segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Uma guerra longa que acaba.




 Há guerras que, mesmo depois de se pensarem terminadas, continuam ainda até que o seu fim verdadeiro se verifique. Quando se olha para trás muito tempo depois, isso é fácil de perceber como é o caso da chamada “guerra dos cem anos” que, na realidade até durou mais de 110 anos e se foi desenvolvendo episodicamente nos séculos XIV e XV entre a França e a Inglaterra, envolvendo toda a Europa ao longo dos anos, através dos aliados de um e do outro contendor.
A II Guerra Mundial teve o seu fim oficial em 2 de Setembro de 1945 com a assinatura da rendição do Japão a bordo do USS Missouri, com festejos pelo mundo inteiro, no convencimento de que se tinha finalmente entrado numa era de Paz duradoura.

 Não foi preciso esperar muito tempo para se verificar quão efémera fora essa satisfação. Logo em Março de 1946 Churchill traduz por palavras o que grande parte do mundo já concluíra, no seu famoso discurso em que afirmou: “De Stettin no Báltico até Trieste no Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o continente”. Stalin tinha aproveitado o avanço dos exércitos soviéticos sobre a Alemanha através da Europa de Leste, para impor regimes comunistas em todos os países aí situados.
A constatação de Churchill significou o reconhecimento do antagonismo entre dois blocos, o soviético e o ocidental, que rapidamente evoluiu para uma situação que se designou por “Guerra Fria”, mas que na realidade foi bem mais quente do que a expressão pode deixar supor. Se os dos países-pólo dessa situação, os EUA e a União Soviética não entraram directamente em guerra, daí a designação de guerra fria, os conflitos armados ligados ao confronto entre os dois blocos verificaram-se um pouco por todo o mundo, desde a Ásia com as guerras na Coreia e no Vietname, até ao médio-oriente e ao próprio continente americano, essencialmente na América Central e também na América do Sul, como aconteceu na Nicarágua, no Peru ou na Argentina.
Até mesmo em Portugal, no chamado PREC a seguir ao 25 de Abril, por muito pouco não se verificou um conflito desse tipo.
O fim da “guerra fria” verificou-se em 1991 com a dissolução da URSS e desaparecimento do Pacto de Varsóvia. Hoje em dia há muito quem seja de opinião que a “guerra fria” foi uma continuação da II Grande Guerra, tal como esta última, no fundo, teve raízes directas na deficiente resolução da I Grande Guerra no mal desenhado Tratado de Versalhes de Junho de 1919.
Mas a “guerra fria” não terminou completamente em 1991. Um dos conflitos armados nela integrado só agora acabou, com o cessar-fogo, assinado em 29 de Agosto último na Colômbia entre o governo e as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), guerrilha marxista que lutava pela revolução e estabelecimento de um regime comunista no país. Não se pense que se tratou de um conflito menor. Teve o seu início em 1964, sendo por isso o conflito armado mais longo das Américas e provocou mais de 220.000 mortos. O líder do auto-proclamado “Ejercito del Pueblo” Rodrigo Londoño conhecido por Timochenko manifestou o seu contentamento com o fim da guerra, afirmando que” não mais pais enterrarão os seus filhos e as suas filhas por morrerem na guerra”, e muito foram, na verdade.
Olhando para trás, impressiona como esses conflitos que provocaram tantas mortes e sofrimento foram basicamente em vão. A guerra do Vietnam é, talvez, o exemplo mais acabado da inutilidade de uma guerra pavorosa. Durou trinta anos entre 1945 e 1975. Os primeiros derrotados foram os franceses; poucos anos depois os EUA resolveram intervir a favor do Vietname do Sul contra o Norte comunista, tendo sofrido uma derrota humilhante, naquilo que até hoje constitui uma questão traumática na sociedade americana. Não há números exactos para as baixas deste conflito, mas no total terão sido mais de 3 milhões de mortos entre militares e civis, dos quais cerca de 60.000 mortos e desaparecidos e mais de 300.000 feridos americanos. Hoje em dia, oficialmente o regime político do Vietname unido é comunista, mas na realidade a economia é capitalista e o país é aberto e visitado por turistas, incluindo muitos americanos que lá combateram.

