terça-feira, 9 de abril de 2024

MULHERES NA IDADE MÉDIA

 


Se há um mito persistente é sobre o que foi na realidade a Idade Média. Apesar das evidências e de muitos intelectuais como Umberto Eco na grande obra que coordenou sobre a Idade Média demonstrarem o contrário, é ainda generalizado o termo “idade das trevas” como definindo aquele período da História da Europa. É um facto adquirido que, quando aparece algo de novo, os seus agentes tentam, para se auto-promoverem, desfazer no que se passou anteriormente, construindo, como hoje se diz, a sua própria narrativa. Tentam, assim, construir a imagem favorável com que desejam ficar para o futuro contrapondo com um passado apresentado como muito pior, mesmo negro perante a luz que pretendem ter trazido. Assim aconteceu com o Renascimento e, fundamentalmente, o Iluminismo. Um dos aspectos que mais impressiona negativamente em relação à dita “idade das trevas” é o papel da mulher, descrito como sendo de inteira subjugação ao homem com a quase única função de assegurar descendência. E, no entanto…basta apreciar o papel de algumas mulheres desse período para se perceber que isso não pode, de maneira nenhuma, corresponder à realidade do que se passava. Mesmo em Portugal temos exemplos que provam isso, a começar pela Mãe do nosso primeiro Rei, continuando com a Rainha Santa Isabel Padroeira da nossa Cidade e ainda com a representante feminina da Ínclita Geração Isabel, Duquesa da Borgonha, tão injustamente esquecida pela História que nos têm contado e que tentarei apresentar na próxima semana.

Mas esta semana abordarei a vida intensa e de tal forma relevante de uma Mulher na Idade Média, que seria impossível que tivesse acontecido se aqueles tempos tivessem sido como nos tentam vender.

Leonor da Aquitânia, assim se chama a nossa heroína de hoje, passou para a História com uma má fama que, ainda hoje perdura, ou não se tivesse afirmado vigorosamente não apenas numa, mas em duas das coroas mais importantes da época, a francesa e a inglesa. Leonor nasceu em 1122, filha de Guilherme X, duque de Aquitânia, e de Leonor, viscondessa de Châtellerault. Os domínios do ducado, um dos mais importantes de França abrangiam, para além da Aquitânia, ainda Poitou, Gasconha, Limousin e Auvergne. Com a morte de seu avô e do seu pai, Leonor herdou os territórios do ducado aos 13 anos. Numa época em que os casamentos eram as mais das vezes contratos entre famílias e algumas vezes entre Estados em que os afectos não eram para ali chamados, tornou-se uma noiva apetecível e casou em 1137 com o futuro Rei Luís VII, tornando-se ela própria rainha consorte da França. Rainha consorte mas, eventualmente, sem sorte, já que a corte dos Capetos onde entrara estava muito longe dos hábitos culturais e sociais da sua própria corte da Aquitânia e a habituação da nova rainha não terá sido um grande sucesso.

Aquando da Segunda Cruzada, Luís VII decidiu participar, tendo partido com a sua mulher Leonor para a Terra Santa, como resposta aos levantamentos muçulmanos. A expedição veio a revelar-se um desastre militar, tendo também consequências na vida do casal a que se seguiu o divórcio real em Março de 1152, tendo as duas filhas do casal permanecido com o pai.

Leonor tinha 28 anos e recuperava o ducado da Aquitânia. Dois meses depois casou-se com Henrique de Anjou (Plantageneta) que, em 1153, atravessou o Canal da Mancha para se apoderar da coroa da Inglaterra, o que conseguiu dado que o rei de Inglaterra Estêvão de Blois era seu primo. Henrique e Leonor foram coroados na Catedral de Westminster em Dezembro de 1154. Leonor da Aquitânia era rainha pela segunda vez, agora em Inglaterra. Aqui teve oportunidade para exercer o seu amado mecenato cultural decisivo para o surgimento de nova literatura, através do apoio a artistas. Mas de novo surgiriam desavenças entre Leonor e o seu marido com consequências graves no seu relacionamento, só ultrapassadas pela morte de Henrique II em 1189, tendo Leonor sido mesmo presa. Para a sorte de Leonor foi crucial o apoio do seu filho, o célebre Ricardo Coração de Leão. Depois da morte de Ricardo, Leonor voltou ainda à acção para apoiar o seu filho João Sem Terra.


Leonor viria a morrer em 1204, com mais de oitenta anos, depois de uma vida cheia em que participou por inteiro na vida cultural, política e militar da Europa do seu tempo, tendo influenciado, para o bem e para o mal, as relações entre ingleses e franceses. Perante as maiores adversidades nunca deixou de querer influenciar o seu tempo através da sua vontade. Algo que, sendo mulher, de acordo com cronistas e muitos historiadores da Idade Média seria impossível de acontecer. Mas aconteceu mesmo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Abril de 2024

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segunda-feira, 1 de abril de 2024

PALAVRAS

 


Estou convencido de que a invenção mais significativa da Humanidade foi a palavra. A palavra é a base da linguagem que, de forma apenas oral, ou escrita, nos permite comunicar ideias, conhecimento ou apenas factos acontecidos.

É através da palavra escrita, de que estas crónicas são um exemplo muito humilde, que se tornou possível a passagem de testemunho cultural entre gerações diferentes à medida que passam os anos.

