No meio da torrente impetuosa de notícias das últimas semanas, uma houve que viu a luz do dia para logo desparecer na penumbra da actualidade e, provavelmente, não deveria. Foi conhecido que a CP decidiu prolongar o prazo de circulação das automotoras, de 1,7 milhões de quilómetros para 2 milhões de quilómetros. Isto é, as composições podem circular mais 300.000 quilómetros sem que os seus rodados sejam sujeitos a uma vistoria que, no caso de se verificar a necessidade da sua substituição, obrigariam a uma paragem que pode durar meses. “Mal acomparado”, como se costuma dizer, seria como autorizar os automobilistas a circular nas estradas com os pneus mais gastos do que a lei permite.
A CP coloca assim a poupança no prato de
uma balança e os riscos de falta de segurança na outra, deixando que o prato da
primeira suba além do da segurança. Claro que a empresa pública de transporte
ferroviário argumenta que não está a colocar em causa a segurança dos
passageiros, apresentando daqueles estudos técnicos que sempre aparecem nestas
situações. O que toda a gente percebe é que os prazos para as manutenções têm
sempre tolerâncias maiores ou menores definidas pelos fabricantes e o que a CPO
está a fazer é cortar valentemente nessas tolerâncias não havendo, para quem
está de fora, maneira de confirmar que não são ultrapassadas.
Contudo uma segunda notícia, que surgiu
praticamente ao mesmo tempo que aquela, veio introduzir uma segunda componente
à mesma questão, levantando sérias dúvidas sobre a correcção técnica da decisão
da CP. Segundo os jornais, o director de material circulante da CP não
concordou com a decisão de prolongamento do ciclo de manutenção dos rodados
daquelas composições. O técnico, por o ser, sabe bem que tal decisão pode
colocar em causa a segurança dos passageiros e como, no caso de acidente,
recairia sobre si parte da responsabilidade.
Esta notícia viria a ser completada com o
conhecimento do despedimento desse técnico pela CP no início deste mês. A
empresa pública veio negar qualquer ligação entre as duas situações,
justificando-se com “a não verificação de condições objetivas para o
exercício da função” por parte do ex-director, como se um técnico, numa empresa
com o grau de tecnicidade da CP, chegasse a director sem que aquele pressuposto
se verificasse. Claro que as “condições objectivas” podem muito ser aquelas que
todos estamos a imaginar.
As limitações de funcionamento da CP
estão à vista de todos há muitos meses, sendo consequência de uma “austeridade”
governamental que cortou violentamente nos investimentos públicos. A paragem
sem substituição, durante meses, destas automotoras utilizadas nas ligações
entre Lisboa e Tomar, na ligação entre Coimbra e a Figueira da Foz e ainda na
ligação a Évora iria aumentar o grau de insatisfação dos utentes, situação
muito inconveniente, principalmente em ano de eleições.
Mas o que mais motivou esta crónica foi o
despedimento do técnico que levantou a voz, em nome da segurança dos
passageiros. Felizmente, vivemos em democracia, senão as consequências para o
técnico poderiam ser outras. Seria, por exemplo, o sucedido a técnicos
semelhantes na União Soviética nos anos 30 do século passado, como Alexandre
Soljenitsine descreveu no seu “Arquipélago de Gulag”. Os dirigentes comunistas
precisavam de fazer circular os comboios permanentemente para cumprir as quotas
de produção definidas pelo partido. Assim, quando os engenheiros informaram que
era preciso parar os comboios durante algum tempo para tratar dos rodados, foram
acusados de pertencerem a um partido reaccionário, o partido dos técnicos, e lá
foram também vítimas de mais um daqueles processos kafkianos à boa maneira
soviética, engrossando os milhões de fuzilados ou remetidos para os campos de
trabalho forçado na Sibéria.
Os tempos são outros, as circunstâncias
também, mas há algo que se mantém: a propensão de políticos para adaptar
artificialmente a realidade aos seus interesses imediatos, ainda que à custa da
segurança dos cidadãos. E pior, a capacidade de perseguir quem levante algum
obstáculo à prossecução dos seus fins. Os regimes podem ser democráticos mas as
atitudes das pessoas, ainda que com elevadas responsabilidades, mostram como é
difícil respeitar quem faz o seu trabalho de maneira séria e responsável,
deixando à imaginação como se portariam em sistemas de poder absoluto como o
descrito pelo inesquecível Nobel da Literatura de 1970.
Publicado no Diário de Coimbra em 24 de Dezembro de 2018
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