segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Do que o país não precisa – parte dois


Já deixou de ser segredo, seja para quem for, que a corrupção se tornou num problema nacional. O que acarreta, desde logo, vários problemas que ultrapassam a “simples” questão ética que lhe é intrínseca. A corrupção pode ser equiparada a um imposto que todos os portugueses não corruptos pagam para que as transferências de valor entre corrompidos e corruptores se façam. É também um peso suplementar sobre a economia, um constrangimento ao seu crescimento. E mina por dentro o regime democrático. O seu combate exige uma legislação repressiva clara e consequente, tal como uma Justiça que a possa aplicar rápida e consequentemente, para o que necessita, obviamente, de ter os meios necessários de investigação e processuais à sua disposição. E a corrupção, trata-se de uma evidência social para além da lei, só existe porque agentes do Estado se dispõem a usar os poderes de que dispõem em seu favor pessoal.
Recordo aqui que o General Ramalho Eanes declarou, há poucos meses, que “a corrupção é uma epidemia que grassa pela sociedade”. Já a anterior Procuradora Geral da República Joana Marques Vidal foi, também muito recentemente, muito mais concreta ao falar de "Um Estado capturado por redes de corrupção e compadrio nas áreas da contratação pública."
Não será necessário procurar mais citações de personalidades unanimemente consideradas como exemplos de seriedade e de probidade para se concluir que o país tem, de facto, um grave problema com a corrupção. E estando a corrupção instalada no Estado, serão os Tribunais a última defesa da sociedade contra quem, usando a autoridade que lhe é concedida, o rouba para seu próprio benefício, seja este qual for. Até porque já todos percebemos que, em matéria de combate à corrupção e mesmo de defesa da transparência, o órgão legislativo se encolhe, para dizer o mínimo, como se percebe pela recusa em legislar consequentemente na área da investigação do enriquecimento ilícito e no abrandamento da legislação sobre o controlo de negócios com o Estado de familiares de políticos
Pelo que acima fica escrito, torna-se uma evidência a necessidade da existência de um Ministério Público que não seja controlado pelo Estado ou, muito concretamente, que não possa receber ordens do governo, seja através do ministro da Justiça, ou de qualquer outra forma exceptuando, como é evidente, os casos em que o próprio Estado seja o queixoso.
Antes do 25 de Abril, o Ministério Público recebia ordens do Ministro da Justiça. Depois da Constituição do regime democrático essa situação acabou, tendo o sistema evoluído em vários momentos, mas sempre no sentido de aumentar a autonomia do Ministério Público. Depois da revisão constitucional de 1989, essa autonomia ficou consagrada na lei orgânica do MP de 1992.
Contudo, uma séria incomodidade grassará nas profundidades do sistema político que à superfície se manifesta com uma vontade confessada de alterar este estado de coisas. O partido Socialista apresentou recentemente na Assembleia da República uma proposta de lei para aprovação de um novo Estatuto do Ministério Público, na qual se acaba com a equiparação entre a magistratura judicial e a magistratura do MP. A autonomia do Ministério Público é mesmo apresentada por diversos sectores ligados ao poder como significando uma “judicialização do regime”, pelo que se deveria entrar num caminho que é apresentado eufemisticamente como da sua “subordinação ao poder democrático”. Se, para um partido com militantes relevantes a braços com graves problemas na Justiça relacionados com a corrupção em que o caso mais conspícuo, mas não único, é o do ex-primeiro ministro socialista José Sócrates esta posição até se percebe, já não deixa de ser surpreendente que a actual direcção do PSD aponte no mesmo sentido, num alinhar de posições políticas contra a autonomia do MP.
Do que Portugal não precisa é de enfraquecer a Justiça no seu papel crucial de luta contra a corrupção. Para tal já chega ter os meios de investigação como a Polícia Judiciária à míngua de tal maneira que, se não o for, mais parece que o propósito governamental é coartar a sua capacidade de luta contra a corrupção. 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 26 de Agosto de 2019

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