segunda-feira, 27 de março de 2023

ERROS HISTÓRICOS

 


Muitos amigos me perguntam frequentemente onde vou buscar inspiração para escrever uma crónica semanal durante tantos anos sem falhar, e já lá vão mais de 17. Visto de fora pode, de facto, parecer uma dificuldade. Na realidade, vista de dentro, a situação é muito diversa. Porque as crónicas acabam por ter um fio condutor que às tantas diz mais sobre o autor das linhas do que sobre cada um dos assuntos abordados em já quase um milhar de semanas. E, por outro lado, as crónicas como que ganham vida própria de modo que aquilo que se pretendia comunicar chega mesmo a perder espaço perante considerações laterais ou adjacentes que sempre surgem e levantam outras matérias interessantes como quem puxa um fio e atrás dele vem sempre outro agarrado. Por vezes torna-se mesmo necessário fixar o rumo para que os “empurrões” laterais não nos levem a um porto diferente daquele onde se pretendia chegar.

Toda esta introdução vem a propósito da crónica da semana passada que, se o estimado leitor teve a paciência de a ler, deve recordar que tratava da constatação pessoal de que o país me parece navegar sem rumo, por não ter objectivos claros a atingir. E fiz uma comparação com tempos em que os portugueses mostraram ser capazes de estar à frente do seu tempo, quer em gestão de projectos extremamente complexos, como ainda em estar na vanguarda do conhecimento científico. Tudo para «dar novos mundos ao mundo» e transformar a vida no nosso planeta para sempre através da primeira globalização. E noto agora que lá está de novo a crónica a tomar uma direcção não pretendida. Terei mesmo de regressar futuramente a este tema, já que não se pode deixar de notar que a saída dos europeus desta ponta ocidental para o mar no século de quinhentos se tenha precisamente seguido a «apertos» sucessivos da Europa pelo lado oriental. Primeiro pela expansão mongol entre 1000 e 1250 e depois pelos otomanos que conquistaram Constantinopla em 1453, no que habitualmente se considera o início do fim da Idade Média fixado em 1492, quando foi descoberta a América e os muçulmanos foram finalmente expulsos da Península Ibérica.

O que é facto é que na crónica anterior referi apenas de forma lateral os nomes de Abraham Zacuto e de Pedro Nunes como cientistas muito importantes para o sucesso da saga dos “descobrimentos portugueses”. De facto, a sua importância histórica vai muito para além disso. Zacuto terá nascido em Salamanca, tendo-se refugiado em Portugal depois da promulgação do decreto dos reis católicos obrigando os judeus à conversão ao cristianismo ou ao exílio. Esteve ao serviço de D. João II mas a sua estada entre nós durou apenas seis anos já que o rei D. Manuel, para obter autorização para casar com D. Isabel, filha dos reis católicos, promulgou também a conversão ou expulsão dos judeus de Portugal, tendo Zacuto seguido de novo o caminho do exílio. Assim fugiu à tragédia que se seguiu em Lisboa ao casamento de D. Manuel que nos deveria ainda hoje encher de vergonha. Já Pedro Nunes, embora tivesse ascendência judaica, nunca foi importunado, talvez devido ao seu enorme prestígio, já que em 1544 lhe foi entregue a cátedra de matemática da Universidade de Coimbra. Contudo, destino diferente tiveram os seus netos que foram presos, torturados e condenados por judaísmo pela Inquisição dirigida pelo Inquisidor-mor cardeal infante D. Henrique. 


A mesma sorte de Pedro Nunes acabou por ter o mais ilustre médico do seu tempo, Garcia de Orta, seu conterrâneo e conhecido, que embora sendo cristão-novo, logrou morrer na Índia sem ser directamente incomodado pelo tribunal do Santo Ofício local. Já, logo depois da sua morte, a sua irmã Catarina foi condenada por judaísmo e queimada viva em 1569 num auto-de-fé. A sanha contra os judeus era de tal ordem que até os ossos de Garcia da Orta viriam a ser desenterrados e queimados em 1580.

