segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

ARTE DEGENERADA

A relação das ditaduras com a liberdade de criação artística, por o ser, é inevitavelmente caracterizada por atitudes de reserva, na versão mais suave e de perseguição obstinada e cruel na maior parte das vezes.
Desde a “orientação ideológica” da criação artística com perseguição dos que fogem à “linha correcta” como sucedeu no estalinismo até à pura perseguição dos artistas cuja criação não é do agrado dos detentores do poder absoluto, de tudo se tem visto na História da Humanidade, independentemente mesmo das opções políticas dos criadores.
Como em tudo o resto, o Nazismo fez também questão de mostrar o “mal absoluto” no que dizia respeito à criação artística. A definição de “arte degenerada” serviu para perseguir artistas de ascendência judaica, mas também todos aqueles cujas criações não estavam de acordo com as regras estritas do nazismo.
À custa desse conceito, artistas foram perseguidos, muitos deles até à morte e muitas obras de arte foram confiscadas pelas autoridades alemãs. Corrupto como era o regime nazi, grande parte dessas obras de arte foi parar às mãos dos mais altos responsáveis do regime, tendo-se destacado nesse aspecto Martin Bormman que organizou o roubo sistemático de obras de arte em todos os países ocupados, tendo mesmo morrido muitas pessoas só por serem possuidoras de peças de arte alvo da cobiça dessa gente.
Há poucas semanas soube-se da descoberta de uma colecção de mais de 1.500 quadros num apartamento em Munique, da autoria de pintores famosos, entre os quais Henri Matisse, Pablo Picasso, Marc Chagall e Paul Klee, num valor estimado superior a mil milhões de dólares. Os quadros, todos da tal arte classificada como “degenerada” pelo regime nazi, tinham sido objecto de confisco durante a guerra e estavam dados como desaparecidos desde o seu fim.
Como foi possível a alguém guardar todo este acervo durante tantos anos, é uma pergunta incómoda que levanta muitas outras questões sobre o destino, não só de muita arte roubada pelos nazis, mas também sobre o ouro que o regime de Hitler tinha acumulado, com origens que envergonham toda a Humanidade. Mais ainda, as actuais autoridades alemãs tinham conhecimento da existência desta colecção há vários anos, não tendo tomado qualquer iniciativa, suspeitando-se mesmo de encobrimento oficial. Afirma-se mesmo que o proprietário do apartamento, filho de um negociante de arte credenciado pelo ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, para vender internacionalmente quadros confiscados a judeus com objectivo de financiamento do regime, não existia sob o ponto de vista fiscal. No entanto, Cornelius Gurlitt vivia da venda periódica de quadros da colecção, tendo mesmo conseguido vender um quadro do pintor Max Beckmann por cerca de um milhão de dólares em Colónia, já depois das autoridades terem descoberto a colecção.
O “negócio” da venda de quadros saqueados a judeus pelos nazis abrangia o mundo inteiro e Portugal não escapou. Também cá foi estabelecido um ponto da rede que “exportava” quadros roubados pelos nazis para a América do Sul e para os Estados Unidos. O “mal absoluto” que invadiu a Europa na primeira metade do século XX continua a surpreender ainda hoje pelos mais diversos motivos, cada um mais vergonhoso e assustador que o outro.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 30 de Dezembro de 2013

