segunda-feira, 17 de julho de 2017

EURSAX






Na quarta feira da semana passada, a Casa da Música foi palco de um concerto notável integrado no II Congresso Europeu de Saxofone. Com a plateia repleta de jovens músicos dos mais diversos países, foi possível ouvir obras interpretadas por uma orquestra e solistas de saxofone que demonstraram um virtuosismo contagiante que levou a assistência conhecedora ao rubro.
O EURSAX é o maior evento de saxofone da Europa e a cidade do Porto conseguiu atrair a realização da sua segunda edição, tendo a primeira decorrido em 2014 na Ciudad Real - Espanha. A organização apontou as diversas vantagens comparativas que Portugal apresenta nos dias de hoje para acolher este importante evento, designadamente a sua importância como destino turístico, a nossa diversidade cultural que atrai visitantes de todo o mundo. Em particular, é referido que, “na sequência de ser Capital Europeia da Cultura, a cidade do Porto mostra-se liderante na produção de música contemporânea, através da Casa da Música, influenciando não apenas o norte de Portugal, mas na realidade o sul da Europa”.
O programa do Congresso, com a duração de quatro dias, incluiu concertos de gala, masterclasses, conferências e recitais em vários locais do Porto, como o Conservatório de Música do Porto, a Igreja de Cedofeita, a Igreja dos Clérigos e a Casa da Música, proporcionando às centenas de congressistas a participação em diversos eventos culturais ligados ao instrumento musical da sua eleição, mas também um conhecimento da Cidade e das sua ofertas turísticas. O Porto teve mais umas centenas de visitantes que, com toda a certeza, depois de quatro dias de estada, irão divulgar a cidade por toda a Europa como destino turístico, mas também cultural ao mais alto nível.

O concerto de gala do dia 12 na magnífica sala Suggia da Casa da Música contou com seis afamados solistas de saxofone, de que me permito destacar talvez Mario Marzi que tocou há pouco tempo no Teatro alla Scala de Milão sob a direcção de Riccardo Muti e que aqui interpretou  a peça “Entente” de Gerry Mulligan de uma forma arrepiante e Jérôme Laran, impressionante ao extrair sonoridades inimagináveis do seu saxofone em “ Paganini Remix” de Shoichi Asai. Estarei a ser injusto com os outros intérpretes, evidenciando apenas o virtuosismo destes dois intérpretes. Em particular, a interpretação de Mário Marques, em estreia mundial, da peça “Concertino” de António Vitorino de Almeida impressionou a plateia pela beleza da música e capacidade interpretativa. No seu final foi tocante ver o compositor subir ao palco para abraçar comovido o solista e o maestro, cumprimentando toda a orquestra pela interpretação. O saxofonista Joaquim Franco encerrou o concerto interpretando “Hungarian Dance” de Pedro Iturralde com a secção de cordas da orquestra de forma superior, impressionando o som límpido e claro do seu saxofone.
Falta referir a orquestra, que foi mais uma vez absolutamente impecável, o que nestas obras com solos de um instrumento tão especial como é o saxofone, já não seria dizer pouco. As entradas e saídas, bem como a interpenetração com as partes do instrumento solista e os jogos de intensidade e tempo foram de uma precisão e capacidade interpretativa notáveis, sendo uma peça essencial do êxito do concerto. A satisfação é tanto maior quanto se tratava da Orquestra Clássica do Centro dirigida pelo seu Maestro titular José Eduardo Gomes que demonstrou, para além da direcção, uma capacidade de interligação com solistas de um virtuosismo assinalável que não se vê todos os dias. Um orgulho cultural para Coimbra, que possui hoje uma orquestra profissional capaz de executar os programas mais exigentes que todos os espectadores tiveram a oportunidade de apreciar a aplaudir com entusiasmo.

Se este concerto aconteceu no Porto, logo menos acessível ao público conimbricense, não posso deixar de aqui referir que, integrado no 9º Festival das Artes, a Orquestra Clássica do Centro vai realizar um concerto no próximo dia 22 de Julho no anfiteatro Colina de Camões na Quinta das Lágrimas. O concerto designado “ De Portugal a Viena via Paris” apresenta um programa excelente, com duas sinfonias de Mozart, uma abertura de Marcos Portugal e o “Entr’acte de Rosamunde de Schubert e é absolutamente a não perder. O maestro convidado será Andrew Swinnerton que já todos conhecemos das anteriores edições do Festival das Artes, como integrando a respectiva direcção artística. Aliás, todo o programa deste Festival das Artes é mais uma vez atractivo e de grande qualidade, merecendo a atenção e a visita de todos os que vêem na Cultura o alimento necessário do espírito e o principal instrumento contra a barbárie. No concerto de encerramento do Festival no dia 23 de Julho actuará a Orquestra Gulbenkian, que nessa noite será dirigida pelo maestro titular da Orquestra Clássica do Centro José Eduardo Gomes, outro concerto a não perder.

