Para choque de muita gente, a pandemia Covid 19
veio destapar uma realidade que se encontrava bem escondida ou, talvez,
deliberadamente esquecida pela maioria das pessoas. De repente parece que os
portugueses acordaram para as condições em que vivem grande parte dos seus mais
velhos. Os chamados «lares da terceira idade», designação as mais das vezes
eufemística para designar verdadeiros depósitos de velhos vieram a mostrar-se
como altamente permeáveis ao vírus SARS-CoV-2, havendo actualmente mais de 30
desses lares com surtos activos e tendo, em consequência, morrido até hoje mais
720 pessoas.
O sucedido no Lar da Misericórdia em Reguengos de
Monsaraz não pode ser esquecido e muito menos calado, mas apenas como exemplo
do que se passa pelo país e que necessita urgentemente de ser objecto de
atenção e de actuação dos responsáveis pela Segurança Social. Descobriu-se com
espanto geral e infelizmente também com notória fuga às responsabilidades por
quem devia ter outra atitude, que muitos dos idosos que morreram no surto
verificado naquele lar terão sido vítimas de falta de cuidados sanitários e
médicos e não directamente da acção do vírus. Mas é muito provável que o que
aconteceu naquele lar se tenha verificado um pouco por todo o país, embora só
ali tenha saltado para a comunicação social, pelas razões conhecidas.
Todos sabemos do progressivo e rápido
envelhecimento da população portuguesa e das consequências que tal facto vai
trazer ao sistema da segurança social, se o sistema vigente não for
radicalmente alterado. Acresce que as actuais soluções de apoio a lares sociais
não são, do ponto de vista puramente humano, aceitáveis e ainda menos
desejáveis. Isto falando dos lares legais porque, pelo que vamos vendo, o
número de instalações ilegais, sem qualquer controlo nem fiscalização, é
enorme.
Os idosos são colocados nos lares, perdendo
grande parte da sua vontade própria, sendo sujeitos a rotinas que os reduzem a
utentes comandados e sem espaços ou actividades pessoais. Todos já constatámos
como os utentes dos lares dispõem generalizadamente de quartos para duas
pessoas, com camas próprias mas sem secretárias nem sofás onde possam
desenvolver trabalhos ou ler na intimidade. Os dias são passados colectivamente,
a ver televisão em conjunto havendo apenas, quando as há, uma ou outra saída
igualmente colectiva. Por razões de facilidade e economia de gestão, os utentes
são mesmo impedidos de ir ao seu próprio quarto durante o dia. Nestas
condições, ainda que entrem nas instituições com algumas capacidades pessoais,
os idosos rapidamente se transformam em velhos que apenas aguardam pela chegada
da hora inevitável. As excepções a esta regra são raras, de louvar, mas são
isso mesmo: excepções
Muitas das instituições que gerem lares de
terceira idade pertencem à chamada economia social e prestam um papel essencial
que o Estado vai apoiando com um suporte financeiro insuficiente. Também nesta
área social, talvez dizendo melhor, principalmente nesta área, a pobreza
infiltra-se insidiosamente por todos os interstícios do sistema. As
instituições que recebem utentes apoiados pela Segurança Social sabem bem que a
contrapartida que recebem do Estado é insuficiente para cobrir os custos, pelo
que têm de ir buscar a outras origens o necessário para que aqueles utentes
sejam tratados de uma forma pelo menos digna.
A pandemia mostrou esta realidade e seria bom que
a sociedade, como um todo, aproveitasse para alterar o paradigma dos idosos em
Portugal, indo observar o que se faz em muitos países europeus, já que tem de
ser esse o nosso actual termo de comparação. O Estado, através da Segurança
Social, e as inúmeras entidades que intervêm nesta área devem encontrar
alternativas ao actual estado de coisas, de forma clara e pensando
fundamentalmente na dignidade dos utentes das instituições.
Tornou-se vulgar, quando se fala do número de
mortos com ou pelo vírus, acrescentar: ah, mas tinham oitenta e tal ou noventa
e tal anos, como se essa idade fosse um anátema e não um prémio pela vida que
se levou, contribuindo para se obter tudo aquilo de que os jovens de hoje, que
serão os idosos de amanhã, usufruem. Os idosos têm, pela própria evolução da
vida, maiores fragilidades, exigindo por isso mesmo mais cuidados e não
abandono criminoso. A idade não é algo que se deva esconder e a dignidade
humana deve existir até ao momento final. O exemplo dado pelo Papa João Paulo
II que, em vez de esconder a degradação da sua condição física, a assumiu
publicamente contrasta de forma absoluta com a atitude de Hemingway que,
perante a falta de pulsão sexual resolveu o problema indo buscar a caçadeira ao
armário e acabando com a vida. Mas, se virmos bem, em ambos os casos tratou-se
de assumir o seu destino, ao contrário da tristeza degradante dos lares de 3ª
idade portugueses.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 14 de Setembro de 2020