segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Populismos à solta, à esquerda e à direita

 


Com os partidos em pré-campanha eleitoral não deixa de ser interessante verificar como determinados temas surgem de forma aparentemente contraditória com a respectiva colocação ideológica.

Perante a questão colocada de como encontrar financiamento para as numerosas propostas que provocariam uma elevada despesa pública, o Chega não esteve com meias medidas e avançou com uma taxa especial sobre os lucros dos bancos que automaticamente permitiria diminuir as prestações bancárias relativas a empréstimos imobiliários e assegurar aumentos de pensões. Algo que, estamos bem recordados, é muito semelhante a uma proposta avançada há pouco tempo pelo Bloco de Esquerda. Neste caso, tratando-se de um partido marxista, até se compreende a proposta, facilmente enquadrável na velha teoria da “luta de classes”. Já com o Chega, que navega nas águas de uma direita dita radical, como compreender ideologicamente tal proposta? Dificilmente, vendo-se apenas o populismo puro e duro como justificação. O que, como se costuma dizer, leva a considerar que os extremos se tocam, até mais frequentemente do que seria de imaginar.

Na realidade é hoje claramente perceptível que a teoria da luta de classes teve uma difusão pela política portuguesa que não seria de esperar no sec. XXI, certamente resultado da geringonça, cuja oposição ao privado levou ao fim dos contratos de associação e das PPP na Saúde com os resultados que se conhecem. Fazendo o caminho inverso ao de Mário Soares que há muito tinha “metido o socialismo na gaveta” abraçando em definitivo a social-democracia europeia antes da entrada na CEE. Hoje, faz-se uma confusão propositada entre socialismo e social-democracia. Mas enquanto aquele, sem adjectivo ou mesmo juntando-lhe o democrático, parte do princípio da colectivização da economia (e não só) como base, já a social-democracia, tal como o modelo nórdico pós-guerra mostrou, prevê a redistribuição dos resultados da economia para obter justiça social, mas com um sistema capitalista. A diferença resulta clara no episódio da ida de Otelo Saraiva de Carvalho nos tempos do PREC à Suécia, quando disse a Olof Palme que ia acabar com os ricos em Portugal tendo o primeiro-ministro sueco respondido que lá, tentavam acabar com os pobres…

E, por falar em pobres, está na moda os políticos populistas prometerem aumentar o ordenado mínimo nacional para 1.000€ em pouco tempo. De facto, Portugal é dos poucos países europeus em que o OMN é inferior a esse montante, o que é uma vergonha para todos nós, já que o custo de vida esse, é por cá muito parecido com o dos restantes países europeus. Mas prometer isso é fácil, tratando-se de um valor administrativo que se estabelece por decreto. Desde 2015, o OMN subiu cerca de 50% o que parece bom. Só que o ordenado médio subiu, no mesmo período, apenas 25%, pelo que os dois valores se aproximaram muito. E o salário médio é o que verdadeiramente reflecte a nossa economia, que não consegue melhor do que cerca de 1400€ brutos quando uma relação saudável entre os dois valores, dado que o ordenado mínimo é hoje de 820€, implicaria que o salário médio deveria ser de cerca de 1.900€. Há cada vez mais pessoas a ganhar o ordenado mínimo e o médio é tão baixo que, em consequência, muitos jovens licenciados escolhem emigrar a viver na nossa miséria franciscana. Os ordenados, ao contrário do que os populistas de esquerda e de direita tentam dar a entender, são um ponto de chegada da economia e não de partida. Quando continuamos a usar os dinheiros brutais que a União Europeia nos envia a substituir o que deveria ser função do Orçamento de Estado e não para capitalizar e desenvolver a nossa economia, o que estamos a fazer é mais uma vez a gastar o “ouro do Brasil” como fizemos no sec. XVIII. Devíamos olhar para a História e ver as consequências disso que desaguaram na tragédia económica de todo o sec. XIX e boa parte do sec. XX.