Sendo a palavra o processo utilizado pelos políticos para convencerem os outros da justeza das suas propostas, a palavra é também a arma mais eficaz contra as ditaduras e a mentira institucionalizada. E é uma arma poderosa que se torna frequentemente temida pelos poderosos. Sócrates, que afirmava “saber que nada sabia” falava publicamente nas praças, questionando o conhecimento tido como verdade e levando os seus concidadãos gregos a questionarem-se sobre tudo. Acabou por ser acusado de corromper os jovens e levado a beber a cicuta, tornando-se um exemplo de virtude.

Mas a palavra pode ela mesma corromper a sociedade. Joseph Goebbels, o maior propagandista nazi, inflamava centenas de milhares de alemães com os seus discursos que continham as maiores barbaridades. Terá assim ajudado a criar um sentimento que se espalhou pela sociedade alemã e que explica em boa parte a sua aceitação de Hitler, do seu comportamento perante o Holocausto e da invasão e subjugação de quase toda a Europa.

Muitas das diversas linguagens que se desenvolveram na História acabaram por desaparecer e ser esquecidas acompanhando a sorte das respectivas civilizações. Por vezes há golpes de sorte e linguagens perdidas no tempo voltam ao nosso conhecimento. É o caso extraordinário da escrita hieroglífica egípcia, que só no séc. XIX foi possível ser decifrada devido a ter sido encontrada uma pedra com o mesmo texto legal escrito em três línguas diferentes: hieroglífico antigo, tardio e grego antigo. Uma espécie de tradutor abandonado para ser encontrado milhares de anos depois e fazer luz sobre a antiga linguagem.

Existem hoje mais de sete mil línguas diferentes. Na tradição bíblica aprendemos que o Homem quis chegar ao céu para o que começou a construir uma torre. Irritado com tal ambição, Deus colocou os homens a falar línguas diferentes para que não se entendessem e assim lhes fosse impossível continuarem com tal construção. Um pouco como no nosso Parlamento, há uma semana, quando apenas se pretendia escolher um presidente da mesa e as linguagens eram tão diferentes que os grupos de deputados não se conseguiam entender.

Mas, essencialmente, as palavras servem para unir e não separar. É pela palavra escrita que passamos mensagens duradouras e construímos cultura. A palavra é ainda um traço de união entre formas culturais. Um dos maiores músicos de todos os tempos teve o atrevimento de colocar as palavras de um poema numa sinfonia pela primeira vez e assim Beethoven abriu um caminho musical seguido por outros génios como Mahler ou Shostakovich.

A forma poética da linguagem abre caminhos novos tantas vezes inesperados e mostra as profundezas da sensibilidade dos autores. Os portugueses parecem ter há muito tempo uma especial predisposição para a poesia, pelo menos desde D. Dinis, e já nos inícios do sec. XV o Duque de Coimbra, D. Pedro, sabia que “poesia é mais sabor que saber”. Impressiona o número de livros de poesia que, só aqui em Coimbra, é publicado todos os anos por poetas, homens e mulheres. Talvez seja a própria língua portuguesa que, internamente, desenvolveu características que favorecem a linguagem poética. Para o provar, sublinho a simples palavra “luar”. Desafio os leitores a ler a palavra devagar, percebendo o que se passa no interior da sua boca ao fazê-lo e notando a musicalidade inerente. E não é que só os portugueses têm uma palavra própria para designar a luz da Lua?

Por vezes o silêncio não deixa de ser de ouro, mas o normal é estarmos imersos em palavras. E, se a linguagem árida de um contrato nos traz apenas segurança, ler uma página de Camilo ou de Aquilino ou duas simples linhas de Sophia transmite-nos algo que nem todo o ouro do mundo poderia comprar.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Abril de 2024

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terça-feira, 26 de março de 2024

A GRANDE VANTAGEM DA DEMOCRACIA

 


Costuma citar-se Winston Churchill quando referiu ser a Democracia o pior regime político que existe….à excepção de todos os outros. Este é o nosso regime há cinquenta anos, devendo-se aos militares do 25 de Abril de 1974 e a muitos políticos que lhe deram depois corpo. Para quem assistiu ao vivo ao que se passou nesses tempos é impressionante verificar quanto mudámos todos e o país neste período. Tal como para muitos portugueses que como eu próprio nasceram nos anos 50 ou 60, o regime anterior parecia que existia desde sempre, para os jovens de hoje a Democracia é o regime em que nasceram e o único que conhecem. E, por definição, um sistema democrático permite tudo no seu seio, desde os ambiciosos que pretendem tudo para si aos preocupados com o bem comum que utilizam as ferramentas da democracia que são os partidos, até aceitar os que são contra a Democracia. Assim sendo, em Democracia todos têm a oportunidade de expor os seus pontos de vista, até os mais abstrusos. Desse ponto de vista, a fraqueza da Democracia que é aceitar no seu seio os seus próprios inimigos, acaba por ser a sua maior força, ao contrário do que muitos pensam, tentando mesmo calar aqueles outros, o que é sempre um erro.

Da Democracia fazem parte as eleições livres e universais, isto é, em que todos os cidadãos podem participar em igualdade de valor de voto. Algo que, atualmente, nos parece tão natural como respirar, mas que na realidade não o é para muita gente no mundo. Basta ver o que se passou na Rússia e naquela farsa a que Putin chamou eleições para se manter no poder durante o tempo que quiser, como se fosse um Czar. Também os portugueses assim foram impedidos de escolher livremente o seu futuro durante quase 50 anos, algo de que não nos podemos esquecer.

