As obras artísticas figurativas aliam dois aspectos que podem transportar uma elevada tensão entre si: o representativo e o simbólico. Quando se trata de homenagear figuras com uma elevada carga Histórica, essa tensão é ainda maior podendo, caso seja mal resolvida, ter efeitos contrários à boa vontade original.
Vem esta introdução a propósito da passagem temporária por Coimbra de uma escultura de D. Afonso Henriques a caminho do seu destino final, em Zamora, Espanha e da vontade anunciada pela Câmara Municipal de vir a dotar a Cidade de uma escultura do Rei.
O nosso primeiro Rei é a figura central de uma narrativa muito bem construída pela cidade de Guimarães, onde existe uma estátua emblemática de D. Afonso Henriques, sob o lema «aqui nasceu Portugal», que abrange o castelo da Cidade e o cenográfico Paço Ducal, do sec. XV, portanto muito posterior à nacionalidade. Em torno destes elementos, Guimarães construiu, e muito bem, a sua marca. Se perguntarmos a qualquer português sobre Guimarães, com uma muito elevada probabilidade responderá que ali nasceu Portugal.
No entanto, foi em Coimbra que D. Afonso I estabeleceu a sua Corte, aqui morreu e aqui está sepultado. Há mesmo quem diga que o seu nascimento terá ocorrido em Coimbra ou Viseu, sendo já rara a defesa de que tenha nascido em Guimarães. Em Coimbra existe desde a Nacionalidade o Paço Real, que desde o início do sec. XVII se chama Paço das Escolas. O seu túmulo encontra-se no Mosteiro de Sta. Cruz que foi fundado precisamente por ele em 1131 e que é panteão nacional por essa razão. O túmulo é belíssimo e sobre ele pode-se admirar a estátua jacente do Rei fundador da autoria de Nicolau de Chanterenne, a encomenda de D. Manuel I, no sec. XVI.
Coimbra tem, assim, todos os motivos para chamar a si a fundação da nacionalidade podendo, com toda a facilidade, caso o queira, construir uma narrativa sólida e muito abrangente sobre o assunto. Contudo, a cidade nem sequer tem uma estátua do nosso primeiro Rei. A passagem desta escultura da autoria do escultor Dinis Ribeiro e do arquiteto Abel Cardoso, que pretende retratar o rei na sua juventude, foi efémera (muitos dizem que ainda bem) mas veio, apesar das polémicas, levantar a questão da estátua do Rei primeiro em Coimbra, o que em si é positivo.
Uma escultura que tem a possibilidade de ter um efeito iconográfico de peso para Coimbra levanta duas questões que se interpenetram: o tipo de escultura e a sua localização. Por exemplo, uma escultura apeada como a de Guimarães poderá ficar bem em certos locais e mal noutros, tal como acontece com uma escultura a cavalo. Também não convém que entre em conflito com outros locais que já são ícones de Coimbra como acontece, por exemplo, com a proximidade do Mosteiro de Sta Clara, associado à Rainha Santa Isabel onde se escolheu colocar a escultura que vai para Zamora. Isto é, a encomenda da estátua deverá ser antecedida pela escolha do local concreto onde será implantada, decisão que por si mesma já não é fácil. Uma estátua equestre ficaria bem, por exemplo, no meio da Praça Velha, já o mesmo não acontecendo com a Praça Oito de Maio ou o Largo da Sé Velha, outro monumento relacionado directamente com o nosso Rei fundador. Qualquer um destes locais receberia bem uma estátua apeada bem dimensionada, desde que que implantada adequadamente, tal como aconteceria com o jardim/escadaria em frente da Escola José Falcão precisamente na Av. Afonso Henriques, aqui com a vantagem de descentrar as visitas turísticas a Coimbra.
Particularizar a estátua a determinados pormenores, como idade muito jovem ou avançada, como acontece com esta que agora passou por Coimbra não parece que seja grande ideia, devendo-se optar por uma imagem do Rei consentânea com a que foi sendo construída ao longo dos séculos e por ele próprio pela sua acção decidida e forte de construção de um reino independente. De qualquer forma, depois de decidido o local de implantação, será adequado e até prudente que a Cidade realize um concurso de ideias que permita a autores diversos apresentar as suas propostas, com classificação por um júri (com participação de autarcas e de munícipes convidados, mas também de especialistas em História de Portugal e de Arte, incluindo professores da Universidade). Temos de ter consciência de que um monumento destes pode ser importante para a Cidade mas deverá, para que venha a fazer parte da sua marca identitária, estar em harmonia com o significado histórico do Homem representado, quer seja de forma mais clássica ou mais moderna, não interessa, desde que com qualidade artística claramente reconhecida.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 Abril 2023
Imagens recolhidas na internet
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