Mas reconheço que, perante os populismos a que assistimos, conhecer minimamente as lições da História seria pedir demais aos políticos de hoje tantos deles formados nas juventudes partidárias e em obsoletos manuais marxistas. O crescimento e desenvolvimento do país exigem, contudo, uma alteração profunda do caminho seguido até aqui que tem levado a uma divergência com a Europa durante os últimos vinte e tais anos. Será que os portugueses têm coragem para exigir isso de quem nos governa?

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de Janeiro de 2024

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

O poder, como direito natural

 


Como se sabe, um regime democrático não se resume à existência de partidos e à realização de eleições livres. É necessário, para que uma Democracia funcione, que se verifique uma verdadeira alternância democrática e que o sistema preveja uma série de contrapesos que equilibrem as relações entre a maioria que governa e os partidos minoritários que constituem a chamada oposição. E, no nosso sistema constitucional, é absolutamente fundamental que o poder legislativo/governativo a Justiça e a presidência da República sejam completamente independentes e com possibilidade real de exercer as suas funções. Quando se verifica a existência de vários partidos, mas com um deles permanentemente maioritário, como aconteceu no México durante muitos anos, o regime deixa de respirar por desaparecerem os contrapesos e, mais tarde ou mais cedo, deixa de ser democrático. Foi o que, de certa forma, aconteceu entre nós durante a Primeira República em que o partido Republicano dominava de tal forma a governação do país que em poucos anos se abriu o caminho para uma ditadura militar a que se seguiu a ditadura do Estado Novo que só terminou com o 25 de Abril de 1974.

Tendo em conta o que acima fica dito, verifica-se que Portugal está a passar por uma situação cuja delicadeza fundamental não pode ser escamoteada e que se situa para além da luta política partidária pré-eleitoral.

O partido Socialista teve a responsabilidade governativa do país, como resultado da livre escolha do Povo, durante 21 anos dos últimos 28 anos, sendo que em quatro dos outros 7 anos estivemos sem verdadeira soberania, entregue a uma troika. Se ganhar as próximas eleições, poderá ser poder durante mais quatro ou mesmo oito anos, o que é possível atendendo à chuva de dinheiro europeu dos próximos anos, que se cifra actualmente em um milhão de euros por hora, vinte e quatro horas por dia, 365 dias por ano.

Vamos ter eleições em Março porque o Primeiro-Ministro se demitiu por problemas com a Justiça relacionados, sabe-se agora, com a suspeita judicial de ter praticado o crime de prevaricação ao ser aprovada em Conselho de Ministros o que alguém já chamou de “lei malandra” que poderia favorecer determinada entidade privada, só parada pela acção do Presidente da República. Para apimentar a questão, não se deve esquecer que no dia seguinte à demissão do Primeiro-Ministro, o país assistiu atónito à descoberta, pelas autoridades judiciais, de mais de 75.000 euros em dinheiro vivo escondido em diversos envelopes e caixas no gabinete do Chefe de Gabinete do Primeiro-Ministro.

Há poucos dias o PS realizou o seu Congresso que se seguiu à eleição do novo Líder, situação absolutamente normal em Democracia. O que já não o será tanto foram os ataques que lá foram notórios à Justiça e ao Presidente da República. António Costa e alguns congressistas acenaram mesmo com uma teoria da cabala segundo a qual estariam a ser vítimas de conspiração por parte daquelas duas Entidades. Claro que têm toda a liberdade de o fazer, não podem é pensar que estão isentos de crítica ao fazê-lo. E essa crítica, que também é livre, não pode deixar de sublinhar que esta situação se verifica após tantos anos de governação com maioria absoluta ou com apoio parlamentar que proporcionou um domínio praticamente completo do aparelho de Estado com todas as consequências que isso acarreta.


Os socialistas não pararam um momento para reflectir por que raio de razão o Presidente Marcelo, que os apajou durante tantos anos, e a PGR Lucília, por eles escolhida, se haveriam de aliar para os combater. Nem se lembraram de como, em 2009 note-se, reelegeram Sócrates como líder com quase 100% dos votos dos congressistas. Só se encontraram perante a evidência clara e cristalina de que os outros poderes institucionais se uniram em conluio para lhes roubar o poder, certamente seu por direito natural.