Durante estes últimos 50 anos aprendemos todos muito sobre o funcionamento da Democracia. Sobre os aspectos positivos, mas também sobre os negativos para que Churchill chamava a atenção. Desde logo o exercício da soberania popular permite algo que tem um valor incalculável: arredar do poder quem lá estiver, sem que para tal se tenha de fazer uma revolução. Claro que quem vence eleições não tem automaticamente razão, o povo apenas lhe entrega um mandato temporário para mostrar ao que vem e o que vale na concretização prática das suas ideias.


Na longa campanha eleitoral por que acabámos de passar, mais uma vez os aspectos negativos da democracia, ou antes da sua organização funcional e dos próprios partidos, vieram ao de cima e foram particularmente evidentes. Desde logo, o que se discutiu foram essencialmente assuntos do imediato e não do que é essencial para o futuro colectivo. Os vencimentos dos polícias são importantes para os próprios e mesmo para o bom funcionamento dos organismos policiais, mas temos de convir que não são o essencial da organização da nossa segurança. A recuperação do tempo de serviço dos professores interessa aos próprios como uma questão de justiça e de dignidade, mas resolve os problemas fundamentais da nossa política educativa? Os vencimentos dos funcionários judiciais são evidentemente importantes, mas não são o fundamental do funcionamento deficiente da nossa Justiça. Os problemas de organização do SNS são tão graves que não será a subida imediata dos vencimentos dos médicos e enfermeiros que resolverá o problema. Tal como a corrupção não é o cerne dos problemas do funcionamento do Estado ou a descida súbita dos impostos não será o que vai garantir a melhoria sustentável da nossa qualidade de vida, embora possa melhorar o imediato.

Torna-se claro que os partidos fugiram dos verdadeiros problemas e das suas soluções, que conhecem bem, certamente porque não dão votos. Mas que eles estão lá e precisam urgentemente das reformas que os permitam ultrapassar, isso é uma verdade insofismável. Para surpresa geral soube-se, já depois das eleições,s que o próximo cheque europeu do PRR estará dependente de algo previsto no contrato que não foi feito e que nem sequer era sabido fora do Governo: a reforma do Estado. Melhor prova da incapacidade de enfrentar os verdadeiros problemas não será necessária e não foi à toa que os portugueses votaram no passado dia 10 de Março como o fizeram.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 de Março de 2024

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terça-feira, 19 de março de 2024

O Inverno do nosso descontentamento

 


Foi um Inverno atípico este, passado todo ele em campanha eleitoral. E, se é um facto que as eleições são a festa da Democracia, sendo os resultados eleitorais a afirmação da vontade popular, o que se passa nas campanhas é muitas vezes desolador, quando não deprimente. E a duração de uma campanha desde inícios de Novembro até aos meados de Março é, definitivamente, algo que não deverá voltar a repetir-se, O Presidente Marcelo lá apontou as suas razões para passarmos um Inverno mergulhados em campanha, mas que foi demais, penso que estaremos todos de acordo.

E o que começou mal, mal acabou. As razões que levaram à demissão do Primeiro-Ministro e à posterior dissolução da Assembleia da República são conhecidas e não orgulham ninguém. Um Primeiro-Ministro demitir-se por estar a ser investigado pela Justiça, mal ou bem ainda está para se saber, e no dia seguinte saber-se que o seu chefe de gabinete tinha mais de 70.000 euros escondidos no Palacete de S. Bento é algo a lamentar, em absoluto. Que o Presidente da República, no uso das suas competências constitucionais, não aceite outro governo saído de uma maioria absoluta parlamentar existente é algo que merecia outra justificação que não a de o primeiro-ministro ter sido escolhido directamente pelo povo, que não o foi.

E as eleições tiveram um resultado que, se havia quem o previsse, na realidade surpreendeu pela nova composição da Assembleia da República. Quem ganhou? As Direitas. A AD do PSD e do CDS, a Iniciativa Liberal e o Chega somaram 3.232.119 votos.

Quem perdeu? As Esquerdas. O PS, o BE, a CDU e o Livre somaram 2.436.413 votos. O PS perdeu 486 mil votos, o BE ganhou mais 33 mil, a CDU perdeu 34 mil e o Livre obteve mais 130 mil votos.

Deixo de fora o PAN e o ADN, mas cujos resultados em nada alteram a correlação de forças. Do ponto de vista político, a surpresa maior veio da descida da abstenção: mais de 770 mil cidadãos decidiram ir votar para além dos que foram às urnas em 2022. Salta à vista a proximidade com o aumento de votação do Chega: mais 723.mil votos do que há dois anos no que parece pacífico considerar-se como sendo uma manifestação de protesto, algo em si negativo, mas com grande significado político. Os partidos do centro político fariam bem em analisar internamente o que fizeram ou o que não fizeram para gerar tal descontentamento entre os eleitores que os leva a votar em tal partido! Já a AD (ou os partidos que a compõem) ainda assim recolheu mais 312 mil votos. A queda do PS foi absolutamente brutal, atendendo à maioria absoluta obtida há apenas dois anos. Claro que enquanto escrevo esta crónica não se conhecem ainda os resultados dos votos vindos do estrangeiro, mas sente-se que não alterarão muito a situação, já que se trata de apenas quatro mandatos. É indiscutível que nestas eleições não se verificou apenas a ida óbvia às urnas de centenas de abstencionistas para lavrarem o seu desagrado para com os partidos sistema, mas também uma rejeição clara da governação socialista dos últimos dois anos. E nem vale a pena recordar aqui o que foi essa governação, olhando para trás até parece que a maioria absoluta trouxe consigo um cansaço extremo da governação incapaz de avançar com reformas. Para além do PRR e da preocupação com o défice e a dívida pública, curiosamente desde sempre bandeiras da direita, a sensação era de que não havia mais nada a tratar pelo Governo, ficando tudo o resto para trás.


