Infelizmente acontece com raridade, mas por vezes temos a oportunidade feliz de observar a prestação pública de mulheres, na política e não só, que demonstram a capacidade de se assumir como pessoas por inteiro, não apenas como mulheres, mas não deixando de ser inteiramente mulheres. Ao longo das últimas décadas poucas mulheres se afirmaram politicamente ao mais alto nível entre nós, sendo de realçar Maria de Lurdes Pintasilgo, Leonor Beleza, Helena Roseta e Natália Correia. Num mundo claramente masculino, qualquer uma delas teve que manifestar uma capacidade e personalidade muito acima da média para vingar, ao contrário da esmagadora maioria dos homens que surgiam a seu lado.
A alteração do papel das mulheres é, claramente, uma das mais marcantes e substanciais mudanças sociais surgidas na segunda metade do século XX. É hoje óbvio que o surgimento e disseminação de métodos anti-concepcionais, principalmente a pílula, libertou a mulher ocidental, dando-lhe acesso generalizado a um mundo antes exclusivo dos homens. A possibilidade de determinar a sua maternidade, escolhendo quando e como ser mãe, abriu toda uma nova forma de encarar o mundo, com mais liberdade e responsabilidade, também.
Com o objectivo de, mais cedo ou mais tarde, se conseguir uma paridade que dê às mulheres um papel político mais equilibrado e consentâneo com a sua representatividade numérica na sociedade, temos desde 2006 uma lei que obriga a que as listas partidárias nas diversas eleições incluam pelo menos um terço de mulheres. Se, por um lado, a existência das quotas abre uma janela de oportunidade a mulheres que de outra forma teriam dificuldade em aceder a uma actividade relevante e de gestão do bem comum como é a política, por outro lado trouxe aos partidos mais uma dificuldade acrescida de gestão dos seus quadros. A verdade é que o nº de mulheres que participam nas actividades do dia-a-dia dos partidos é claramente inferior à quota definida por lei. Significa isto que, aquando da elaboração das listas os partidos vão procurar mulheres para preencher as quotas, tendo uns convites certamente razões válidas e positivas e outros menos; as quotas são muitas vezes preenchidas com mulheres de valia pessoal e capazes na sua vida profissional, mas não tendo frequentemente qualquer ideia nem projecto político para os cargos que vão exercer, nem experiência política ou de gestão. Assiste-se depois, frequentemente, a um penoso exercício de funções públicas sem qualquer estratégia política, às mãos de burocratas, que desbarata completamente a possibilidade de construção de um futuro melhor. Nos últimos anos assistimos a demasiados casos destes, aos mais diversos níveis, mesmo ministeriais onde as quotas nem têm que ser cumpridas. Pelo contrário, fora da política, muitas mulheres se destacam pela sua valia pessoal e pelos sucessos que obtêm através de um esforço, tantas vezes titânico, porque aliam profissão e família. Tanto nas áreas empresariais, como na cultura, ensino e muitas outras, vemos mulheres a ultrapassar dificuldades, a mostrar como de pouco se faz muito, tantas vezes com um sorriso no rosto, mal se adivinhando as dificuldades que por lá vão. E, para estas mulheres não há quotas, que os políticos legislam muitas vezes a pensar só no seu pequeno e reservado mundo.
A Lei da Paridade, inteiramente justa nos seus propósitos, já tem uma duração suficiente para que seja sujeita a uma avaliação. De facto, só por ingenuidade ou boa-vontade perversa se pode dizer que está a conseguir os seus objectivos. As mulheres que se afirmam por si sem necessidade de apoios artificiais, merecem-no e a sociedade deve exigir que o bem comum seja tratado por quem é mais capaz, não interessando se é homem ou mulher. Há muitas mulheres verdadeiramente excepcionais que mostram a todos como se trabalha, quer profissionalmente, quer para o bem comum. Só que a essas os partidos não fazem normalmente convites, certamente com medo da sua capacidade.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 de Novembro de 2011
jpaulocraveiro@ gmail.com "Por decisão do autor, o presente blogue não segue o novo Acordo Ortográfico"
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
As Beiras: a nossa Região
Nascido em Poiares, crescido em Oliveira do Hospital, com raízes na Sertã e na Covilhã, terras magníficas onde cimentei amizades até hoje, aportei um dia em Coimbra para acabar o Liceu no D. João III e nunca mais daqui saí, embora tenha navegado pelos actuais mares portugueses da Madeira e dos Açores e trabalhado em outras terras como o Porto e a Figueira da Foz.