Fotos retiradas de  https://www.facebook.com/OrquestraClassicaCentro/

segunda-feira, 10 de julho de 2017

A cultura em tempos de transição



Se há algo que caracteriza os tempos que estamos a viver é uma extraordinária diversidade de experiências, de modos de sentir o mundo e mesmo de viver que existem de forma simultânea. Isto verifica-se em todos os aspectos, desde a política, à organização social, à religião e mesmo na organização do trabalho e da economia, com as máquinas a entrar decisivamente no que dantes era apenas humano.
É hoje claro, ao contrário de teorias que foram moda há poucas décadas, que o mundo está a passar por uma fase transitória sendo que, se conhecemos o que se passou até agora, não é ainda perceptível o que virá a seguir que poderá depender não de uma evolução contínua, mas de um pequeno facto disruptivo com consequências gigantescas. O que já é certo é que o tão celebrado “Fim da História” de Fukuyama foi tudo menos uma realidade, existindo hoje um mundo multipolar com ressurgimentos de nacionalismos diversos, com novas facetas de radicalismos religiosos e mesmo um país gigantesco com prática completamente capitalista sob direcção férrea de um partido comunista, a China.
A Cultura não foge a esta situação de diversidade algo anárquica. Sente-se que hoje não aparece nada de verdadeiramente original, assistindo-se a um estagnar da evolução artística. Por outro lado, como a tecnologia e a globalização colocaram o mundo inteiro ao dispor de qualquer cidadão, a riqueza de tudo quanto foi produzido pela humanidade ao longo da sua História está de certa forma ao dispor de todos, o que se transforma numa oferta gigantesca e impossível de ser totalmente absorvida por qualquer pessoa.
Será que aquilo que os actuais meios oferecem continua a ser cultura? Há algumas décadas T.S. Elliot via a cultura como caminhando para um fim através de uma decadência contínua que acompanharia o fim das elites necessárias à existência da “alta cultura”. Já George Steiner colocou em causa a simples possibilidade da cultura, depois das mortandades das duas guerras mundiais e, em particular, do extermínio gratuito de seis milhões de judeus do Holocausto. É o próprio conceito de Cultura que parece estar igualmente em fase de transição para outra coisa que não tem muito a ver com aquilo que vem de há séculos.

Nos nossos dias, mais parece que a cultura foi substituída pelo espectáculo. A produção artística foi tomada pela publicidade e pela organização de apresentações públicas de massa. Só interessa aquilo que vende, que dá rendimento imediato, logo que responde às aspirações e aos desejos das multidões que acorrem em uníssono a aplaudir os seus ídolos fabricados pelas máquinas produtoras.
Não se pense que me refiro apenas à chamada música popular, embora essa seja a manifestação artística que hoje em dia representa melhor o fenómeno da massificação e da completa ausência da essência da arte que é a beleza, tendo nos últimos anos enveredado por um caminho autofágico de substituição permanente de obras e artistas com uma velocidade estonteante. Também na literatura se verifica o mesmo fenómeno. Nunca se publicou tanto entre nós e nunca houve autores com edições tão gigantescas mas que de obras literárias só têm a forma exterior e o facto de terem letras no interior. A pintura, a partir das estéticas inovadoras dos primeiros decénios do século XX, entrou por caminhos estranhos à definição de arte, alimentada por “especialistas” que com isso ganham muito dinheiro. Na realidade como a maioria das pessoas não são capazes de detectar o mínimo de qualidade artística nas obras de autores incensados, torna-se necessário haver elites pretensamente conhecedoras que iluminem os espíritos e garantam que aquelas obras têm valor. E, como se confunde valor com o custo pelo qual são transacionadas, vira-se a essência da arte ao contrário, através da sua mercantilização e da vitória do efémero, banal e tantas vezes até grotesco sobre o labor solitário e inspirado de tantos artistas considerados menores apenas por não entrarem no mercado absurdo do mau gosto. O cinema tornou-se hoje em grande parte uma amálgama infantilizada de efeitos visuais, violência e barulho que não tem nada a ver com aquilo a que ainda não há muitos anos se chamava a sétima arte. A música dita erudita teve igualmente uma evolução que quase a liquidou mas que, mercê talvez das suas características intrínsecas, nos permite hoje viver quase num paraíso, tal é a oferta e de tão grande qualidade. Os caminhos de composição por que enveredou no século XX até à chamada música concreta desembocaram num beco sem saída, mas a evolução tecnológica colocou à disposição de todos não só as obras maravilhosas de imensos compositores durante séculos, incluindo contemporâneos, mas também as interpretações mais diversas dessas mesmas obras.
Na sequência de T.S. Elliot há quem diga que, nos dias de hoje, a cultura já morreu, como acontece com Mario Vargas Llosa. De facto, o espectáculo tomou conta de boa parte do espaço público, relegando a cultura para o interior de salas, sejam das nossas casas, sejam de museus ou de auditórios. Mas, curiosamente, nunca como hoje houve tão grande afluência aos museus. Observar o resultado do trabalho de grandes artistas como a Pietà de Miguel Ângelo ou a Guernica de Picasso é muito diferente de olhar para a sanita provocadora de Marcel Duchamp ou as obras de Damien Hirst e finalmente, cada vez mais pessoas percebem isso mesmo, e acorrem aos museus de “arte antiga” como nunca.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