Embora se possa considerar que este conjunto de conflitos armados localizados nos “quintais” das superpotências e espalhados um pouco por todo o mundo possa ter sido o preço a pagar para evitar uma guerra directa entre a URSS e os EUA que seria um desastre planetário, não deixa de ter sido uma desgraça humanitária para os países envolvidos. E, vê-se hoje, poderia e deveria ter sido evitado por ambas as potências quanto mais não fosse, pela sua completa inutilidade histórica.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Obrigado, Mestre Mário Silva




 Morreu Mário Silva. Muito mais que um pintor, Mário Silva foi um artista da vida, alguém que deu sempre muito mais do que recebeu. Um visionário que adorava a vida e cultivava uma relação única com o Outro e com a sociedade, num exercício de cidadania sem falhas acompanhada por uma capacidade de compreensão e amor como raramente se vê.
Ao longo dos anos tive a oportunidade de me referir ao Mestre em várias crónicas publicadas neste jornal, manifestando a admiração que por ele tenho, aproveitando para aqui transcrever alguns trechos:
É conhecida a frequente discrepância entre a arte de muitos grandes artistas e a sua própria vida. Não vale a pena referenciar nomes, mas todos nos lembraremos de grandes pintores, compositores musicais, escritores ou artistas de cinema que nos comovem com as suas composições artísticas e cujas relações com os próximos não se pautaram pela simpatia ou sequer pela mínima aceitação pessoal.
Entre nós vive um grande artista que é exactamente o contrário disso. Mestre Mário Silva é um dos nossos maiores artistas contemporâneos, não só na pintura mas também na escultura, no desenho, na cerâmica e na ilustração. A sua genialidade manifesta-se de forma constante nas diversas épocas que se conseguem detectar na sua longa vida artística. Ao apreciar a sua arte ao longo dos mais de cinquenta nos que leva a sua carreira, sentimos verdadeiramente que a arte é a procura da verdade, que traz a eternidade dentro de si.
Mário Silva afirma que nasceu artista e é isso mesmo que toda a sua vida demonstra. Mário Silva é um artista entre os maiores. Em vez de reproduzir a realidade, mesmo que a seu modo, antes a destrói e desmonta, para a seguir a reconstruir integrando a sua própria visão. E assim nós, leigos, somos convidados pelo Artista a ver aquilo que nunca antes se nos tinha apresentado com clareza.
Artista maior da pintura, sim, representado em inúmeros museus e academias um pouco por todo o mundo. Mas Mário Silva é um Homem muito para além disso. Tomou a Liberdade como sua e nunca prescindiu dela, em todos aspectos da sua vida. Irreverente, por vezes mesmo iconoclasta derrubando tradições e convenções, o seu espírito nunca se vergou nem se deixou aprisionar, mesmo quando encerrado fisicamente entre paredes de forma arbitrária. Esse culto da Liberdade não o levou à atitude egoísta de ignorar ou menosprezar os seus semelhantes, como tantas vezes sucede com os grandes artistas. Basta ver o local que escolheu para viver, entre pescadores que o tratam como um dos seus, para perceber quão elevado é o seu sentido de Igualdade e como esse sentido orienta a sua relação com os demais. 

Mário Silva não enriqueceu com a pintura, o que até lhe teria sido fácil, dado o estatuto que alcançou a nível nacional e no estrangeiro. Não é pessoa que guarde para si, quando ao seu lado alguém tem necessidades. A sua generosidade releva de um espírito Fraterno em alto grau. Mário Silva não é dos que pregam uma coisa e praticam o contrário. A sua disponibilidade para participar nos mais diversos encontros e eventos é total, fazendo-o sempre de forma construtiva e trazendo sempre algo que melhora os outros em alguma coisa.
Os grandes artistas têm a diferença de partirem sem nunca nos deixarem, quer na memória, quer na Arte que nos legam para sempre. Assim, não me despeço de Mário Silva, ficando aqui apenas um Obrigado, Mestre Mário Silva não só pela Arte, mas pelo exemplo de vida e por nos dar a ver o que tantas vezes lá está e não somos capazes de ver.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Tempos de mudança




 Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.