Mas não é coincidência que um partido que está há tantos anos no poder resolva achar que é objecto de ataque conspiratório por parte dos dois únicos Órgãos Constitucionais de Soberania que não domina: Tribunais e Presidente da República. Lamento que esta constatação seja feita precisamente num período pré-eleitoral, podendo facilmente ser confundida com posição partidária. Não o é, em absoluto, mas a meu ver trata-se de matéria suficientemente séria para não se calada, precisamente neste momento.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Janeiro de 2024

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Democracia em crise?

 


Depois de um período atípico em que duas segundas-feiras, dia de publicação dos “Visto de Dentro”, coincidiram com feriados em que não se publicou o Diário de Coimbra, estamos de regresso à normalidade.

Entrámos no ano em que se comemoram 50 anos sobre o 25 de Abril o que, para quem o viveu, parece mentira. Cinquenta anos já! Grande parte da população portuguesa, senão mesmo a maior parte, já nasceu depois daquela data e a esmagadora maioria não tem consciência de viver noutro regime que não o democrático.

Talvez por essa razão seja hoje possível assistir a tantas posições que desconsideram a Democracia, por não haver consciência das implicações de existência de polícia política, censura e, acima de tudo, de a soberania não residir no povo e na sua escolha livre de quem o deve governar em cada momento. Aqui reside a essência da Democracia que, se não significa que as escolhas do povo sejam sempre certas, é o único regime que garante a substituição de governos e partidos sem necessidade de revolução, apenas pelo exercício de eleições.

É certo que as Democracias passam de novo por um período difícil um pouco por todo o mundo fazendo lembrar, talvez, o que se passou há cem anos quando ideologias então nascentes deram origem a tremendas ditaduras como o fascismo, o nazismo e o comunismo que tiveram como consequência o sofrimento e morte de muitos milhões de pessoas.

Mesmo as democracias que se julgariam mais estabilizadas pela sua duração apresentam fracturas que deixam passar as mensagens populistas que abrem caminho à aceitação de soluções não democráticas. Na semana passada soube-se de uma sondagem nos EUA segundo a qual “50% dos inquiridos com idade entre os 18 e os 45 anos não acreditam que a democracia seja o melhor sistema”. Já entre os maiores de 65 anos 90% têm opinião contrária. O que significa que as camadas mais jovens não acreditam nas virtudes da democracia, certamente consequência das opções dos dois partidos americanos mais importantes, o Republicano e o Democrata. Olhando para a gerontocracia que actualmente está à frente dos dois partidos talvez se perceba melhor o que está a suceder, que é extremamente perigoso para os próprios EUA e, consequentemente, para o resto do mundo. Escuso de lembrar o que se passou no Reino Unido aquando do Brexit quando a classe política deixou à solta o populismo mais radical e até incompreensível numa democracia com centenas de anos.


Leva esta crónica no título uma pergunta a que se deve dar resposta. Na realidade, se a Democracia parece estar em crise, isso deve-se à sua própria essência. Porque, sem confronto de ideias e de práticas governativas aos diversos níveis, sem conflito, não há Democracia. Como é através dos partidos que as escolhas se fazem em Democracia, é da responsabilidade destes explicar ao que vêm sem ambiguidades e marcando claramente as diferenças entre uns e outros. A elevadíssima taxa de abstenção que tem vindo a verificar-se de eleição para eleição é indício seguro de que a confiança nas diversas forças partidárias anda muito por baixo, sendo esta a melhor altura para lembrar a quem não participa nas eleições que essa é a melhor maneira de entregar o poder a quem não o merece. Este é, pois, o período em que se espera que os partidos façam o que lhes compete antes de eleições, para que não seja a própria Democracia a ampliar o número daqueles que já não reveem nela ficando disponíveis para aceitar outra solução qualquer.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 8 de Janeiro de 2024

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Percepção do mundo em que vivemos

 

Sabemos hoje que a nossa percepção da realidade que nos rodeia é muito ditada pelo nosso próprio cérebro que, com a limitada informação carregada pelos sentidos, constrói todo um mundo interior a que poderemos chamar consciência. Mundo interior esse, que nunca teremos a certeza de corresponder exactamente ao exterior em que nos movemos fisicamente.

