segunda-feira, 7 de setembro de 2020

CRÓNICA DOS DIAS QUE PASSAM

 


E chegou Setembro. Seis meses depois do início da pandemia COVID-19 e da consequente paragem social e económica, chegou a altura em que tradicionalmente se assiste a um regresso das actividades depois das férias de Verão. O que este ano se traduz num regresso completamente diferente, acumulando escolas, feiras do livro e política, numa abertura curiosamente marcada pela Festa do Avante, seja qual for o significado que isso tenha.

A crise económica tem sido mascarada pelos apoios estatais que para já têm evitado as falências generalizadas e desemprego, mas está aí à porta com uma força impressionante. Os sinais da sua aproximação aparecem para já na atitude dos responsáveis políticos, tentando o Governo disfarçar a situação o mais possível, confiante que está no programa de recuperação da União Europeia que prevê uma importante fatia dita «a fundo perdido», que nunca será tal coisa, sendo apenas paga mais tarde ainda não se sabe por quem e em que condições. O nervosismo que se vê advém de algo que escondem por enquanto, que é a necessidade de aprovação do tal empréstimo europeu pelos 27 parlamentos nacionais e do atraso que isso significa para a vinda daquilo a que de forma popularucha chamam «pipa de massa» ou «bazuca», que não deverá chegar antes de Abril/Maio do próximo ano.

Até lá, há que aguentar e encontrar o maior número possível de distracções para o povo não notar muito a falta de dinheiro. A auditoria ao Novo Banco veio mesmo a calhar para esse feito. Aconteceu, contudo, que funciona ao contrário do esperado. De facto, mais de 95% dos empréstimos «complicados» ainda são herança do antigo BES e os prejuízos de cerca de 4 mil milhões de euros correspondem aproximadamente à garantia exigida pelos compradores do Novo Banco, aceites por Gosta e Centeno aquando da venda do Novo Banco. Toda a campanha de cortina montada pelos partidos que apoiam este governo, mas a que aderiram também os partidos da direita não passa disso mesmo, areia para atirar aos olhos dos portugueses para tentar fugir a responsabilidades próprias. Mas valia que aceitassem todos a situação como inevitável face ao descalabro do antigo BES e que explicassem com verdade porque é que não fecharam o Novo Banco em 2017 e o venderam nas condições que agora se sabe o que, provavelmente, teve a ver com uma defesa do sistema bancário, em particular da CGD.

A invenção de uma suposta «crise política» não passa igualmente de outra manobra de distracção. A gravíssima crise económica e social que se está a formar faz com que nos próximos anos governar não seja uma tarefa atractiva, principalmente para quem tem como regra de vida política não fazer qualquer reforma estrutural que permita ao país reagir por si mesmo ao afundamento progressivo que se verifica desde há anos, pelo menos desde 2000. O primeiro-Ministro entendeu por bem forçar a nota relativamente à hipótese de crise política, o que foi obviamente encarado como um ultimato pelos partidos que desde 2015 o têm apoiado e garantido a aprovação anual dos Orçamentos de Estado, mas que nesta conjuntura preferiam estar longe da governação. É evidente para todos que, quer o BE, quer o PCP, vão vender caro o apoio nas actuais condições, o que não significa crise política, porque todos sabem perfeitamente que, em virtude das próximas eleições presidenciais, o Presidente da República se encontra constitucionalmente impedido de dissolver a Assembleia da República. O simples respeito pelos cidadãos deveria impedir os responsáveis políticos de encenar fábulas deste tipo.

À direita, o desnorte não é menor. O CDS prossegue o seu caminho para a total insignificância e, quando se exigia uma total e perfeita separação de águas, o PSD anunciou a hipótese de conversar com o CHEGA sob determinadas condições, situação totalmente inaceitável do ponto de vista dos democratas perante toda a actuação e orientações políticas que se vão conhecendo do partido liderado por André Ventura. Quando já se ouve mesmo falar de mais uma grande marcha sobre Lisboa, ainda assim espera-se que André Ventura não se lembre de aconselhar um traje escuro como apropriado para o evento.

O presidente Marcelo tem assistido a tudo isto com uma evidente irritação. Em particular, no que diz respeito à suposta «crise política», respondeu mesmo com desagrado. E, mais uma vez, a direita portuguesa mostra querer dar razão a quem diz ser ela a mais estúpida do mundo. Sendo, constitucionalmente, o nosso presidente um árbitro e não um actor, seria difícil que pudesse ter tido outra atitude desde 2016 perante os governos de António Costa, bem apoiados no Parlamento pelo BE e pelo PCP. Recordo que foi ainda o presidente Cavaco e não Marcelo quem exigiu a António Costa acordos assinados para deixar passar a solução governativa que ficou conhecida como «Geringonça» e assim a institucionalizou. Marcelo tem sido e vai continuar a ser um fiel rigoroso da balança, doa a quem doer.
 
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 7 de Setembro de 2020

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