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

NATAL



O Natal é certamente o símbolo da cristandade mais adoptado e aceite em todo o mundo. Há boas razões para isso: junta uma criança inocente nascida num meio pobre, a sua mãe e o seu pai que o é, porque o aceita como filho. Um conjunto notável de circunstâncias a que se juntam outras, como o momento Histórico e o local, que instantaneamente suscitam afectividade e adesão, antes mesmo do carácter religioso que advém do facto de a criança ser Jesus Cristo. A representação de Natal de S. Francisco de Assis que lhe juntou os simpáticos animais, só veio consolidar uma imagem que resiste até aos dias de hoje.
Na realidade, o dia em que se celebra o Natal não terá a ver com a verdadeira data do nascimento de Cristo que, através do cruzamento da análise dos evangelhos e da história do império romano (datas dos recenseamentos) poderá ter ocorrido no mês de Agosto, alguns anos antes da data fixada no século IV.
Mas o que interessa é o significado. E a data escolhida pelo cristianismo faz uma ponte para as antigas culturas que davam um grande significado ao solstício de Inverno que ocorre a 21 de Dezembro, data em que a noite tem a maior duração, mas também o momento a partir do qual os dias passam a ser cada vez maiores, simbolizando a vida que se renova. Por isso mesmo, na antiguidade, todos os grandes monumentos se orientavam para o Sol no momento do solstício de Inverno, o que indica a importância que esse momento desde muito cedo tinha para todas as civilizações.
Na nossa civilização ocidental perdeu-se grande parte da ligação à Natureza, sendo tudo muito artificial, até mesmo nas culturas que se tornaram quase independentes do clima de cada estação do ano. No entanto, o Natal significa essencialmente paz e harmonia, simbolizados na simplicidade do carinho que uma criança merece, por mais simples que seja o contexto em que nasce. Toda a exploração comercial que a nossa actual sociedade, estupidamente consumista e materialista faz associar a esta época surge como uma barbaridade sem nome perante a existência de tantas crianças que à nossa volta padecem de sofrimentos a começar pela fome e falta de carinho.
Caro leitor, tenha um feliz natal, mas não deixe que as luzes, a música e as compras façam esquecer a ternura intrínseca do simples presépio, de todos os presépios humanos.
Publicado originalmenteno Diário de Coimbra em 23 Dezembro 2013

sábado, 21 de dezembro de 2013

Solstício de Inverno


O ponto 1 corresponde ao solstício de Inverno, que ocorreu hoje às 17 horas. No ponto em que a eclítica mais se afastou do equador celeste, esta noite é a mais longa do ano. Daqui para a frente, os dias são sempre a crescer. Festejemos.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

AS “PESSOAS”

Nas últimas eleições não havia candidatura à mais recôndita das freguesias por esse país fora que não elegesse as “pessoas” como alvo das suas atenções. Fenómeno curioso, dado que, por definição, a política se destina precisamente a cuidar do bem comum, isto é, do que às pessoas interessa directamente.
 Suspeito que a utilização do termo “pessoas” a torto e a direito visa apenas esconder algo: a incapacidade ou, pior que isso, falta de interesse em esclarecer devidamente as opções políticas concretas com os custos e consequências económicas e sociais inerentes.
Mas mostra ainda um mal que, depois de se ter vindo a desenvolver nas profundidades no nosso sistema político, chega à superfície manifestando-se das mais diversas formas, com consequências sérias a curto prazo. Os partidos políticos portugueses, foram desenvolvendo sistemas internos de defesa perante o exterior, cortando muitas vezes as ligações ao mundo real e fechando-se em si mesmos. Os slogans passaram a ser escritos em agências de publicidade, nada mais sendo do que frases eventualmente apelativas, sem qualquer substância ou conteúdo político. Claro que na realidade não se afastam muito dos próprios candidatos que, a maior parte das vezes, são também fabricados dentro dos partidos, não apresentando quaisquer qualidades que os recomendem para os cargos a que se candidatam. Os partidos foram tomados por dentro pelas diversas lógicas que ao longo dos anos foram sustentando, desde as juventudes partidárias, aos lobbies familiares, de negócios e outros, daí surgindo as mais surpreendentes e tristes escolhas para as diversas candidaturas, seja para as autarquias, para o parlamento nacional ou mesmo para o parlamento europeu.
Em consequência, o florescimento das candidaturas independentes às autarquias locais vai certamente continuar. O que se passou no Porto vai servir de exemplo para todo o país. É provável que os partidos tenham muita dificuldade em responder à nova situação, fechando-se ainda mais. Quando se olha de fora, é quase inacreditável o autismo partidário que leva directamente às derrotas mais previsíveis não havendo, aparentemente, qualquer possibilidade de as estruturas concelhias, distritais e mesmo nacionais verem o que é óbvio para toda a gente, menos para quem lá está dentro. Hoje em dia, quem no interior dos partidos tentar falar a linguagem exterior, absolutamente normal para os restantes cidadãos, rapidamente se sente como um ser estranho que fala uma linguagem de outro mundo.
A Democracia não existe sem os partidos. Mas estes não a esgotam. E muito menos os que existem num determinado momento histórico. A sociedade portuguesa tem passado por momentos de grandes dificuldades. Todos sabemos que a origem dessas dificuldades está na actuação de agentes políticos incapazes de olhar para as receitas do orçamento de Estado como a contribuição dos portugueses e da economia para o bem comum, em vez de um montão de dinheiro para gastar e satisfazer egos, ambições pessoais e clientelas. E esses agentes políticos são o resultado das escolhas internas dos partidos. Perante a dificuldade de mudar os partidos por dentro as alternativas, á esquerda e à direita, irão naturalmente surgir e mudar toda a paisagem política.
Os partidos têm enchido a boca com a palavra “pessoas”. Rapidamente vão descobrir que são essas mesmas pessoas que lhes vão virar as costas, voltando-se para quem sentem que lhes fala uma linguagem compreensível e, acima de tudo, de confiança.
Publicado originalemnte no Diário de Coimbra em 16 de Dezembro de 2013

