceu numa das famílias mais ricas e influentes do Massachusetts e combateu na Marinha americana na II Guerra Mundial, tendo sido condecorado pela sua prestação.
Depois de uma breve carreira na Câmara de Representantes e no Senado, John Kennedy concorreu à Casa Branca em 1960 pelo Partido Democrático e venceu as eleições por uma margem reduzida contra o republicano Richard Nixon. Estava-se ainda no início da influência da televisão, mas já nessa altura se disse que, se o debate crucial entre os dois candidatos tivesse passado apenas na rádio, Nixon poderia ter ganho, porque não se veria o seu rosto cheio de suor e, acima de tudo, não se veria um Kennedy jovem, bem-parecido e com uma segurança sorridente que atraia imediatamente a simpatia. No entanto, Kennedy era possuidor de de uma formação teórica sólida e uma rara capacidade oratória que lhe possibilitava construir frases que ainda hoje são utilizadas por imensos políticos que citam em vez de inovar. Data dessa altura a sua célebre frase: “não perguntem o que o país pode fazer por vocês, mas sim o que vocês podem fazer pelos EUA”.
Enquanto presidente, teve fracassos e sucessos. Entre aqueles, o maior será certamente o fiasco da invasão da Baía dos Porcos em Cuba. Mas os sucessos ultrapassam certamente os fracassos. Era o tempo do apogeu da Guerra Fria, que acompanhava os grandes sucessos políticos da União Soviética e do pico do seu poderio militar. Apesar de Kennedy e Nikita Krustchov terem chegado a acordo sobre o Tratado para a Proibição da Armas Nucleares em 1961, a União Soviética decidiu instalar bases de mísseis em Cuba, colocando os EUA à mercê directa das suas armas. Kennedy foi de uma firmeza total, tendo Krustchov acabado por ceder, retirando os mísseis e levando-os de volta para a URSS.
Kennedy foi um defensor dos direitos humanos, apoiando decisivamente o combate ao racismo, chaga vergonhosa da sociedade americana de então. Se não esteve presente na manifestação em que Martin Luther King soltou o seu famoso “I have a dream”, recebeu na Casa Branca os seus principais responsáveis logo após a sua realização, prestando-lhes assim a sua homenagem ao mais alto nível.
É inesquecível a deslocação de Kennedy a Berlim, aquando da construção do infame Muro pelo regime comunista da RDA e a sua célebre frase “Eu sou um berlinense”, que acompanhou com uma gigantesca ponte aérea de apoio aos cidadãos aprisionados na parte sitiada da cidade.
Muitos de nós já o esqueceram ou os mais novos até não o saberão, mas no fim dos anos 60 do século passado, houve homens que foram á Lua. Também isso se deve a Kennedy, tendo sido o mote de mais uma das suas frases famosas que ficaram para a História: “escolhemos ir à Lua nesta década, e fazer mais coisas, não por serem fáceis, mas por serem difíceis”.
Mas tudo acabou para John Kennedy naquele cortejo de má memória em 22 de Novembro de 1963, na capital do Texas. E com ele morreu também grande parte do mundo como era, porque é impossível que tudo o resto fique como era quando um grande Homem com os seus defeitos e virtudes desaparece daquela forma trágica, sem que até hoje haja uma explicação credível para o que aconteceu.