Por tudo isto considero ter da nossa região uma visão algo particular, mesmo privilegiada. Conhecendo e tendo grande afectividade pelo interior de boa parte da região Centro, tenho dela também uma visão de fora com uma característica: não é uma visão lisboeta, tão comum a quem vai daqui para Lisboa. Porque é assim, a Região Centro, em conjunto ou pelas diversas visões sectoriais tem sido um dos assuntos mais constantes destas minhas crónicas.
Como é evidente em muitas áreas e a diversos níveis, começando pela própria União Europeia, também na região Centro se verifica hoje uma notória falta de liderança. Aliás, corrijo: há falta de liderança, desde há muito tempo, infelizmente.
Os últimos governos foram retirando poderes e competências às Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional que se foram transformando em simples estruturas descentralizadas do poder central, isto é, de Lisboa. Por outro lado, foi cristalizando uma ideia peregrina segundo a qual a Região Centro, ao contrário das outras que têm uma capitalidade bem definida, deverá ser polinucleada. Isto significa apenas uma coisa: Lisboa determina que Coimbra não pode ser capital de nada, e sim apenas mais uma das cidades da Região sem nada que a distinga particularmente, embora isto seja um absurdo óbvio. Mas a ideia vingou de tal forma, que serviu para se irem retirando serviços regionais de cá, distribuindo-os pelas outras cidades da região, deslocalizações essas com custos bem elevados, sem que nunca fossem demonstrados os benefícios.
Sublinho novamente: isto acontece porque a região Centro não tem liderança. Não a tendo, a responsabilidade é de Coimbra e dos seus dirigentes políticos. Coimbra deverá tirar-se das suas tamanquinhas como costuma dizer-se, e assumir o seu papel na Região, com naturalidade e sem se impor às outras cidades; antes pelo contrário, chamando-as e acertando estratégias regionais comuns, sejam quais forem os critérios regionalistas impostos por Lisboa. Na verdade, com as raras e honrosas excepções que confirmam a regra, os nossos líderes políticos não têm tido a vontade, o engenho ou a simples força anímica para colocar Coimbra na situação que lhe deveria competir na Região Centro, para bem de toda a região. A Região Centro ou se afirma de uma forma clara e capaz, ou desaparecerá no meio das duas áreas metropolitanas que a esmagam cada vez mais.
Estamos num tempo de charneira, que poderá colocar o próprio Regime em causa. Quem tem responsabilidades políticas que abandone decisivamente os maus hábitos ancestrais da cidade e se liberte das peias dos grupos e grupinhos de interesses que apenas lutam por arranjar colocação para os seus apaniguados, independentemente de qualidades e capacidades. O tempo actual deverá servir para cerrar fileiras e definir estratégias a longo prazo, o que só se fará com quem for capaz para tal.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 7 de Novembro de 2011
segunda-feira, 31 de outubro de 2011
GIGANTES COM PÉS DE BARRO
Como sucedeu com tantos outros ditadores, a vida de Kadhafi enquanto líder provocou as reacções mais contraditórias por todo o mundo, o que foi visível mesmo aquando do seu desaparecimento.
Durante muitos anos foi a coqueluche de muitos esquerdistas, defensores de socialismos diversos, pan-arabistas, terceiro-mundistas, etc. Muito por causa do seu famoso "Livro Verde". Tal como o "Livro Vermelho" de Mao Tse Tung, incendiou massas de jovens ocidentais vivendo no auge da prosperidade capitalista ocidental pós-guerra, que acreditaram que aquelas fantasias poderiam levar a alguma coisa parecida com mais justiça e liberdade.