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

E a chuva que não vem

Que chova depressa. Todos os dias desço a Av Sá da Bandeira a pé e os sapatos colam-se ao chão, tal é a camada de porcaria da cerveja derramada na zona dos bares.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Nikon F2. Velhinha, mas mais bonita não há.


UM HOMEM INVULGAR E UM POLITICO EXEMPLAR

Quando nasceu em 18 de Julho de 1918 em Mviza, no remoto Transkei na África do Sul, o seu pai deu-lhe o nome Rolihlahla o qual, traduzido para português, significa “provocador de sarilhos”. Foi um professor que mais tarde passou a chamar-lhe Nelson.
Nelson Mandela faleceu na semana passada, mas tinha-se tornado há muito um mito, com tudo o que isso significa de bom e de menos bom.
Se o racismo é já, em si, uma das maiores vergonhas da humanidade, o regime de “apartheid” instituído na África do Sul desde os inícios do século XX que consistia num sistema de classes que limitava os direitos dos negros sul-africanos face à minoria branca Afrikaner descendente dos antigos colonos ingleses e holandeses, era absolutamente insuportável sob todos os pontos de vista.
A adesão ao ANC que lutava contra o apartheid de diversas formas, inclusivamente violentas, levou Nelson Mandela à prisão e lá esteve 27 anos por esse motivo. Durante quase 20 anos, esteve preso na prisão de Robben Island, onde as duras condições a que foi sujeito afectaram a sua visão de forma permanente.
Foi no sacrifício da prisão que foi desenvolvendo uma nova atitude para com os opressores. Como ele dizia, teve primeiro que se “vencer a si próprio” e perceber que se queria a paz e a democracia para o seu país, o racismo e a intolerância seriam os grandes empecilhos para tal, inclusivé pelo lado dos negros sul-africanos. Foi ainda na prisão que percebeu a força do perdão.
Para grande escândalo inicial do ANC, Mandela iniciou a certa altura negociações com os responsáveis do Governo branco, levando à prática todo o novo quadro mental entretanto por si desenvolvido.
A sua libertação deu-se em 11 de Fevereiro de 1990, na sequência de uma campanha internacional, mas só aceitou sair da cadeia depois de garantir que todos os seus camaradas saiam também. As negociações com o então Presidente F.W de Klerk já iniciadas anteriormente, levaram ao fim do apartheid apenas quatro anos depois, sendo Mandela eleito Presidente numa eleição geral multi-racial. Quando tantos previam que uma guerra sangrenta se seguiria ao fim do regime do apartheid, nada disso sucedeu, o que se deve em grande parte aos esforços de pacificação e de instalação de clima de tolerância por Nelson Mandela.
Como exemplo, fica a imagem poderosa mas simultaneamente simples de Mandela envergando a camisola da equipa sul-africana de Rugby, levando a assistência quase toda branca a levantar-se e gritar entusiasticamente o seu nome: ele tinha a consciência clara de que libertar os brancos dos seus medos seria ainda mais importante para obter a paz do que libertar os negros da escravidão. A criação de uma África do Sul democrática e não racial ficará certamente como o grande sucesso da sua vida.
No fim do seu primeiro mandato presidencial em 1999, declinou ser de novo candidato, ele que seria presidente toda a vida se assim o quisesse. De novo deu uma lição de humildade democrática e, acima de tudo, de cidadania, mostrando que o processo de democratização da África do Sul era maior do que qualquer pessoa, ele próprio incluído.
Mandela não era um santo, sabia disso e assumia-o. Dizia que os homens vão e vêm, mas acreditava na justiça durante a vida. Era tolerante com tudo, excepto com a intolerância.
Mais que glorificar o Homem que parte, aprendamos todos com o seu exemplo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 9 de Dezembro de 2013

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Cirurgia Cardio-torácica

Fui operado neste serviço. Lá vi as máquinas a que estava ligado a ficarem com os traços horizontais e a apitar e aqui estou para contar. Excepcional de uma ponta à outra: excelência exemplar em qualquer parte do mundo e em qualquer tipo de serviço de medicina, privado ou público. Obrigado, Dr. João Bernardo e restante pessoal médico e de enfermagem.