O significado profundo do tratamento dado aos judeus naqueles tempos não foi apenas religioso, indo muito além do sofrimento indescritível de cada um dos homens, mulheres e crianças de ascendência judaica perseguidos pela sua ascendência. O ódio então manifestado teve a sua primeira e mais sangrenta manifestação pública no banho de sangue do massacre que durou três dias em Lisboa em Abril de 1506, mas foi-se mantendo nos 285 anos que durou a Inquisição portuguesa.

A perseguição e expulsão dos judeus teve consequências que perduram, já que assim saíram do país elites de áreas as mais diversas desde a economia e finança até à ciência, com consequências óbvias num atraso atávico de que padecemos. Para além de uma aversão social algo subterrânea que podemos, sem dificuldade, ainda nos dias de hoje ver aparecer à tona de água e não apenas contra judeus.

De vez em quando, estas crónicas suscitam críticas sempre amigas ou mesmo comentários pertinentes. Assim, esta crónica de hoje é dedicada ao meu querido Amigo e Camarada Carlos Alberto Maia Teixeira que sistematicamente tem a caridade de me orientar nas águas tantas vezes tormentosas da escrita e da opinião tornada pública.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 Março 2023

Imagens retiradas da internet

segunda-feira, 20 de março de 2023

ESTAMOS NO ALTO MAR, SEM BÚSSULA

 


Foi em Lisboa no séc. XV que um astrónomo judeu chamado Abraão Zacuto, cuja história todos devíamos conhecer para percebermos como a Humanidade pode ser má e mal-agradecida, introduziu significativos melhoramentos num antigo instrumento de navegação, o astrolábio, bem como nas tábuas astronómicas. Ao ensinar os navegantes portugueses a utilizar esses instrumentos no tempo de D. João II que o trouxe para Portugal e, portanto, a orientarem-se no alto-mar, teve um papel crucial na capacidade para organizar as viagens ao Brasil e à Índia.

Os navegadores da época adquiriram assim a possibilidade de conhecer com alguma precisão a latitude do local em que se encontravam, ao medirem a altura dos astros relativamente ao horizonte. Claro que faltava a outra coordenada geográfica, a longitude, que só alguns séculos mais tarde foi possível calcular com a invenção dos cronómetros, o que só aumenta a admiração pela capacidade e coragem dos marinheiros portugueses de então. Não se esqueça ainda o matemático Pedro Nunes que no sec. XVI desenvolveu o conceito da loxodrómica para descrever o trajecto marítimo entre dois pontos sobre o meridiano que por eles passa, que só Leibniz haveria de resolver matematicamente com os logaritmos.

Foi um tempo em que os portugueses ditaram cartas ao mundo, não só como os melhores marinheiros, mas também, ou sobretudo, como capazes de organizar e gerir eficientemente projectos da mais elevada complexidade.

Algo que, na actualidade, parece termos perdido em absoluto, tal a incapacidade que revelamos para sair de uma «austera, apagada e vil tristeza» detectada por Camões logo após os Descobrimentos. E já lá estava a desgraçada austeridade a que parece estarmos condenados pelas elites que nos caem em sorte.

É assim que assistimos a um Governo que, num dia atira para o lixo as PPP da saúde que o próprio Tribunal de Contas classificava como económicas para o país enquanto o regulador da saúde as classificava como das mais qualificadas do SNS, para pouco depois abrir a porta ao seu regresso. Ou renacionaliza a companhia de aviação para, pouco depois, preparar a sua reprivatização mas sem que, entretanto, lá tenha metido mais de 3 mil milhões dos impostos dos portugueses, no meio de vergonhosas situações de mentiras e o mais completo desnorte e incompetência. Tal como vemos um presidente da República que, após criticar fortemente o governo de Esquerda, parece sentir necessidade se atirar de imediato violentamente à Direita, sendo uma pura perda de tempo tentar encontrar alguma justiça ou injustiça em qualquer uma das situações.