Entretanto, Kadhafi ia calmamente usando os dinheiros do petróleo líbio para promover o terrorismo pelo mundo inteiro, salientando-se o apoio ao tristemente célebre "Carlos", a ligação à Fatah e atentado nos Jogos Olímpicos de Munique em 1972 e os atentados a aviões como o de "Lockerbie" em 1988 em que morreram 270 pessoas.
O dinheiro do petróleo líbio serviu ainda para comprar apoios internacionais, sendo absolutamente risível a figura de muitos governantes de todo o mundo fotografando-se ao lado de Kadhafi, praticamente até ao seu fim. Tony Blair, sempre ele com a sua suprema e hipócrita capacidade de mentir, chegou ao ponto de colaborar com Kadhafi numa encenação ridícula para deixar levar o terrorista líbio de Lockerbie de uma prisão inglesa para a Líbia, a troco de uns contratos de petróleo com a BP. Suprema ironia, a Líbia esteve mesmo à frente à frente da agência dos direitos humanos da ONU durante algum tempo. Isto para não falar da fortuna colossal de dezenas de milhares de milhões de euros que Kadhafi tinha espalhados pelo mundo inteiro e que não lhe valeram de nada na hora da morte à saída de um cano de esgoto.
No que se convencionou chamar "Primavera Árabe", é outra ditadura que chegou ao fim, depois da Tunísia e do Egipto. Muitos afadigam-se a celebrar os novos tempos nos países árabes, do que se podem vir a arrepender em pouco tempo. A gente que assassinou Kadhafi daquela maneira não será certamente melhor que ele. Do Egipto vêm também notícias inquietantes no que diz respeito às liberdades e direitos humanos.
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
AUSTERIDADE FORÇADA
Desde há alguns meses que somos diariamente confrontados com o termo "austeridade". Até parece que é castigo, por diversos motivos. E, provavelmente, não deveria sê-lo.
O que significa ser-se austero? Significa recusar abusos, ser severo, ser disciplinado com rigor. Verifica-se, assim, que austero, tanto o pode ser um rico como um pobre.
Os economistas pegaram no termo e começaram a aplicá-lo com o significado de rigor no controle de despesas do Estado. Quando os governos se endividam em excesso e não controlam os seus gastos, permitindo que os défices orçamentais subam de tal forma que o financiamento normal se torna difícil ou mesmo inviável, chega um momento em que só lhes restam normalmente duas hipóteses: ou renegoceiam a dívida, o que significa falência ou muito perto dela, ou pedem ajuda às entidades internacionais constituídas para isso mesmo, como o FMI. Nessas alturas lá vêm as ditas medidas de austeridade, que visam essencialmente que o Estado gaste menos dinheiro que, como se sabe, vem dos impostos dos cidadãos e da economia.
Austeridade do Estado, portanto. Quando o Estado se transforma num "monstro", para utilizar a imagem que entrou no nosso léxico há uns anos atrás, isso significa que, por mais que a economia produza, está lá omnipresente o Estado para absorver e frequentemente malbaratar grande parte do rendimento, impedindo o próprio crescimento da economia. É uma situação de Estado asfixiante do próprio país.
Portugal chegou claramente a este ponto. Não foi a economia que nos trouxe aqui; nem os trabalhadores. Foi um Estado tentacular que tudo quis definir através dos meios que deveriam ter sido entregues ao empreendedorismo, à capacidade de inovação e de assunção de risco, em suma à economia. O Estado definiu completamente quais as áreas de futuro, quais as actividades económicas a eliminar e a apoiar; fez isto de todas as formas e o país está exangue, estragado e dividido. A pesca foi quase eliminada, a agricultura foi abandonada e praticamente entregue às estratégias francesa e alemã, a indústria pesada destruída e o turismo virado para a exploração maciça dos chamados turistas de pé descalço. Tudo isto enquanto as cidades eram sistematicamente maltratadas crescendo em mancha de óleo, o território desordenado e desfeado, e o custo de manutenção de infra-estruturas foi crescendo em espiral. O Estado descobriu métodos financeiros para construir obra sem método nem controle de custos, endividando-nos de forma irreparável, como aconteceu com as parcerias público-privadas das SCUTS e outras. Para se ter uma ideia do que estou a falar, entre 2014 e 2018 vamos ter de pagar 2,5 mil milhões de euros em cada ano pelas tais PPP e entre 2018 e 2026, essa renda nunca descerá abaixo de 1,5 mil milhões por ano.