Nesta época que atravessamos, de passagem de ano puramente artificial, mas importante para nos situarmos no tempo, é quase um costume estabelecido para os cronistas proceder a uma revisão do que mais importante sucedeu no ano findo e a uma previsão do que nos poderá esperar no ano que começa.

Contudo, não farei tal, desta vez. Mas partilharei com os leitores a minha percepção do que se passa actualmente no mundo, numa visão que espero possa corresponder à realidade, com a objectividade possível que sei ser a permitida pela minha visão associada às minhas próprias emoções, como António Damásio nos ensina.

E aquilo que vejo é um mundo em grande transformação naos mais diversos aspectos, não sendo ainda possível prever o futuro a médio e longo prazo. Aspectos esses que, embora tal não seja imediatamente evidente, se intui estarem bem mais ligados do que parece à primeira vista. Desde logo, a guerra. A invasão da Ucrânia pela Rússia é muito mais do que uma guerra local, isso é evidente como se percebe pelos apoios de cada um dos contendores. Se a Ucrânia é apoiada pelos países do chamado mundo ocidental, desde logo pelos Estados Unidos da América e pela União Europeia, a Rússia de Putin tem como principais aliados o Irão dos Ayatollahs e a Coreia do Norte do líder supremo Kim Jong-un, contando ainda com a “compreensão” da Hungria de Viktor Orbán. A Coreia da Norte é governada por um regime ditatorial comunista de carácter monárquico que em si mesmo é uma aberração, mas que gasta a maior parte do orçamento em despesas militares. No Irão existe uma ditadura teocrática feroz que trata as mulheres como seres inferiores em pleno sec. XXI de que o que se passa com a Nobel da Paz Narges Mohammadi torturada pele regime é apenas mais um exemplo. Quanto a Viktor Orbán, é ver a sua actuação dentro da União Europeia tal cavalo de Tróia, para se perceber o que pretende. Basta esta constatação que não tem nada de subjectivo, para se concluir que, muito mais do que um conflito ideológico entre blocos políticos estamos a assistir a um verdadeiro choque civilizacional entre visões claramente opostas sobre o futuro da Humanidade. De um lado está o resultado de toda uma evolução cultural e política de séculos que desembocou nas liberdades individuais e respeito pela pessoa humana e do outro uma noção de subordinação de toda e qualquer pessoa a um Estado que tudo define e tudo tenta regular, incluindo as próprias consciências. Todos sabemos o resultado histórico destas visões totalitárias, ainda que disfarçadas de preocupações religiosas ou de orientações socializantes.


Claro que há uma outra guerra em curso, no Médio Oriente. Na sequência do brutal atentado terrorista levado a cabo pelo Hamas de que resultou o assassínio de mais de um milhar de pessoas e o sequestro de centenas de outras, Israel respondeu com uma violenta operação militar na Faixa de Gaza de que já resultaram milhares de mortes. A mão do Irão está por detrás do Hamas, não permitindo que a Paz surja de conversações ou acordos entre Israel e países árabes. Até porque Israel é historicamente a única democracia do Médio Oriente onde simultaneamente são respeitados os direitos, não só das mulheres, mas também das minorias como homossexuais, algo que os ultra-reaccionários muçulmanos não podem tolerar que se venha a espalhar na zona.

O mundo e o nosso futuro não apenas física, mas também culturalmente, está dependente do resultado destas guerras que são, muito provavelmente, manifestações da mesma luta. Curiosamente, vinda também de quem mais tem a perder com a substituição da energia fóssil por outras fontes energéticas mais amigas do ambiente e do futuro da Humanidade. Assim percepciono o mundo em que hoje vivemos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  2 de Janeiro de 2024

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