Apesar de dispor de uma maioria absoluta na Assembleia da República ou, quem sabe, por via dela, verifica-se que o Governo pratica de governação à vista, sem que se detecte um rumo em nenhuma das áreas governativas, seja na Educação, na Saúde, na Justiça, na Segurança Social, na Defesa ou mesmo na Segurança dos cidadãos. Parece mesmo que só existe o tal Plano de Recuperação e de Resiliência, dinheiros europeus que parecem destinados a compensar parcialmente o défice de investimentos públicos dos últimos sete anos em todas aquelas áreas, fruto da elevação das cativações a instrumento fundamental de governação. Ah, não esquecendo a tal «necessidade de contas certas» redescobertas depois do enterro da geringonça, tentando fazer convencer os portugueses de que se trata de um «desígnio nacional», quando não passa de uma simples mas necessária regra contabilística obrigatória para qualquer governo decente e responsável.

Governa-se em alto mar sem se fazer ideia de onde se quer chegar pelo que, na realidade, não é precisa qualquer bússola nem astrolábio ou moderno GPS que nos oriente. São os ventos e a ondulação que nos transportam, felizes por pertencermos a uma União Europeia rica, qual boia cujo dinheiro nos mantém à tona da água, mas apenas isso.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Março de 2023

Imagens retiradas da internet

segunda-feira, 13 de março de 2023

DOCES ENGANOS

 


Eu não sei se a recente alteração à legislação que regula as Ordens Profissionais foi ou não resultado de imposição da União Europeia para aprovação do famoso  PRR (Plano de Recuperação e Resiliência). Na realidade, as afirmações de António Costa de que o bom andamento do PRR estaria dependente da aprovação desta legislação parecem indicar que tal será verdade, recordando-se que já o Memorando de Entendimento da Troika previa alterações ao regime das Ordens, que nunca foram desenvolvidas. As Ordens manifestaram-se genericamente contra as alterações aprovadas na Assembleia da República e ficaram satisfeitas quando o Presidente da República enviou o projecto do Decreto para o Tribunal Constitucional para fiscalização preventiva da sua constitucionalidade. O Tribunal Constitucional veio a decidir pela constitucionalidade das alterações aprovadas, terminando aí a discussão sobre o assunto.

Mas algo está errado em tudo isto e não é caso novo na governação do país, mas não só. Na realidade, o Tribunal Constitucional não se pronunciou, neste como noutros casos, sobre a bondade da nova legislação que lhe é submetida para parecer. O TC apenas se pronuncia sobre se a legislação é ou não conforme à Constituição do país, isto é, sobre se viola ou não o estabelecido na nossa lei fundamental. Ao contrário do que parece ser o pensamento dominante. Se os partidos ou outras associações entendem que determinada nova legislação é prejudicial ao bom funcionamento do país, devem manter aí a discussão e defender as suas ideias e opiniões junto da opinião pública. Até porque, depois de novas eleições, poderão também alterar a legislação de acordo com o que entendem ser o interesse nacional. Descansar sobre as decisões do tribunal Constitucional, confiando no TC para travar leis que são políticas na sua essência e abandonando aí as opções políticas é que não, embora essa ideia vá fazendo o seu caminho na opinião pública, resultado de uma tentativa de judicialização da política a todos os títulos errada.

Estamos a assistir a uma vaga de greves em áreas diversas mas essenciais para o bom funcionamento do país, desde a Educação à Saúde, passando pelos transportes públicos. Com quase cinquenta anos de prática democrática é natural que os cidadãos reajam de forma automática ao exercício do direito à greve, aceitando-as com naturalidade. Sucede que o que se está a passar é tudo menos normal. O número de greves e o seu prolongamento no tempo têm consequências muito para além da relação entre os trabalhadores e as suas entidades patronais. Até porque, nas greves a que assistimos, o patrão é o Estado, seja directamente, seja através de gestão pública, como é o caso da CP. Não é admissível que estas greves dos professores se prolonguem durante tantos meses, porque no fim quem sofre é a formação das crianças e adolescentes que já vão no terceiro ano sucessivo de aprendizagem deficitária, atendendo ao Covid. 