O que diria hoje Camões sobre o que se passa no mundo? A velocidade das mudanças, a nível global, parece mesmo ser superior à da evolução tecnológica e todos sabemos a que ritmo esta evolui nos dias de hoje.
Ao longo do século XX o vestuário usado nas praias evoluiu dos fatos completos até aos fatos de banho e bikinis de hoje que dão ao corpo a liberdade de movimentos e o à-vontade adequados à praia. De repente, precisamente nas praias francesas da Côte d’ Azur onde surgiu o bikini e onde em tempos imperava Brigitte Bardot, surgem agora novamente mulheres a tomar banho tapadas da cabeça aos pés.
O caminho de integração europeia para uma Europa Unida foi interrompido pela Grã Bretanha que decidiu sair e procurar um destino próprio. O populismo renasce e faz das suas numa Europa que se julgaria ter ficado impune a tal, reabrindo a porta aos nacionalismos mais obscurantistas e perigosos. Entretanto, a Grã Bretanha é classificada pelo jornalista Roberto Saviano, que tem dedicado anos à pesquisa do tráfico internacional da droga, como o país mais corrupto do mundo, garantindo que a City alberga hoje a maior e mais eficaz máquina de lavar dinheiro que existe. Para nosso espanto, a Comissão Europeia quer obrigar a Apple a pagar mais de 13 mil milhões de Euros à Irlanda e este país recusa receber o dinheiro.

Na América do Norte, enquanto os Democratas não escolheram um candidato socialista cujo discurso se assemelhava em muitos aspectos ao nosso Bloco de Esquerda, os Republicanos optaram por um populista que se afirma também “contra o sistema” e assim consegue simpatias eleitorais impensáveis até há pouco, surgindo como muito possível a eleição de um político ignorante, imaturo, arrogante, mal-criado e insuportável em qualquer situação como é Donald Trump.
Na América do Sul, a presidente Dilma Roussef do PT foi arredada da presidência do Brasil, sendo a segunda vez que a actual democracia brasileira faz um impeachment presidencial, depois de Collor de Melo em 1992. O Partido dos Trabalhadores, que em duas presidências anteriores também tentou o “impeachment” contra Itamar Franco e Fernando Henriques Cardoso, provou agora do seu próprio veneno, vendo-se arredado do poder. A Venezuela está também à beira de uma mudança radical. A desgraça económica e social trazida pelo populismo esquerdista do presidente Maduro atirou o país para uma situação insustentável de que a única saída pacífica parece ser realizar eleições presidenciais a curto prazo.
Aqui ao lado, em Espanha, sem se obter entendimentos entre esquerdas e direitas, caminha-se alegremente para terceiras eleições para escolher quem deverá governar em menos de um ano, enquanto quem entretanto governa provisoriamente consegue atingir números de sucesso económico com que nós só podemos sonhar.
Os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro constituíram uma surpresa para muita gente, não tanto pelos sucessos desportivos, mas por o Brasil, ao contrário do que muitos diziam, se ter mostrado capaz de os organizar tão impecavelmente como qualquer outro país. Estes Jogos tiveram ainda uma curiosidade que mostra como o mundo está a mudar, em termos sociais e promocionais. 
Muitos países escolheram grandes costureiros para vestir os seus atletas. Até Cuba contratou alguém do mundo da moda para desenhar a farda dos seus representantes, tendo escolhido o designer de sapatos Christian Louboutin famoso pela altura dos saltos dos seus sapatos de mulher, pela cor vermelha da sola e, já agora, pelos preços proibitivos.
Tudo muda neste mundo e com grande rapidez, nos dias de hoje, embora sejam muitas vezes mais mudanças na aparência do que na substância das coisas. Mas até Camões já acabava o seu soneto mostrando alguma saudade das verdadeiras mudanças:

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Trump: You are fired (?)