Chegou-se a um ponto em que a austeridade do Estado não é suficiente. Claro que essa austeridade é necessária e tem de ser obtida e mantida para futuro. Por exemplo, as PPP já constituídas têm, obrigatoriamente, que ser renegociadas, com distribuição mais equitativa das responsabilidades, não podendo os riscos e custos ficar todos do lado dos contribuintes. Mas a conta chegou a praticamente todos os portugueses de forma dramática. Se para o Estado se pode realmente falar em austeridade, para os portugueses em geral a situação tem outro nome: empobrecimento. É de facto de empobrecimento generalizado que se fala e há que assumir isso, não esquecendo que muitos destes novos pobres o são e vão ser como consequência das políticas públicas dos últimos anos. É por isso que o Estado tem nesta altura particulares responsabilidades nessa matéria, não podendo deixar de assumi-las.
Publicado otiginalmente no Diário de Coimbra em 24 de Outubro de 2011
segunda-feira, 17 de outubro de 2011
AR E VENTO
Ao longo dos últimos anos, escrevi neste espaço sobre o processo que levou à instalação dos moinhos de vento que se amontoam pelas cristas dessas serras do nosso país. Basicamente, uma actividade economicamente não rentável foi alimentada artificialmente pela mão do Governo. Uma enorme quantidade de dinheiro, vinda quer de fundos europeus, quer do orçamento do Estado, quer dos bolsos de todos os consumidores de electricidade que somos todos nós, foi retirada do apoio a actividades económicas rentáveis para pagar aquilo que governantes decidiram que era o futuro. Para além do disparate que é sempre os políticos decidirem quais as actividades económicas "do futuro", assim se ajudou a cavar ainda mais o buraco em que estamos metidos.
O Presidente Obama também faz parte daquele grupo de fanáticos das energias renováveis à custa dos outros, mas nessa, como noutras áreas, tem-lhe corrido tudo ao contrário do que esperava. Em 2010, Obama apresentou ao mundo uma fábrica gigantesca para fabrico de equipamentos para as energias renováveis, no caso a SOLYNDRA dedicada ao fabrico de painéis solares. A história da Solyndra é todo um compêndio de ideias pré-concebidas, fanatismos ecológicos, dinheiro público atirado a rodos para actividades económicas definidas pelos políticos como estratégicas e mesmo, quase certamente, corrupção em larga escala. Apesar de pareceres técnicos desfavoráveis dos serviços públicos competentes, o pessoal de Obama arranjou maneira de ultrapassar tudo isso e entregar 500 mil milhões de dólares aos investidores que o convenceram de que ali estava o futuro, como Obama proclamava. Os painéis a produzir pela Solyndra seriam o supra-sumo da indústria mundial de painéis solares, porque não precisavam de silício e teriam uma instalação muito barata. Bendita e cara fantasia. A gigantesca fábrica que Obama aprovou dois meses depois de eleito, apresentando-a ao mundo como "o futuro hoje", abriu em Maio de 2010 para fechar falida em Setembro de 2011. Cada americano vai pagar mais de um dólar e meio de impostos pela falência da Solyndra, para além dos postos de trabalho perdidos.
O ministro da Economia que promoveu esta estratégia ficou famoso por ter sido despedido na sequência de "fazer uns corninhos" a deputados da oposição em plena Assembleia da República. Soube-se depois que foi para os EUA dar aulas numa Universidade num curso pago principescamente pela "nossa" EDP, precisamente sobre a estratégia das energias renováveis. Calha bem que tenha ido ensinar essas coisas aos americanos. Só que a famosa "aldeia global" não nos deixa hoje na ignorância sobre o que se passa em qualquer parte do mundo.