Se os professores têm razão nas suas reivindicações, e parece ser pacífico que têm, o Governo tem de encontrar soluções para ultrapassar a situação com a maior urgência. Tal como as greves de médicos e outros profissionais de saúde são tão gravosas para a população que o Governo não pode deixar andar e deve resolver as questões em aberto com a maior rapidez. A justificação da falta de dinheiro por este Governo  não colhe, sobretudo depois do Novo Banco e da TAP. Contudo, em qualquer destes casos se assiste a uma espécie de calma olímpica da parte do Governo, mas também da sociedade em geral, com consequências futuras que estão à vista. No que respeita aos jovens, aqueles que frequentam a escola públicas sofrem com as greves enquanto os do ensino particular avançam sem problemas, numa injustiça flagrante. Já com o que se passa na Saúde a consequência imediata é a transferência dos doentes com alguma capacidade económica do SNS para a os hospitais privados.

Estes são apenas alguns dos muitos doces enganos em que infelizmente a maioria de nós vai embarcando regularmente, as mais das vezes proporcionados pelos mais diversos responsáveis, políticos mas também empresariais ou outros. É dever de quem tem acesso à comunicação social lutar por desmontar falácias, mostrando a realidade, doa a quem doer, de forma independente. Só mais um exemplo do doce encantamento de «verdades estabelecidas» que se revelam contrárias à realidade. Neste caso, quem desmontou o doce engano foi o próprio Presidente da República que, na entrevista na RTP da passada semana, referiu que «o país está cada vez mais velho e mais pobre». Isto quando os responsáveis governamentais têm insistido na ladainha de que «estamos a aproximar-nos dos países mais ricos».

Nos seus doces enganos, Portugal mais parece a Inês assim cantada por Camões:

 “Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito”

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 de Março de 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 6 de março de 2023

BEATRIZ ÂNGELO

 


Carolina Beatriz Ângelo foi a primeira mulher a votar em Portugal. Tal aconteceu nas Eleições para a Assembleia Constituinte, em 28 de Maio de 1911. Mas para que tal acontecesse, Beatriz Ângelo teve que provar, em tribunal, que era «chefe de família» uma vez que era viúva e tinha uma profissão que lhe permitia sustentar a sua filha. Foi, contudo, uma vez sem exemplo, já que o novo regime republicano fez logo a seguir sair legislação que apenas dava aos homens o estatuto de «chefe de família» retirando às mulheres o direito de votar que continuaria, aliás, durante todo o regime do «Estado Novo». Só com o 25 de Abril de 1974 as mulheres portuguesas viriam a adquirir, em pleno, o direito de votar em igualdade com os homens.

O sucedido foi ainda mais significativo para Beatriz Ângelo dadas as suas profundas convicções republicanas, defendendo ainda a igualdade entre homens e mulheres como sufragista militante. Beatriz Ângelo ficou de tal forma chocada que se chegou a referir aos republicanos com desprezo, exceptuando Afonso Costa A atitude do novo poder republicano, no que toca ao voto feminino, dever-se-ia à vontade de restringir o direito de voto ao máximo, de forma a deixar de fora grandes franjas do povo que poderiam provocar o regresso à Monarquia..

Beatriz Ângelo foi ainda a primeira mulher portuguesa a licenciar-se em Medicina e a exercer a sua profissão por inteiro, sendo também a primeira mulher a operar no Hospital de S. José, tendo-se especializado em Ginecologia. Tinha nascido perto da Guarda em 16 de Abril de 1868 numa família politicamente liberal, tendo estudado no Liceu da Guarda e concluído a sua licenciatura na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa em 1902. Faleceu muito nova de síncope cardíaca, aos 33 anos, em 3 de Outubro de 1911, poucos meses depois das eleições em que participou.

A atribuição do seu nome a um grande Hospital em Loures foi, portanto, um acto de grande simbolismo e da maior justiça por se tratar da primeira médica portuguesa e de uma mulher de fortíssimas convicções que fazia valer mesmo perante injustiças e erros cometidos por quem lhe era próximo politicamente. Uma atitude que ainda hoje, ou sobretudo hoje, devia ser seguida pelos defensores dos diversos partidos que tantas vezes praticam um proselitismo insuportável.