Apesar das sondagens darem actualmente Donald Trump oito pontos abaixo de Hillary Clinton, não se pode dar como adquirida a vitória desta última nas eleições presidenciais americanas que terão lugar já daqui a menos de noventa dias, pelo que a resposta ao título só será dada em 8 de Novembro.
O interesse suscitado em todo o mundo pelas presidenciais americanas é sempre inteiramente justificado, dada a importância política, social e económica dos EUA. Interesse ainda maior nestas eleições, atendendo aos candidatos em presença, mas sobretudo por o representante republicano ser Donald Trump. Talvez um dia se conheçam as verdadeiras razões desta candidatura mas a realidade é que ela está aí e, apesar de tudo, pode vir a ser ganhadora. As sondagens têm variado o suficiente durante os últimos meses para que seja certo que a actual margem vantajosa para a candidata democrata se mantenha até ao fim. Até porque Hillary Clinton tem sido confrontada com questões de alguma gravidade, que colocam em causa a sua credibilidade para ser presidente, nomeadamente problemas com a sua actuação como Secretária de Estado (ministra dos negócios estrangeiros). A campanha contra a sua candidatura tem tido aspectos escuros, suspeitando-se mesmo de intervenções secretas de potências estrangeiras. A Wikileaks também anunciou há poucos dias que se prepara para lançar para a comunicação social factos que, segundo Assange, destruirão definitivamente as hipóteses presidenciais de Clinton.
O que seria verdadeiramente uma tragédia porque, perdendo Clinton, venceria Trump.

A frase que melhor define Donald Trump é “estás despedido” – “you are fired”, que ele utilizava sistematicamente e com evidente gosto no programa televisivo em que entrava e que o tornou famoso. Trump assume um discurso agressivo, atacando tudo aquilo que ele designa como “o sistema” e que é básicamente toda a construção democrática americana. Donald Trump assume-se como o paradigma do empresário, mas na realidade é o herdeiro de uma enorme fortuna no imobiliário e, ao contrário do que pretende, já abraçou muitos negócios que se revelaram ruinosos e terá actualmente uma dívida gigantesca de muitas centenas de milhões de dólares.
Donald Trump é o representante americano da vaga de populismo que, desgraçadamente, varre todo o ocidente incluindo a nossa velha Europa. Não foi por acaso que, há poucos dias, Nigel Farage se lhe juntou num comício eleitoral com o objectivo de explicar o “brexit” de que foi campeão e um dos principais responsáveis, tendo usado e abusado da manipulação e mesmo mentira sistemática para atingir o seu objectivo. Farage foi mais uma vez igual a si próprio, não apelando ao voto em Donald Trump, mas dizendo, a uma assistência da qual pelo menos 80% não fazia ideia de quem ele era nem sequer em que consistiu o brexit, que não votaria em Hillary Clinton, nem que lhe pagassem. Quanto a este acontecimento, pode-se comentar apenas que os bons espíritos se costumam encontrar.
Sentindo o chão a fugir debaixo dos pés, o candidato republicano tem ultimamente alterado a sua estratégia, desdizendo o que afirmara no início da campanha, tentando corrigir erros óbvios e, pasme-se atendendo à sua personalidade, pedindo mesmo desculpa por anteriores afirmações suas. Tudo isto enquanto vai substituindo os responsáveis máximos da sua campanha, utilizando aqui o seu método clássico, isto é, chamando-os à sede e dizendo-lhes muito simplesmente: estás despedido.
Para quem definiu força e dureza como a sua imagem de marca para estas eleições, esta alteração de estratégia a poucos meses da eleição surge aos olhos dos observadores como a demonstração daquilo que ele próprio costuma afirmar sobre os políticos para quem, antes de tudo, interessa a estratégia, o posicionamento e a comunicação.
E Donald Trump tem muito por onde escolher para corrigir o seu tiro anterior contra o que chama “politicamente correcto”. Desde os ataques racistas manipulando números de homicídios cometidos por negros, aos ataques a imigrantes propondo a construção de um muro na fronteira com o México, ao miserável comentário sobre a heroicidade de John McCain, até mesmo à subliminar ameaça dos defensores da liberdade de livre posse de armas à sua rival Hillary Clinton ou ao comentário sobre os pais afegãos de um soldado americano morto ao serviço, a lista de asneiras ditas e reditas quase não tem fim.
Hilary Clinton pode não ser, e não é certamente, uma candidata perfeita para o cargo de Presidente dos Estados Unidos da América. Mas a perfeição não existe nunca, menos ainda em política, e Clinton tem muitas qualidades para compensar os seus defeitos. Ao contrário de Donald Trump, em quem será difícil encontrar alguma qualidade.

Publicado no Diário de Coimbra em 29 Agosto de 2016