“Doces águas e claras do Mondego, Doce repouso de minha lembrança”



“Doces águas e claras do Mondego,
Doce repouso de minha lembrança”
Foi através de referências às águas do Mondego que Camões fixou na Arte a sua passagem por Coimbra. E tal não aconteceu por acaso. A relação de Coimbra com o Mondego é tão antiga que a cidade deve a sua existência ao próprio rio. Recuando até tempos tão antigos como o dos Fenícios, o rio Mondego era navegado desde a sua foz até precisamente ao ponto onde as montanhas começavam e o limite da navegação se situava. Naquele primeiro monte se veio a situar uma pequena povoação que cresceu até os romanos lhe reconhecerem a importância estratégica e lhe chamarem Aeminium.
Passaram séculos e civilizações várias até que no início do século XII um jovem chamado Afonso Henriques fez dela a capital do seu reino em construção, que haveria de ser Portugal. Coimbra é hoje a cidade que todos conhecemos, herdeira deste passado e do muito mais que desde então se passou, incluindo a Universidade que se transformou no seu símbolo universal. E se a cidade ao rio se deve, é notória a difícil relação que com ele teve durante muitos anos, mais parecendo que lhe virava as costas, como ainda hoje é visível em boa parte das suas margens no interior da área urbana. Aquele rio a que os conimbricenses chamavam carinhosamente “basófias”, só foi domado nos anos setenta/oitenta do século XX, com as obras do “Aproveitamento Hidráulico do Mondego” que incluíram o sistema constituído pelas barragens Aguieira/Fronhas como instrumento de regulação de caudais, para além da produção eléctrica.
Apesar disso, de vez em quando ainda lá vêm cheias, o que teoricamente não deveria acontecer. A de 2001 foi tão intensa que, para além dos prejuízos nas margens da cidade, danificou ou destruiu mesmo grande parte das obras do Baixo Mondego, para além dos prejuízos que causou à produção agrícola. Mais recentemente, todos nos recordamos das cheias dos últimos anos que danificaram gravemente as obras de aproveitamento das margens, o Parque Verde tão solicitado pela população e inundaram também o Mosteiro de S.ta Clara-a-Velha. As consequências da última cheia, em Janeiro de 2016, são ainda visíveis pelos danos nas chamadas “docas” do Parque Verde que não voltaram a funcionar desde então. A situação foi tão grave que o Governo encomendou um relatório técnico à Ordem dos Engenheiros para se determinar as causas do sucedido e apontar soluções para evitar repetições no futuro. Sendo o relatório chamado “Caracterização das condições de escoamento do rio Mondego que deram origem às inundações em Coimbra em Janeiro de 2016” datado de Setembro de 2016, só foi apresentado publicamente em Janeiro de 2017, faz agora portanto, seis meses. O relatório apresenta inequivocamente as condições de exploração das infra-estruturas existentes, leia-se barragens, como condicionante principal da ocorrência de cheias no Mondego. É, aliás, muito fácil perceber porquê. Não havendo uma estrutura que, a nível superior, concilie os diversos interesses contraditórios em jogo, muito difícil será evitar que se verifiquem novas situações de cheia em Coimbra. Sendo a EDP responsável pela exploração da barragem da Aguieira e sendo o seu objectivo a maximização da produção eléctrica, muito dificilmente a APA (Agência Portuguesa do Ambiente) conseguirá que os níveis da barragem da Aguieira estejam permanentemente dentro dos parâmetros de segurança.
O empreendimento do “Aproveitamento Hidráulico do Mondego” foi uma das obras mais marcantes de toda a região Centro, nas últimas décadas. Como os excelentes técnicos que nele trabalharam durante anos sabem, após a conclusão das obras deveria ter sido constituída uma Entidade com capacidade de gestão e exploração dos Planos de aproveitamento hídricos de fins múltiplos, como sucedeu, por exemplo, no Alqueva com a EDIA, não abandonando uma estrutura tão complexa e valiosa aos diversos interesses próprios das entidades de exploração. As conclusões de um relatório tão importante não podem ser esquecidas, sendo necessário saber exactamente o que está a ser feito, seis meses depois da sua apresentação e um ano após a sua elaboração. A relação da cidade de Coimbra e da sua região com o rio Mondego é demasiado importante para que fique tudo no esquecimento de uma qualquer gaveta.
Não se trata apenas de evitar que Coimbra volte a ser inundada e que as suas margens estejam permanentemente à mercê da Natureza. É todo o território banhado pelo Mondego nos seus troços designados médio e baixo Mondego que exige um acompanhamento constante e conhecedor dos múltiplos factores em jogo: técnicos, económicos e sociais.
Para que seja, como Camões também cantou:
“Vão as serenas águas
do Mondego descendo
mansamente, que até o mar não param;”