É por tudo isto que o que se tem sabido sobre o que se tem passado no Hospital Beatriz Ângelo se torna ainda mais revoltante. Após todas as notícias sobre enormes atrasos sistemáticos em consultas e cirurgias, foi há poucos dias notícia a demissão de 11médicos chefes da urgência geral que se sucedeu ao fecho da urgência pediátrica à noite e aos fins de semana. Sabendo-se que os hospitais de D. Estefânia e de S. José já estão a trabalhar nos limites, imaginam-se as consequências de arcar com a sobrecarga originada pelo fecho das urgências do Beatriz Ângelo, que é a segunda maior urgência pediátrica de Lisboa e Vale do Tejo. As imagens e os relatos dos familiares dos doentes das urgências do Hospital Beatriz Ângelo são aterradoras, denunciando um estado perfeitamente caótico inaceitável num país civilizado que se orgulha do seu SNS.

A situação torna-se ainda mais incompreensível quando os relatos de utentes mostram a diferença do serviço prestado pelo hospital na actualidade e até há dois anos, quando funcionava em regime de Parceria Publico-Privada. Percebe-se porquê. Quando era uma PPP o hospital não se podia permitir a chegar a uma situação destas porque o Estado nunca o permitiria. Tendo passado a ser de gestão pública caíram-lhe em cima todas as deficiências de funcionamento, e principalmente de gestão, que nos últimos anos têm caracterizado o SNS. Os governos de António Costa acabaram com as PPP na saúde que funcionavam bem e saiam mais baratas ao erário público. Agora temos o que se vê e a comparação torna-se inevitável. Aliás, é o próprio autarca de Loures insuspeito de «neo-liberalismo» e que até é do partido do Governo, a reconhecer a realidade e a descida radical de qualidade dos serviços prestados às populações. O Governo queixa-se da falta de pediatras, mas a realidade é que os hospitais privados não se queixam do mesmo. Alguma razão haverá para que isto suceda e, para ser inteiramente verdadeiro, toda a gente vê qual é: a falta de condições de trabalho oferecidas pelo SNS aos profissionais da saúde promoveu um crescimento significativo da oferta privada, ajudado pela ADSE dos funcionários públicos e pelo crescimento dos seguros privados de saúde.

Catarina Beatriz Ângelo, pelo seu exemplo de vida, merecia mais respeito pelo legado que deixou, para além dos cidadãos servidos pelo Hospital que leva o seu nome não deverem ser considerados de segunda categoria por complexos ideológicos de governantes.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 6 de Março de 2023

Fotos retiradas da internet

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Putin, derrotado

 


A primeira e principal razão apresentada por Putin apara invadir a Ucrânia, faz agora um ano, foi «a desnazificação» da Ucrânia. Em paralelo, argumentou com uma» zona de segurança» da Federação Russa perante uma expansão do inimigo NATO.

O resultado dessa invasão, que continua, salda-se hoje em muitos milhões de refugiados ucranianos, milhares de civis ucranianos mortos, incluindo mulheres e crianças e destruição inacreditável de cidades inteiras com bombardeamentos de artilharia e mísseis lançados a partir de território russo e do mar Negro. Isto para além de largas dezenas de milhares de soldados mortos de ambos os lados, sejam atacantes russos, sejam defensores ucranianos.

Nas primeiras semanas da invasão o alvo principal dos russos foi a própria capital da Ucrânia, Kiev. Ficou evidente, para todo o mundo, que o objectivo imediato de Putin era conquistar a capital e instalar um regime fantoche por si comandado, como já acontece em vários países da antiga União Soviética.

Só que aconteceu o impensável. Os ucranianos fizeram das tripas coração, agarraram-se à sua terra e conseguiram repelir o ataque à sua capital, apesar dos proclamados 60 km de extensão da coluna invasora russa. Desde então, os russos praticam uma técnica de guerra implacável de destruição de cidades, quer sejam edifícios de habitação, ou sejam escolas ou hospitais, numa demonstração de total desprezo pela vida de civis desarmados sem defesa e das leis e convénios internacionais. A actuação criminosa e bárbara dos soldados russos vai ainda mais além, cometendo sistemáticos crimes de guerra contra a população civil que, mais tarde ou mais cedo, terão de vir a ser objecto de julgamento em tribunais internacionais. Tempo virá em que o próprio Putin poderá ter que se sentar no banco dos réus.