Como é usual, a Esquerda mais radical parece querer esquecer a sua real valia eleitoral e já manifestou vontade de se unir ao PS contra a AD, no caso de esta formar Governo como parece que vai suceder. Do lado da AD, mantém-se o “não é não” que significa que o PSD e o CDS, formando Governo, não integrarão o Chega, nem com ele farão acordo parlamentar. Assiste-se, assim, a uma situação de grande complexidade política que exigirá no novo Governo, de uma fragilidade política evidente, uma grande capacidade negocial, principalmente no que respeita aos Orçamentos, a começar já com o de 2025.

Foi realmente um Inverno do descontentamento. Mas há uma verdade inelutável. Aos rigores e dificuldades do Inverno segue-se sempre a vida trazida pela Primavera. Haja esperança.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Março de 2024

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segunda-feira, 11 de março de 2024

A GUERRA, SEMPRE A GUERRA

 


Ao contrário do que muitos possam pensar a guerra é praticamente o estado natural da humanidade desde tempos imemoriais, mesmo de quando os humanos não passavam de tribos familiares errantes que dependiam da caça para sobreviver. Consequentemente a Paz, e lembro que a paz não é apenas a ausência de guerra, é algo que é resultado de acções decididas para a obter e manter. Infelizmente, porque a Paz não pode nunca significar uma subjugação, fazer a guerra é, por vezes, mesmo necessário para obter a Paz. O Jardim do Éden de Rousseau andou sempre muito longe da realidade das relações humanas e já na Roma antiga Marco Túlio Cícero avisava: “manter-se na ignorância do que aconteceu antes de se ter nascido é manter-se para sempre criança”.

Ao longo dos séculos a península que vai do Atlântico aos Urais, a que se chama hoje Europa, foi palco de numerosas guerras internas, que tantas vezes não eram mais do que lutas de poder entre reis e príncipes, irmãos ou primos entre si. Uma dessas guerras ficou conhecida como a Guerra dos Cem Anos, tão longa foi a sua duração, embora intermitente. A penúltima destas guerras intestinas ficou conhecida como Primeira Guerra Mundial e acabou há pouco mais de cem anos deixando mais de 40 milhões de mortos, entre os quais mais sete mil soldados portugueses. Tendo ficado mal resolvida, e num contexto de desenvolvimento de ideologias extremas, seguiu-se-lhe a que até agora foi a última grande guerra, a Segunda, que deixou cerca de 85 milhões de mortos. Na sua sequência e da formação da CEE que evoluiu até à actual União Europeia, a Europa conheceu um período de paz cuja duração é verdadeiramente uma raridade histórica.

Mas, para além das guerras internas, a Europa foi palco de invasões vindas do Oriente que tiveram uma importância decisiva na nossa História. No séc. V Átila ficou conhecido como o Flagelo de Deus tendo causado destruição e pavor em largas zonas do continente europeu, acompanhando o declínio do Império Romano. No séc. VIII vieram os Árabes muçulmanos que deixaram uma grande influência, em particular na Península Ibérica, de onde só foram expulsos definitivamente em 1492. No sec. XIII os Mongóis, depois de conquistarem a China liderados por Gêngis Cã, viraram-se para a Europa, chegando até à Hungria depois de destruírem Kiev. Parando felizmente por aí antes de regressarem ao Oriente, tiveram um papel crucial na História de desenvolvimento europeu ao destruírem Bagdad em 1258, assim diminuindo a força do mundo islâmico. Já os Otomanos conquistaram Constantinopla em 1453 e, em 1529 com Suleimão, chegaram às portas de Viena cuja conquista foi fracassada, tal como veio a acontecer em 1683 tendo a cidade sido salva por forças vindas da Polónia e da Lituânia. Por fim, o exército vermelho de Estaline que, de libertador do jugo nazi na Europa Oriental, instantaneamente passou a ocupante, estabeleceu um novo império Russo na Europa oriental, sob a capa da aliança comunista chamada União Soviética que se auto-dissolveu em 1991.


Aqui chegados, todos lamentamos o fim da época de paz na Europa, que foi também de uma prosperidade sem paralelo histórico. A invasão da Ucrânia, país independente e soberano sob todos os pontos de vista, pela Federação Russa há dois anos, veio alterar todo um equilíbrio internacional e acabar com a Europa como a conhecemos. A Europa tem-se sentido militarmente segura com a NATO, mas a possibilidade muito real de Donald Trump (que se recusa a defender a Europa) voltar a ser eleito Presidente dos EUA obriga a toda uma revisão da situação. Discute-se já uma Política de Defesa Europeia que terá como consequência um grande aumento das despesas militares comuns. Para os diversos países europeus que também integram a NATO, caso de Portugal, tal terá obrigatoriamente consequências nos orçamentos nacionais por duas vias. Há países europeus que já gastam mais de 2% do seu PIB em despesas militares e que são, sem surpresa, os mais próximos geograficamente da Rússia, com a Polónia à cabeça, mas incluindo a Grécia, a Estónia, a Lituânia, a Finlândia a Roménia e a Hungria, por exemplo. Já Portugal gasta apenas 1,4% e vai ter de subir até aos 2%, mas as verbas que recebemos da União vão também certamente descer com as novas e preocupantes prioridades comunitárias.