Ora bem

Numa tasca alentejana.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

UM MUNDO CADA VEZ MAIS COMPLEXO

Começa a fazer o seu caminho a ideia de que um “capitalismo sem limites” assentou arraiais no mundo e que é o único responsável pela desigualdade e exclusão social que todos vemos aumentar à nossa volta. O próprio Papa Francisco fala nisso, para grande satisfação dos que há anos culpam o chamado neo-liberalismo por todos os nossos males, incluindo saudosistas do “socialismo real dos amanhãs que cantam”, ingénuos bem pensantes sempre solidários com os sofredores desde que higienicamente bem afastados ou mesmo todos os outros cientistas sociais com soluções milagrosas para todos os males da sociedade. Claro que muitas pessoas há, que solidária e genuinamente se preocupam e sofrem com as dores físicas e íntimas dos semelhantes, sem tentarem usá-las para atingirem os seus próprios fins.
O que vemos à nossa volta quer nas proximidades, quer no resto do mundo, é no entanto demasiado complexo, sério e novo para ser explicado pelos velhinhos manuais simplistas dos ricos a viverem à custa dos pobres.
A economia mundial mudou muito nos últimos anos e ainda vai mudar muito mais, assim como a forma como se faz política, e também cá em Portugal. A globalização e opções políticas erradas patrocinadas pela então Comunidade Europeia levaram à desindustrialização do país, com a miragem dos serviços a substituir com menos esforço os trabalhos duros da agricultura, da pesca e da fábricas.
Entretanto, o mundo foi mudando com grande rapidez. As tecnologias informáticas associadas à desmaterialização do dinheiro permitiram aos detentores e gestores de grandes quantidades de dinheiro como os fundos soberanos e de pensões investir naquela parte do mundo e no momento em que a rentabilidade é a maior. Os investimentos financeiros passaram a ser mais atractivos do que os investimentos na chamada economia real, porque com maires lucros, obtidos mais rapidamente e sem o trabalho de criar empresas para criar e vender produtos transacionáveis.
A finança acabou por entrar também na área dos investimentos públicos. Fazer estradas, hospitais e escolas deixou de ser uma actividade económica para passar um negócio essencialmente financeiro através das parcerias público-privadas, com custos muito maiores para os contribuintes que deixaram aliás, de ter capacidade de perceber o que se passa nessa nova esfera e portanto de reagir em conformidade. Os bancos passaram de financiadores da economia a intermediários de capitais e mesmo financiadores da dívida pública.
A “financeirização” da economia trouxe ainda consigo outras alterações na socidade e na política, que estão longe de ser bem percebidas e compreendidas pela população em geral, mas que vão ter consequências sérias a curto ou médio prazo. Sempre se assistiu à existência e trabalho de lobbies das diferentes actividades económicas junto dos governos. O que se passa hoje é, no entanto, muito diferente. O poder político foi tomado por dentro pelas diversas actividades económico/financeiras. As próprias leis são feitas, não por serviços públicos, mas por sociedades de advogados contratadas para tal. A promiscuidade da passagem directa de pessoas entre cargos governamentais e gestão de empresas é apenas a face mais visível da tomada da política pela economia. E não é por qualquer economia, é mesmo a finança, até porque residem aí as únicas pessoas que entendem bem as técnicas sofisticadas de gestão dos “produtos financeiros”: como exemplo, basta ver o que se tem passado com os “SWAPS”.
Quem não tem nem quer ter nada a ver com este estado de coisas, afasta-se. É por isso que a política atrai cada vez menos aqueles se preocupam verdadeiramente com a coisa pública, com o servir os seus concidadãos: esquerda e direita alternarão cada vez mais como fantoches ao serviço de quem efectivamente manda, quando não juntas como agora na Alemanha, mostrando à luz do dia que na realidade não são hoje alternativa uma à outra. Até quando? Não sei. Mas tenho medo do que se seguirá.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 2 de Dezembro de 2013