Mas, entretanto, muita desgraça está e ainda vai acontecer, fazendo-se votos de que a patente demência de Putin não o leve a fazer subir a guerra ao patamar seguinte que levaria ao holocausto nuclear e à destruição de grande parte da Humanidade.

Acima de tudo há que perceber os processos mentais de Putin e desmontar a sua máquina de propaganda que, até entre nós consegue encontrar defensores. Para o comprovar basta ver que os deputados comunistas, usando embora da sua indiscutível liberdade, não apoiaram as intervenções de apoio à Ucrânia invadida e repúdio da Rússia invasora na Assembleia da República no passado dia 24 de Fevereiro.

Parece-me evidente que a teoria da «desnazificação da Ucrânia» de Putin radica na necessidade de obter o apoio da população russa que, como seria normal, deveria aceitar com dificuldade a invasão de um país vizinho, ainda por cima com tantos laços históricos. Ao usar o termo «nazi» Putin sabe bem que está a apelar a um sentimento profundo dos russos que colectivamente têm ainda uma memória trágica do sucedido na II Grande Guerra. De facto, embora a Alemanha nazi e a URSS comunista tivessem assinado um tratado de não agressão em Agosto de 1939, imediatamente antes da invasão alemã da Polónia, a Alemanha levou a cabo a Operação Barbarrossa a partir de Junho de 1941 invadindo a União Soviética. Invasão que só terminaria em Janeiro de 1942, tendo morrido mais de 26 milhões de soviéticos. Para além disso, os alemães perpetraram todo o tipo de crimes de guerra, numa barbárie impossível de descrever. O povo russo tem assim uma memória do nazismo que não desaparecerá durante muitos anos e a simples menção de «nazi» tem uma imediata reacção de rejeição.

Putin sabe bem disso e utiliza o argumento da forma mais despudorada, torcendo a situação da Ucrânia, que ainda por cima também sofreu na carne a invasão nazi, tem um regime democrático ao contrário do que hoje acontece na Rússia e o seu presidente Zelensky é de origem judaica.

No entender de muitos, Putin percebe que já perdeu a guerra e, como todos os ditadores, só encontra o caminho do tudo ou nada que leva inevitavelmente ao desastre. Já perdeu, porque todos os seus objectivos iniciais estão perdidos: o ataque directo à capital ucraniana foi um fiasco; a Ucrânia continua a existir e, a seu tempo, vai entrar na União Europeia; a NATO está mais forte e unida, com entrada até de novos países tradicionalmente neutrais como a Finlândia e a Suécia; a União Europeia encontrou novos motivos de união, quando andava um pouco perdida pensando apenas na economia; aliás, a União Europeia percebeu mesmo a necessidade de garantir a sua própria segurança, para além do guarda-chuva americano da NATO; por fim, a chantagem energética foi furada, tendo a Europa ocidental encontrado fontes energéticas alternativas ao gás e petróleo russos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 Fevereiro 2023 

Imagens retiradas da inrenet

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

FINALMENTE, ALGUMA LUZ

 


O país acordou finalmente para um velho problema que, apesar de tão hediondo, muita gente ao longo de centenas de anos foi escondendo debaixo do tapete. Os abusos sexuais de crianças não são de hoje, nem sequer exclusivo de determinadas geografias, mas surgem hoje como crime muito pelo desenvolvimento de normativas internacionais sobre os direitos da criança, nomeadamente:

- a Declaração de Genebra de 1924 sobre os direitos da criança,

- a Declaração dos direitos da criança adoptada pelas Nações Unidas em 1954 e, finalmente,

- a Convenção sobre os direitos da criança aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Novembro de 1989 e assinada por Portugal em Janeiro de 1990.