Nada disto foi tema da recente campanha eleitoral e percebe-se bem porquê. À possibilidade real de alastramento da guerra a ocidente com uma Ucrânia enfrentando dificuldades militares crescentes, adiciona-se uma nova situação financeira da União com despesas militares elevadas. O que, apesar da nossa situação geográfica, nos atira completamente para dentro da crise e ninguém gosta de dar más notícias, principalmente em campanha eleitoral.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 11 de Março de 2024

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segunda-feira, 4 de março de 2024

Vamos, novamente, a eleições

 


Ao fim de mais de quatro meses de espera, no próximo Domingo 10 de Março de 2024 vamos a eleições. Parafraseando o saudoso músico José Mário Branco, o que andámos nós para aqui chegar? Na realidade, passaram apenas dois anos sobre as anteriores eleições de que o Partido Socialista saiu com maioria absoluta. E no entanto…em apenas dois anos de maioria absoluta, saíram 13 governantes até que chegou a vez do próprio Primeiro-Ministro se demitir no meio de circunstâncias de que o próprio admitiu estar envergonhado.

O Governo que agora se vai saiu de eleições que se seguiram ao chumbo de um Orçamento de Estado por parte dos ex participantes da Geringonça, Bloco de Esquerda e Partido Comunista, que se cansaram se se sentir ludibriados durante quatro anos a negociar e aprovar orçamentos que depois não eram minimamente cumpridos pelo Governo. Também esse governo anterior tinha saído de uma solução inédita no nosso país ao ser liderado pelo PS que tinha perdido as eleições depois do Governo da Troica. Solução perfeitamente constitucional, mas contrária a toda a prática seguida até então, abrindo caminho a que outros venham a construir maiorias dessa forma.

Isto é, as eleições de Domingo são um julgamento popular e democrático de oito anos de governação socialista, já que governações anteriores, fossem a de José Sócrates ou de Passos Coelho já foram sujeitas há muitos anos ao veredicto do povo. Em Democracia os partidos são responsáveis pelos resultados da sua governação. Ao contrário do que acontece no futebol em que, a cada nova época se inicia tudo do zero, nas eleições julga-se o que foi feito e o que não foi feito na governação, já que o trabalho da governação tem consequências que se prolongam no tempo para além dos ciclos eleitorais.

No caso concreto, muito para além dos sarilhos de governantes a abandonar o Governo, de uma forma ou de outra, o importante é verificar os resultados da governação, e para o fazer, nada como ver o estado na Habitação, da Educação, da Segurança, das Forças Armadas, etc. Ressalto a situação da Saúde, em que o estado do SNS é verdadeiramente preocupante. Os partidos discutem o futuro, com maior ou menor participação dos sectores privado e social. Mas não podemos esquecer que, da quantidade de dinheiro investida no SNS, actualmente cerca de 40% vai directamente para hospitais, clínicas, laboratórios, todos privados, por manifesta incapacidade do SNS de responder às necessidades dos cidadãos. Todos nós, utentes do SNS, sabemos que com requisições do SNS vamos a esses serviços privados fazer todos os exames sem pagar um cêntimo directamente do bolso. Só podemos imaginar a fortuna que o Estado gasta desta maneira. E gasta nos dias de hoje, depois destes 8 anos de governação socialista. Só por hipocrisia se pode dizer que, depois do que se passa, vêm aí os privados tomar conta da nossa saúde.


Pedro Nuno Santos escolheu a estabilidade como mote para a sua campanha, garantindo que só o seu partido a pode garantir aos portugueses. E, de facto, se há algo de que estamos necessitados é de estabilidade: a nível social, económico, fiscal, de saúde, etc. etc. Mas depois destes últimos anos, é Pedro Santos que a garante? Muito dificilmente, se nos lembrarmos da forma como saiu do Governo há um ano. Por outro lado, todos os portugueses viram em directo o namoro, à vez, entre Pedro Santos, Paulo Raimundo e Mariana Mortágua. Uma nova Geringonça está evidentemente na forja, como solução para o caso, muito provável, de o PS não ganhar as eleições. Alguém pode falar em estabilidade em Portugal em 2024, com uma nova geringonça com o PCP e o BE, eventualmente com Mortágua a ministra das Finanças, sonho de tanta gente? Com a ameaça de nova vaga inflacionista no horizonte? Numa União Europeia em crise por causa dos mais diversos problemas em que a PAC não é o maior, já que a guerra a sério está à nossa porta e a Europa não tem meios militares para se defender? Num momento em que há uma grande probabilidade de os EUA voltarem a ter Trump a presidir, um Trump agora muito diferente porque já sabe bem como funcionam os pesos e contrapesos do sistema americano e com um sentimento evidente de raiva contra quem o retirou do poder e não o deixou tranquilo nestes últimos anos?

Num mar alteroso como o que se adivinha, Portugal precisa de quem saiba onde está o porto seguro e que tenha calma e ponderação para seguir a rota certa para lá chegar. Estabilidade, com efeito, precisa-se, mas não feita de enganos e progressivo empobrecimento relativo. E longe de extremismos e populismos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Março de 2024

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terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Portugal e as suas disfunções


António Damásio é, certamente, o cientista português mais conhecido internacionalmente sendo, como neurocientista, de certeza o mais notório a nível mundial. Licenciado e doutorado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, exerce desde há muitos anos a sua actividade de Professor e Investigador em universidades nos EUA, actualmente na Universidade da Califórnia Sul.