domingo, 1 de dezembro de 2013

Calafetar a Alemanha

"Para evitar a repetição da I Guerra e das cenas de 1940, Mitterrand resolveu exigir o euro, que teoricamente evitaria uma nova hegemonia de Berlim. Mal preparado e mal pensado, o euro levou em pouco tempo ao resultado contrário: ao empobrecimento dos países mais fracos, da própria França ao nosso pindérico Portugal, e estabeleceu a Alemanha como a única potência económica e financeira da região – o que não deixa de a consolar e satisfazer e a conduziu a um isolamento pacato e certamente feliz, que não quer ver perturbado pelas raças inferiores do Sul e os seus sarilhos. O acordo entre os socialistas do SPD e as tropas de Merkel revela bem o estado da Alemanha em 2013. O SPD conseguiu alguns limitados gestos a benefício da populaça mais pobre. Merkel conseguiu que não se mexesse no resto, nomeadamente na política europeia: nada de dívidas soberanas, nada de défices para esconder a miséria de cada um e, principalmente, nada de eurobonds para obrigar o contribuinte alemão a pagar a irresponsabilidade e a incúria de estranhos. O contribuinte alemão usará as suas poupanças para viver bem, embora modestamente, e para se passear no Verão por climas quentes, como de resto inteiramente merece. Do que Merkel mais gosta na Alemanha são janelas bem calafetadas. Chegou agora a altura de calafetar a Alemanha. Por aqui, nem a esquerda, nem a direita falaram disso. Continuam ainda em 1988."

Vasco Pulido Valente, Público

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

VIVA O ALMADA, PIM!



Quem algum dia teve aulas no “Edifício das Matemáticas”, terá eventualmente uma vaga lembrança dos frescos que decoram as paredes laterais do átrio de entrada. Recordar-se-à, talvez, que são bonitos e diferentes e têm relação com as ciências exactas – as mais exactas de todas – que lá se ensinam e investigam, mas provavelmente pouco mais. Os conimbricenses em geral também saberão só isso ou, eventualmente, ainda um pouco menos.
E no entanto, aqueles frescos são obras de arte a conhecer. Não só pela beleza e significado artístico e cultural, mas porque são as únicas obras daquela dimensão existentes em Coimbra, da autoria de Almada Negreiros.
Passam este ano 120 anos sobre o nascimento da figura ímpar da Cultura portuguesa do século XX, que um dia escreveu ser Portugal “A Pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões”. Almada foi um artista multifacetado, tendo colaborado logo em 1915 no primeiro número da revista “Orpheu” e o seu modernismo ainda hoje surpreende pela irreverência iconoclasta, tendo assumido desde cedo a bandeira do futurismo com Santa Rita Pintor.
Revoltando-se contra o cinzentismo da literatura portuguesa e a decadência passadista da cultura nacional em geral, Almada fez de Júlio Dantas o seu alvo e escreveu o famoso “Manifesto Anti-Dantas” que muitos contemporâneos nossos deveriam ler para fugirem do bolor mal cheiroso de algum academismo que ainda hoje para aí anda, por vezes a coberto se um pseudo modernismo de pacotilha e, na realidade, velho, muito velho. No entanto, Dantas foi para Almada apenas o símbolo daquilo que era preciso mudar com urgência, uma sociedade tradicionalista, um país que já então precisava da “Invenção do Dia Claro”: “Basta pum basta!!! Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero!”
Almada caminhou sempre na vanguarda, desde o ballet (depois de assistir às representações dos Ballets Russes de Diaghilev) à pintura, passando pela literatura. São suas as decorações a fresco das Gares Marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, bem como o painel “Começar” da entrada da Fundação Calouste Gulbenkian. O seu auto-retrato de 1943 e o retrato de Fernando Pessoa para o restaurante Irmãos Unidos, antigo ponto de encontro do grupo do Orpheu são justamente famosos e icónicos da pintura portuguesa do século XX.
Neste mês de Novembro, integrado nas comemorações dos 120 anos do seu nascimento, decorreu em Lisboa, na Fundação Gulbenkian, o Colóquio Internacional Almada Negreiros. As comemorações incluíram ainda tertúlias, exposições e visitas guiadas. Tudo em Lisboa, claro, como é de uso.
O leitor, se quiser dar-se a esse trabalho, vá ver por si os frescos da entrada do Departamento de Matemática da FCTUC da Universidade de Coimbra, que não perderá o seu tempo Os frescos de Almada estão lá a cumprir a sua função, não num museu, mas no local para que foram criados. Um deles é dedicado à “Matemática portuguesa ao serviço da epopeia nacional” e o outro representa as principais figuras de “A Matemática desde os Caldeus e Egípcios até aos nossos dias” que, curiosamente, não esquece o “encontro com os árabes na península”.

