segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Técnicos incómodos



No meio da torrente impetuosa de notícias das últimas semanas, uma houve que viu a luz do dia para logo desparecer na penumbra da actualidade e, provavelmente, não deveria. Foi conhecido que a CP decidiu prolongar o prazo de circulação das automotoras, de 1,7 milhões de quilómetros para 2 milhões de quilómetros. Isto é, as composições podem circular mais 300.000 quilómetros sem que os seus rodados sejam sujeitos a uma vistoria que, no caso de se verificar a necessidade da sua substituição, obrigariam a uma paragem que pode durar meses. “Mal acomparado”, como se costuma dizer, seria como autorizar os automobilistas a circular nas estradas com os pneus mais gastos do que a lei permite.
A CP coloca assim a poupança no prato de uma balança e os riscos de falta de segurança na outra, deixando que o prato da primeira suba além do da segurança. Claro que a empresa pública de transporte ferroviário argumenta que não está a colocar em causa a segurança dos passageiros, apresentando daqueles estudos técnicos que sempre aparecem nestas situações. O que toda a gente percebe é que os prazos para as manutenções têm sempre tolerâncias maiores ou menores definidas pelos fabricantes e o que a CPO está a fazer é cortar valentemente nessas tolerâncias não havendo, para quem está de fora, maneira de confirmar que não são ultrapassadas.
Contudo uma segunda notícia, que surgiu praticamente ao mesmo tempo que aquela, veio introduzir uma segunda componente à mesma questão, levantando sérias dúvidas sobre a correcção técnica da decisão da CP. Segundo os jornais, o director de material circulante da CP não concordou com a decisão de prolongamento do ciclo de manutenção dos rodados daquelas composições. O técnico, por o ser, sabe bem que tal decisão pode colocar em causa a segurança dos passageiros e como, no caso de acidente, recairia sobre si parte da responsabilidade.

Esta notícia viria a ser completada com o conhecimento do despedimento desse técnico pela CP no início deste mês. A empresa pública veio negar qualquer ligação entre as duas situações, justificando-se com “a não verificação de condições objetivas para o exercício da função” por parte do ex-director, como se um técnico, numa empresa com o grau de tecnicidade da CP, chegasse a director sem que aquele pressuposto se verificasse. Claro que as “condições objectivas” podem muito ser aquelas que todos estamos a imaginar.
As limitações de funcionamento da CP estão à vista de todos há muitos meses, sendo consequência de uma “austeridade” governamental que cortou violentamente nos investimentos públicos. A paragem sem substituição, durante meses, destas automotoras utilizadas nas ligações entre Lisboa e Tomar, na ligação entre Coimbra e a Figueira da Foz e ainda na ligação a Évora iria aumentar o grau de insatisfação dos utentes, situação muito inconveniente, principalmente em ano de eleições.
Mas o que mais motivou esta crónica foi o despedimento do técnico que levantou a voz, em nome da segurança dos passageiros. Felizmente, vivemos em democracia, senão as consequências para o técnico poderiam ser outras. Seria, por exemplo, o sucedido a técnicos semelhantes na União Soviética nos anos 30 do século passado, como Alexandre Soljenitsine descreveu no seu “Arquipélago de Gulag”. Os dirigentes comunistas precisavam de fazer circular os comboios permanentemente para cumprir as quotas de produção definidas pelo partido. Assim, quando os engenheiros informaram que era preciso parar os comboios durante algum tempo para tratar dos rodados, foram acusados de pertencerem a um partido reaccionário, o partido dos técnicos, e lá foram também vítimas de mais um daqueles processos kafkianos à boa maneira soviética, engrossando os milhões de fuzilados ou remetidos para os campos de trabalho forçado na Sibéria.
Os tempos são outros, as circunstâncias também, mas há algo que se mantém: a propensão de políticos para adaptar artificialmente a realidade aos seus interesses imediatos, ainda que à custa da segurança dos cidadãos. E pior, a capacidade de perseguir quem levante algum obstáculo à prossecução dos seus fins. Os regimes podem ser democráticos mas as atitudes das pessoas, ainda que com elevadas responsabilidades, mostram como é difícil respeitar quem faz o seu trabalho de maneira séria e responsável, deixando à imaginação como se portariam em sistemas de poder absoluto como o descrito pelo inesquecível Nobel da Literatura de 1970.

 Publicado no Diário de Coimbra em 24 de Dezembro de 2018

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