Apesar da sua área de investigação estar muito longe de poder ser considerada próxima de conhecimento da generalidade das pessoas comuns, conseguiu uma divulgação dos resultados do seu trabalho, através da publicação de diversos livros que conheceram grande sucesso. Pessoalmente, lembro-me bem do interesse suscitado pelo livro “O Erro de Descartes” em que, demonstrando haver uma íntima relação entre razão e emoção, veio alterar toda uma ideia estabelecida da capacidade da razão resolver só por si as questões que se nos colocam. Para além dessa obra, é autor de outros livros, de que é normalmente salientado o "Ao encontro de Espinosa".

Pelo seu trabalho original e explorador de novos caminhos para a compreensão do trabalho do cérebro humano, António Damásio recebeu numerosos prémios de que se salientam o Prémio Pessoa e o Prémio Príncipe das Astúrias em Espanha, tendo sido distinguido como Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada em 1995. É indiscutível ser um dos nossos compatriotas mais notáveis e merecedor da nossa maior consideração.

Após a sua eleição como Presidente da República há oito anos, Marcelo Rebelo de Sousa convidou António Damásio para membro do Conselho de Estado dentro da sua quota pessoal de cidadãos, cargo que exerceu desde então até há poucas semanas.

Como tem dupla nacionalidade e a sua actividade profissional é exercida, há largas dezenas de anos, noutro país António Damásio entendeu, e só pode ter a nossa compreensão, que não estaria obrigado a entregar no Tribunal Constitucional uma Declaração de Património e Rendimentos. Deve lembrar-se aqui que ser Conselheiro de Estado não significa, em Portugal, que se receba qualquer vencimento, havendo lugar apenas “ao reembolso das despesas de transporte, público ou privado, que realizem no exercício ou por causa das suas funções” para além de ter “ainda direito às ajudas de custo fixadas para os membros do Governo, abonadas pelo dia ou dias seguidos de presença em reunião do Conselho e mais 2”. Por outro lado, “a função de membro do Conselho de Estado é compatível com o exercício de qualquer outra atividade, pública ou privada”.


Confrontado com esta situação, o Tribunal Constitucional entendeu, e não poderia deixar de o fazer, que a legislação nacional determina que “todos os membros de órgãos constitucionais são considerados titulares de cargos políticos”. Sendo o Conselho de Estado um órgão constitucional, de acordo com a lei António Damásio está, portanto, obrigado a entregar a tal Declaração.

A legislação em causa tem em vista a transparência no exercício de cargos políticos e assim prevenir a corrupção. Temos de convir que, no caso concreto do Conselho de Estado, esta normativa pode ser considerada como perfeitamente desajustada, mas é a que existe na realidade. Neste caso, impede o Presidente da República de ser aconselhado por uma personalidade de ímpar qualidade.

Lá de onde observará o que se passa em Portugal neste ano de 2024, Franz Kafka deve dizer para si mesmo que a imaginação que o levou a escrever a sua obra mais famosa é ultrapassada pela nossa realidade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Fevereiro de 2024 

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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Solidariedade ocidental

 

Muitos observadores consideram hoje que a Segunda Guerra Mundial não terminou em 1945 com a derrota do nazismo e do imperialismo japonês, já que se lhe seguiu a chamada “guerra fria” entre a União Soviética e o Ocidente que, no fundo constituiu um prolongamento daquela. No seu caminho até Berlim, os exércitos soviéticos ocuparam a chamada Europa de Leste, tendo constituído regimes autoritários comunistas em Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sófia
. Apenas escapou a Grécia, ainda assim vítima de uma guerra civil, em que as forças comunistas foram derrotadas. Na sequência dessa ocupação comunista, Churchill viria, no seu famoso discurso de 1946, a adoptar a designação “Cortina de Ferro, desde Stetin até Trieste”.

Perante o sucedido, os países ocidentais incluindo a Europa e os EUA criaram, em 1949, uma aliança defensiva, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), com o objectivo de responder a um ataque soviético a qualquer um dos seus membros. Em resposta, a União Soviética criou o Tratado de Amizade, Cooperação e Assistência Mútua mais conhecido por Pacto de Varsóvia por ter sido assinado em Varsóvia, em Maio de 1955. Assim se iniciou a chamada “Guerra Fria”, que teve o mundo suspenso da ameaça mútua de holocausto nuclear e só viria a terminar com a dissolução do Pacto de Varsóvia acompanhando o fim da própria União Soviética em 1991. Para além do aspecto militar a guerra fria tinha por base uma questão ideológica, já que constituiu uma confrontação entre sistemas económicos e sociais basicamente definidos como comunista no Leste e capitalista no Ocidente. Por outro lado, na aliança ocidental os países eram livres de sair, ao contrário do que sucedia a Leste, como as revoltas da Hungria em 1956 e na Checoslováquia em 1968 provaram de forma trágica.

Com o fim do Pacto de Varsóvia, vários países que o tinham integrado voltaram-se para a NATO que não foi dissolvida como, por exemplo, a Albânia, a Bulgária, a Hungria, a Roménia, a Polónia e os países saídos da antiga Jugoslávia.