segunda-feira, 26 de junho de 2017

A Beira Interior ainda é Portugal?



Esta é a crónica que eu desejaria nunca ter de escrever. Como quem costuma ler estas linhas sabe, considero-me um Beirão, antes de qualquer outra coisa. As minhas raízes estão na Sertã e na Aldeia de S. Francisco de Assis, bem perto da Pampilhosa da Serra. O que significa algum conhecimento daquela zona e sobretudo, uma grande proximidade afectiva. Costumo dizer que quando ando por lá e sinto o cheiro a carqueja e esteva é que me considero verdadeiramente em casa.
Por essa razão fiquei e continuo chocado com os acontecimentos destes dias em que uma tragédia sem nome se abateu sobre aqueles beirões que vivem onde querem, muitas vezes com sacrifícios que os citadinos não compreendem e que pagam os seus impostos ao Estado como toda a gente de bem, tendo direito a serem considerados como cidadãos por inteiro, começando pela sua segurança. E não foi isso que aconteceu, tendo morrido de forma incompreensível sessenta e quatro pessoas e ficado feridas mais de duzentas, assim por extenso, porque as pessoas não são números.
De tudo o que se viu, ouviu e leu, há uma evidência que não é possível esconder nem podemos ignorar, por mais areia que nos atirem para os olhos, com as eternas discussões sobre a origem do incêndio, seja um raio de trovoada, seja mão criminosa, o que não altera em nada o que se seguiu. E o que é indiscutível é que aconteceu a mais completa desorganização que imaginar se possa numa situação de calamidade. E essa desorganização tem, evidentemente, causas que não têm a ver com política florestal e questões de ordenamento do território. Isso é outro assunto.
A descoordenação, que mais se pareceu com um caos em que tudo o que podia correr mal correu mal, para além da notória incapacidade organizacional da própria Protecção Civil, teve a ver primariamente com a falta de comunicações entre os Bombeiros, GNR e Protecção Civil. Quando não existem comunicações entre comando central, comandos locais e forças distribuídas no terreno não há qualquer possibilidade de coordenação.
É por isso que perguntar porque é que se fechou o IC8 e se mantiveram abertas estradas como a 236-1 é uma pergunta descabida, face à situação de completa falta de informação por parte dos agentes no terreno. Essa informação está a cargo de um sistema de comunicações chamado SIRESP (sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal) que, a exemplo do sucedido em várias outras situações de emergência anteriores, voltou a falhar. E não funcionou durante uma catorze horas, deixando comando e operacionais sem contacto uns com os outros. Quando se repuseram as comunicações na EN 236-1 já jaziam queimadas 47 pessoas. Falta dizer que o SIRESP custou ao Estado português quase 500 milhões de euros.

O primeiro-ministro fez saber, depois do desastre, que tinha feito várias perguntas aos serviços oficiais, para saber das razões do sucedido. Lamento dizê-lo, mas como alguém já disse, o papel de um primeiro-ministro não é fazer perguntas publicamente. O primeiro-ministro deve dar respostas aos portugueses. Pode e deve perguntar aos seus ministros que tutelam os diversos serviços oficiais envolvidos sobre as razões do sucedido, mas não pode colocar-se de fora como se não tivesse nada a ver com o caso e não fosse o primeiro responsável por tudo. Ao contrário do que tenho lido por aí, exigir responsabilidades a quem governa, principalmente perante uma tragédia que, pelo menos em grande parte podia e devia ter sido evitada, não é desrespeitar os mortos. É precisamente o contrário. E é por ser um português beirão, tal como muitos dos mortos neste incêndio, que não posso calar a imensa tristeza com o sucedido, mas também a revolta que advém de perceber que as nossas Beiras são tratadas como se fossem um país de segunda categoria sendo, essa sim, a razão longínqua do sucedido.