Por aqui se vê que foi só nos últimos cem anos que os direitos específicos da criança, cruciais para a sua defesa perante os mais diversos ataques, começaram a surgir no direito internacional, para depois integrarem os direitos nacionais.

Os abusos sexuais surgem como um dos mais vis ataques aos direitos das crianças, incapazes de se defender pelos mais diversos motivos: fragilidade física, desenvolvimento mental insuficiente para perceber o que se passa e medo ou respeito pelos mais velhos, familiares ou responsáveis por instituições onde se inserem. É um facto conhecido que a esmagadora maioria dos abusos sexuais de crianças se verifica em ambiente familiar, circunstância que torna dificílima a sua detecção precoce ou mesmo posterior à sua prática, quase sempre continuada. É igualmente reconhecido que o seu silenciamento posterior relativamente aos abusos sofridos se deve normalmente a sentimentos de medo, vergonha ou mesmo culpa.


Os portugueses tomaram agora conhecimento do Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa denominado «Dar voz ao silêncio». Esta comissão presidida pelo reconhecido médico pedopsiquiatra Pedro Strecht e constituída por reputados cidadãos especialistas em diversas áreas trabalhou durante um ano, a convite da Conferência Episcopal Portuguesa. O período temporal em análise estendeu-se de 1950 aos nossos dias, tendo sido validados depoimentos de 512 vítimas de entre as pessoas que se apresentaram à Comissão, utilizando os meios por esta colocados à disposição. A Comissão pediu ainda às 21dioceses e aos 127 institutos religiosos existentes em Portugal a realização de um levantamento de casos de abuso sexual de crianças nos respetivos arquivos entre 1950 e 2022. A Comissão esclarece que as 512 vítimas directas colocam na mira pelo menos outras 4300, pelo facto de os abusadores lesarem mais que uma criança. A Comissão fez um tratamento estatístico pormenorizado das situações, mas um dado impressivo é que 77% dos abusadores eram padres.

Na realidade, o conhecimento desta situação só peca por tardio. Depois de tudo o que soube por esse mundo fora, seria uma pura ingenuidade imaginar que em Portugal fosse diferente. O que coloca a Igreja, também em Portugal, numa situação muito difícil já que a dimensão do problema não permite pensar que é uma questão de um ou outro padre. Há um problema da própria Igreja, que sai deste Relatório com a necessidade absoluta de se reformar profundamente, não adiantando argumentar que resiste há dois mil anos.

A Igreja assume-se como dogmática, constituindo-se como única e exclusiva possibilidade de intermediação entre os fiéis e o próprio Deus, não permitindo colocar em questão os dogmas que ela própria foi constituindo ao longo dos séculos. E, se o cristianismo foi e é uma fonte importantíssima de ética, a acção dos padres e bispos pode colocar isso em causa. O povo português sempre deu mostras de algum anti-clericalismo que se manifesta por vezes num anedotário referente, por exemplo, a relações sexuais de padres com mulheres com filhos e «afilhados» à mistura, denotando até alguma compreensão perante necessidades básicas desses homens. Mas os abusos sexuais de crianças não têm nada a ver com isso. Trata-se de crimes horrorosos que não podem ser aceites e muito menos escondidos por ninguém, a começar pelos responsáveis superiores da Igreja que são os bispos. E está criada a sensação geral de que, ao longo dos anos, esses responsáveis tudo fizeram para encobrir essas situações, colocando um suposto interesse corporativo da Igreja acima dos direitos das crianças vítimas. E isso é insuportável pela sociedade nos dias de hoje, não sendo uns simples pedidos de desculpa que ultrapassarão o que foi feito a milhares de crianças vítimas de padres cuja acção predatória foi encoberta pela Igreja durante demasiado tempo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  20 de Fevereiro de 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Ai, Portugal, Portugal


 

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar

 

Este o refrão de uma das músicas inesquecíveis do genial Jorge Palma. E não é possível observar o Portugal de hoje, sem que nos venha à cabeça. Não se trata de diminuir Portugal nem de lhe faltar ao respeito, e sim de manifestar uma certa consternação e mesmo desapontamento pelos caminhos que trilhamos.