Com a invasão da Ucrânia em 24 de Fevereiro de 2022, a Federação Russa veio demonstrar que o antigo Pacto de Varsóvia era para além de um bloco ideológico, muito mais a constituição de um império russo, que Putin tem o sonho de ver reconstituído, através de conquistas militares.

Do lado da NATO, a que a Ucrânia quer também pertencer, os anos de paz que se seguiram ao fim da União Soviética levaram a uma sensação se segurança que agora se mostra ser falsa e ingénua. Muitos países membros deixaram de cumprir as suas obrigações de despesa militar perante a Aliança, confiando no “guarda-chuva” dos EUA. Há poucos anos, apenas onze dos trinta e um países membros estavam na situação de cumprimento, sendo actualmente esse número de 18, numa evolução positiva.


O pré-candidato às presidenciais americanas Donald Trump veio há poucos dias convidar Vladimir Putin a invadir os países da NATO que não cumpram os seus compromissos para com a Aliança. Trata-se de uma evolução grave relativamente ao que dizia anteriormente, em que ameaçava com a saída dos EUA perante essa situação. É notório que Trump trata a relação entre países como se de relação entre empresas se tratasse. Para ele não existe solidariedade internacional, seja por que motivo for. Mas esta mudança de posição passa uma linha de traição e trará consequências, não só para com os países europeus que descansaram perante a protecção americana, mas também para o próprio futuro papel dos americanos na nova ordem mundial que já surge no horizonte com a China a ocupar um papel crucial e não a Rússia.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 Fevereiro 2024 

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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

ALGUMAS QUESTÕES DA ACTUALIDADE

 


Dentro de um mês os portugueses vão às urnas escolher quem deverá governar o país. Essa a essência da Democracia e um momento alto do exercício da soberania do Povo, vença quem vencer as eleições.

Mas, por enquanto, estamos em campanha eleitoral, período em que cada força política apresenta as suas opções e critica as dos adversários, assim tornando mais claro qual o futuro colectivo proposto.

Contudo há algo que, de forma algo surpreendente e certamente inédita nas nossas eleições, surge de forma notória que é a autêntica girândola de propostas de descida de impostos, nomeadamente do IRS, à esquerda e à direita. Os portugueses deverão andar perplexos com tanta generosidade de promessas! Vale a pena parar uns minutos para analisar as razões desta situação, o que significa e quais as vantagens.

Desde logo, é possível verificar que a carga fiscal em Portugal é por todos considerada muito elevada. No entanto, ao contrário do que por vezes se crê, está sensivelmente na média das cargas fiscais dos países da União Europeia. De acordo com o Eurostat, em Portugal a carga fiscal foi, em 2022, de 38% (um recorde histórico) enquanto na União foi, em média, de 41,2%. No entanto, o esforço fiscal que pondera a carga fiscal de um país pelo nível de vida dos seus cidadãos indicando, desse modo, o esforço dos contribuintes na satisfação das obrigações fiscais é, entre nós, o quarto mais elevado da União Europeia. Dado que o valor do nosso PIB per capita é dos mais baixos da União, a conjugação destes valores é mais que suficiente para explicar a preocupação dos portugueses com os impostos e a atenção generalizada dos partidos com o assunto.

Dito isto, há duas maneiras de abordar este assunto para tentar corrigir a disfunção evidente. Uma é diminuir os impostos sobre os rendimentos, outra é manter o nível de impostos e promover o crescimento dos ordenados médios. É claro que os valores dos ordenados são consequência da capacidade da economia em geral, não sendo definidos administrativamente. Daí quase todos os partidos prometerem baixa de impostos em época eleitoral, já que melhorar a economia exige muita capacidade e competência, para além de outra abordagem do problema, com verdade e capacidade política.

Por outro lado, ao ir ver para onde vão os impostos entregues pelos contribuintes ao Estado, verifica-se uma situação alarmante que é escondida aos portugueses. Apesar das parangonas dos jornais, o investimento público tem sido nos últimos anos extremamente baixo. De tal forma, que é quase difícil de acreditar, se não se for verificar os números concretos. Em 2021 o investimento público foi de 2,6% do PIB, quando há 50 anos, isto é, em 1974, era de 3,63%. Por curiosidade, o valor máximo desde então foi de 6,4% em 1981 e o mínimo de 1,74% em 2019. Observando estes números, é fácil perceber a razão pela qual as administrações públicas têm sofrido, em geral, uma degradação que se reflecte na qualidade dos serviços prestados pelo Estado. E entender as razões das queixas que todos os dias observamos de profissionais de saúde, educação segurança, etc. Queixas que, para serem resolvidas, precisam de dinheiro dos impostos, muito dinheiro! O que não se gastou em investimento público necessário vai ter de ser gasto, mais cedo ou mais tarde. Por alguém que vier a seguir.


O povo diz que quando o pano é curto, puxa-se o lençol de um lado e destapa-se do outro. Andar a prometer descidas acentuadas de impostos significa diminuir a receita fiscal do Estado, quando o nível de investimento público já é claramente insuficiente face às necessidades. Em parte, esta situação anda a ser tapada pelo chamado PRR que, em vez de funcionar para o que era suposto, isto é recuperar a economia depois do tratamento a que foi sujeita pelo Estado durante a pandemia, é usado quase em exclusivo para cobrir as insuficiências do investimento público. Esta situação insustentável é, evidentemente, consequência da governação dos últimos anos e os seus autores devem ser politicamente responsabilizados pelo que fizeram e pelo que não fizeram praticando uma austeridade escondida.