Sobre a sua arte passou já o crivo do tempo, único que atesta a qualidade e importância artística de um autor. Nos dias de hoje, não há uma arte moderna, porque coexistem todas as correntes. É por isso surpreendente que ainda hoje as manifestações artísticas de Almada Negreiros surjam associadas à palavra “moderno” e que muitas das suas provocações ainda choquem tantos espíritos.


Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 25 de Novembro de 2013 

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Sofia


KENNEDY, ROBERT



As efemérides são uma boa ocasião para lembrar alguém ou alguma situação marcante, para daí extrair algo que nos pareça interessante ou mesmo exemplar para os dias de hoje. É quase sempre impossível, no reduzido espaço de uma crónica, dizer tudo aquilo que respeita a um assunto ou pessoa que nos marcou intensamente. Com John Kennedy, a quem dediquei a minha última crónica, tudo parece atingir uma grandiosidade excepcional, o que tem dado origem a numerosos livros e filmes sobre as circunstâncias da sua morte, mas também sobre a sua vida e até sobre quão diferente poderia ter sido o mundo se não tivesse ocorrido o 22 de Novembro de 1963 em Dallas. Basta pensar na guerra do Vietname, da qual Kennedy discordava. Mas quando se aborda um assunto destes, aparecem tantos fios para puxar, que é difícil escolher.
Falando de John Kennedy, não se pode deixar de falar da sua própria família. Por exemplo, dos quatro filhos de John e Jackie Kennedy, hoje apenas sobrevive Caroline Bouvier Kennedy. E é alguém que faz bem jus aos pais que teve. Com ideias próprias que defende com firmeza, é escritora e advogada, sendo desde o mês passado a Embaixadora dos EUA no Japão.
Mas de toda a família Kennedy, uma pessoa há que desde sempre me habituei a considerar como exemplar e a admirar como homem público. Trata-se de Robert Kennedy, um dos irmãos do antigo presidente. Robert foi o grande apoio de Jonh enquanto candidato a presidente e depois enquanto exerceu a presidência dos EUA, estando presente em todas as suas grandes decisões políticas. Diferentes um do outro até mais não, completavam-se no entanto de uma forma tão impressionante que deles disse o historiador Arthur Schlesinger: “John era um realista brilhantemente disfarçado de romântico, sendo Robert um romântico obstinadamente disfarçado de realista”.
Robert Kennedy foi nomeado pelo irmão como Ministro da Justiça (General Attorney) tendo sido um perseguidor determinado do crime organizado. De tal forma se dedicou a esta tarefa, que até morrer carregou a cruz da ideia de a sua acção ter de alguma forma contribuído para o assassinato do seu irmão John.
Robert dedicou-se à vida pública com toda a sua energia, levando para essas tarefas as suas características pessoais de entrega total. Robert Kennedy tinha uma enorme sensibilidade para as causas sociais, revoltando-se contra as injustiças, onde quer que elas surgissem, fosse na segregação racial, fosse nas questões dos índios ou apenas na pobreza. É preciso lembrar que Robert nasceu na família Kennedy que, sendo uma família riquíssima, nunca deixou de manifestar solidariedade para com os fracos. Basta dizer que o enorme hospital pediátrico de Boston todos os anos apresenta a factura dos prejuízos à família Kennedy, que os cobre sistematicamente, isto desde muito antes do aparecimento do conceito de responsabilidade social das empresas.
Após a morte do irmão, Robert deixou-se abater, criando a ideia de que abandonaria a vida pública. Mas por volta dos fins de 1967, pareceu que uma nova vida o tomou e decidiu em Março de 1968 candidatar-se à presidência dos EUA. E entrou na campanha da única maneira que sabia: sem medo e como se fizesse uma cruzada contra o que achava serem os males do seu país. Dizia que vivia um dia de cada vez, sabendo perfeitamente que desafiava a sorte ao agir daquela maneira.
Tal como o irmão Jonh, caiu às balas de um assassino, em 6 de Junho de 1968 logo após a vitória no Estado da Califórnia para a sua nomeação a candidato pelo Partido Democrata.
Não tendo sido presidente, a memória da sua vida e da sua actividade, designadamente a favor dos direitos dos negros em plena década de 60 e a luta contra o crime organizado mas, essencialmente, a alegria e a energia que colocava no que fazia e no que acreditava, fazem de Robert Kennedy um símbolo e um exemplo a seguir, bem diferente do cinismo e falta de alma da generalidade dos políticos de hoje.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em !8 Novembro 2013