Claro que, ao longo da nossa longa História, lá fomos encontrando saídas para situações de impasse, umas vezes com brio e coragem, outras com alguma dose de malandrice. Mas nunca como hoje, uma vez que estamos em democracia, o futuro esteve dependente da vontade expressa do povo e não apenas de elites mais ou menos esclarecidas.

O 25 de Abril, já lá vão quase 50 anos, isto é, mais do que durou a ditadura do Estado Novo, veio devolver a palavra a todos os portugueses, um a um, independentemente de sexo, idade, condição social ou riqueza. É seguramente, uma situação que exige muito mais responsabilidade de todos nós. Apesar de tudo, os primeiros anos do regime democrático, ultrapassada a fase revolucionária, vieram mostrar um povo adulto e que sabe muito melhor o que quer do que muitos imaginariam. 


Mas o regime assenta na escolha de partidos para a governação nacional e das autarquias locais, além das duas regiões autónomas. E os partidos, que no início do regime receberam no seu seio as elites sociais que se tinham formado intelectual e profissionalmente durante o antigo regime, à esquerda e à direita, foram evoluindo internamente vendo-se hoje, pela simples passagem do tempo, que são dirigidos por dirigentes políticos que ou eram crianças pequenas em 74 ou já nasceram depois disso. A sua formação política, em grande parte, ou na sua grande maioria fez-se nas juventudes partidárias, de onde passaram para os partidos e daí para as comissões concelhias e distritais, seguindo-se lugares nas autarquias locais e na assembleia da República. E esta formação política sobrepõe-se largamente, e notoriamente, à formação académica e profissional, criando bolhas partidárias estranhas aos verdadeiros problemas dos portugueses e, sobretudo, da economia real das empresas que tudo paga através dos impostos sobre a produção e sobre os empregos.

Aqui estará grande parte da justificação  do estado anémico da nossa economia que se reflecte numa descida de Portugal no ranking europeu do produto per capita sendo ultrapassado já pela maioria dos países, já que o rendimento per capita foi em 2021 de 75% da média europeia, quando era de 78% em 2015, logo depois do governo da troica. Isto apesar da chuva de milhares de milhões da União Europeia.


Os partidos e a sociedade radicalizam-se à esquerda e à direita, enquanto os partidos do centro se mostram incapazes de dar o salto necessário. O PS, embora governando em maioria absoluta, afunda-se na mais completa incapacidade de reformar o país, enredando-se num discurso de pura defesa do poder. O PSD, embora consiga agora criticar a governação no concreto, não mostra ao país um conjunto coerente de propostas alternativas que alterem o rumo do país. A economia precisa essencialmente que a deixem evoluir nas direcções que entender serem as melhores, livrando-se definitivamente do dirigismo socialista que acha que tudo sabe e tudo quer orientar. A carga fiscal portuguesa sobre a economia é uma canga pesada que dificulta a competitividade das nossas empresas somando-se à excentricidade do país relativamente ao centro geográfico europeu. E, muito importante, o PSD não dá uma resposta definitiva sobre a sua relação futura com o partido Chega, num sentido ou no outro, espero eu que clarificando a recusa absoluta de qualquer acordo, seja em que situação for. Já basta o que o país sofre em consequência da Geringonça que colocou o governo do PS alegremente nas mãos chantagistas do BE e do PCP, para que o PSD venha a cair no mesmo erro.

Os principais serviços públicos, com a Saúde e a Educação à cabeça, mas também a Justiça e as forças de Segurança como o SEF, atravessam crises de uma profundidade impressionante. É claro para toda a gente que nenhum deles voltará a ser o que eram há uns vinte anos, porque o dinheiro necessário para os recuperar sem reformas profundas pura e simplesmente não existe.

Nos últimos tempos percebe-se claramente que o presidente da República está angustiado com a consciência da situação. E sabe bem que, apesar da situação de estagnação da governação, é muito provável que eleições antecipadas não fossem alterar a situação, sendo quase certo que o PS se colocaria de novo nas mãos da esquerda mais radical.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 Fev 2023

Imagens recolhidas na internet