Mais valia que os partidos explicassem isto ao povo, com verdade e honestidade, em vez de prometerem “sol na eira e chuva no nabal”. Mostrar só parte da realidade dá sempre mau resultado, porque ela acaba sempre por surgir na sua totalidade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 12 Fevereiro 2024
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RECORDAR É VIVER - Quelques chansons


 Há poucos dias um estimado amigo partilhou num grupo de WhatsApp uma canção francesa dos anos 60 chamando ao post “recordar é viver”. Foi o gatilho que me levou a escrever mesmo uma crónica que já andava a bailar na cabeça há alguns meses.

Vivemos hoje num mundo diferente que evoluiu muito rapidamente em que, se por um lado há uma grande liberdade para escolhas individuais nas mais diversas áreas, outras há em que vivemos mergulhados naquilo que alguém nos impõe. Na realidade torna-se difícil fugir hoje a um “mainstream” informativo e, em sentido mais lato, comunicacional.

É assim que, entre outros tipos de música, a francesa desapareceu completamente das ondas hertezianas, acompanhando de resto toda uma cultura exilada do espaço público para as catacumbas académicas. E é pena, porque sempre teve muito mais qualidade do que tantas musiquinhas dos dias de hoje, com títulos que não duram mais do que umas semanas antes de serem substituídos por outros praticamente iguais.

E a música ligeira francesa merece ser ouvida, se merece!, muito para além daquela que ficou conhecida como “chanson”. Recordarei aqui alguns trechos eternos, que aliam a música a verdadeiros poemas que nos agradam e nos fazem pensar.

Relembro aqui Charles Trenet quando cantava a chegada da primavera a Paris em “EN AVRIL à PARIS”: Quand Paris s´éveille au mois d’avril / Quand l’air plus doux berce une jeune romance / Au coeur du Luxembourg, les oiseaux chantent l’amour / Sur un banc, Jeanne et Pierre sont de retour…

Tal como Jean Gabin garantia que sabia em “MAINTENAN JE SAIS”: Vers 25 ans, j’savais tout / L’ amour, les roses, la vie, lessous / Tiens oui l’amour, j’en avais fait tout le tour.

Ouvia-se Édith Piaf, a pequena mu
lher que, daquele corpo minúsculo, soltava uma tempestade de música e sentimentos que fazia vir abaixo as maiores salas de espectáculos quando cantava “MILORD”: Allez, venez, Milord! / Vous asseoir à ma table / Il fait si froid, dehors / Ici c’est confortable…./   Je vous connais, Milord /  Vous n’ m’ avez jamais vue/ Je ne suis qu’ une fille du port…

Ou a mesma Piaf quando garantia nada lamentar em “JE NE REGRETTE RIEN”: Non, rien de rien / Non, j ene regrette de rien / Ni le bien, qu’on m’a fait / Ni le mal, tout ça m’est bien égal / Non, rien de rien / Non, j ene regrette de rien.

Yves Montand cantava em “LA VIE EN ROSE”: Quand je la prends dans mes bras / Elle me parle tout bas / Je vois la vie en rose.

E Jacques Brel cantava que quando não se tem senão o amor se tem o mundo inteiro nas mãos:  Quand on n’a que l’amour / À offrir à ceux-là / Dont l’unique combat / Est de chercher le jour / Quand on n’a que l’amour / Pour tracer un chemin.

E nos levava a dançar uma valsa louca: Au premier temps de la valse / Toute seule tu souris déjà / …Au troisième temps de la valse / Il y a toi y a l’amour et y et a moi / Et Paris qui bat la mesure.

Na revista “Salut les copains” não podia deixar de aparecer Sylvie Vartan que cantava assim: Ce soir, je serai la plus belle pour aller danser, danser / Ce soir je serai la plus tendre quando tu me diras, diras / Tous les mots que je véus entendre murmurer par toi, par toi.

Já Françoise Hardy lamentava-se: Tous les garçons et les filles de mon âge / Se promènent dans la rue deus par deux / Tous les garçons et les filles de mon âge / Savent bien ce que c’est qu’ être heureux.

E Jane Birkin e Serge Gainsbourg escandalizavam meio mundo e deliciavam outro meio: Je t’aime, je t’aime, oh, oui je t’aime / Moi non plus / Oh mon amour / Comme la vague irrésolue Je vais et je viens / Entre tes reins.

Léo Ferré ensinava-nos a passagem do tempo: Avec le temps, va tout s’en va / On oublie le visage et l’on oublie la voix, le coeur.

Gilbert Becaud recordava Nathalie: La place rouge était vide / Devant moi marchait Nathalie / Il avait un joli nom, mon guide

Mas há muitos mais intérpretes com um sem número de canções a ouvir e apreciar. Recordo Jean Ferrat, Georges Moustaqui, Serge Reggiani, Alain Barriére, Dalida, Serge Lama, Mireille Mathieu, mas também Christophe, Hervé Vilard, Claude François, Johnny Halliday, Charles Aznavour, Julien Clerc, Michel Sardou ou Joe Dassin. E, claro, Adamo cuja “Tombe la neige” recordada pelo camarada Carlos deu origem a esta crónica. Espero que, para além de ter suscitado alguma nostalgia nos leitores mais velhos, sobretudo nos mais novos tenha feito nascer alguma curiosidade pela rica música francesa.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  5 de Fevereiro de 2024
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