Mais um caso em que os políticos definiram um futuro que a realidade económica se encarregou de matar. Neste caso, talvez depressa demais, tão depressa que o presidente que assiste à falência é ainda o mesmo que decidiu esse caminho.
Entre nós, todos o sabemos infelizmente, temos um buraco gigantesco que agora vamos pagar. Grande parte dele foi escavado por decisões insensatas justificadas as mais das vezes por boas intenções que poucos tiveram coragem de denunciar na altura certa porque eram imediatamente apelidados de atrasados, ignorantes e sabe-se lá mais o quê.
Que a dimensão da crise e da chamada "austeridade" imposta tenha ao menos o condão de abrir os olhos aos portugueses para não se deixarem novamente levar por cantos de sereia.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Outubro de 2011
segunda-feira, 10 de outubro de 2011
CAVALOS DE TRÓIA
1. A cultura clássica é abundante em histórias e mitos que explicam a acção dos homens. Mostram-nos claramente que, apesar dos progressos tecnológicos dos últimos anos e da evolução das regras sociais, há uma permanência espantosa nos sentimentos e até nos procedimentos de cada um de nós.
Amores desencontrados, raptos, ciúmes e defesas de honra violentas levaram à guerra de Tróia que durou dez anos por volta de 1.200 anos antes de Cristo. Homero descreveu os anos finais da Guerra de Tróia na sua Ilíada e aí ficamos a saber das extremas dificuldades sentidas pelos Gregos em tomar Tróia por eles cercada durante dez anos. Já depois do seu chefe Aquiles ter morrido, os Gregos resolveram adoptar um plano traiçoeiro imaginado por Odisseu para finalmente ocuparem Tróia.
Assim, como Virgílio descreve detalhadamente na sua Eneida, desmontaram os acampamentos do cerco, fingindo desistência dos intentos de tomada de Tróia e deixando junto das muralhas da cidade um enorme cavalo de madeira que haviam construído. Ignorando os avisos de Laocoonte, sacerdote de Apolo, os Troianos levaram o cavalo de madeira para dentro das muralhas, tendo passado toda a noite a celebrar a retirada dos gregos. Foi então que de dentro do cavalo oco de madeira saíram alguns soldados Gregos que abriram as portas das muralhas, permitindo a entrada dos seus exércitos que assim finalmente ocuparam Tróia, permitindo o regresso da rainha Helena a Esparta.
Mito ou realidade, o "Cavalo de Tróia" ficou para sempre como o símbolo da esperteza sobre a força e da derrota da ingenuidade e da crença nas aparências.
2. No dia 1 de Outubro celebrou-se novamente o Dia Mundial da Música em Coimbra. Claro que a Orquestra Clássica do Centro residente em Coimbra, não podia deixar de celebrar esse dia, tendo realizado um concerto que incluiu a difícil Sinfonia do Novo Mundo de Dvorak, em que os jovens músicos da Orquestra Juvenil do Centro também participaram, tendo oportunidade de mostrar as suas capacidades. Casa cheia e público a aplaudir entusiasmadíssimo. Mas, no mesmo dia e à mesma hora, houve outro concerto comemorativo do Dia Mundial da Música no Teatro Académico de Gil Vicente. Neste concerto actuou a Osquestra Filarmonia das Beiras, que tem sede em Aveiro e veio à nossa cidade comemorar esse dia. Foi assim que, nessa noite, Coimbra teve o privilégio de ter dois grandes concertos, o que é coisa rara, mas mostra que Coimbra tem público para toda essa oferta. Deve-se certamente agradecer a quem, mesmo retirando a Aveiro a hipótese de celebrar a Música no dia próprio estabelecido pela UNESCO em 1975, transformou nessa noite Coimbra na capital da música em Portugal
3. O leitor que pacientemente me leu até este ponto deverá estar a perguntar a si próprio se o autor destes "vistos de dentro" mudou de estilo e aderiu às mais ligeiras crónicas de diversos pontos, em vez da abordagem de uma única matéria. Devo dizer que, embora possa parecer o contrário, tal não é verdade tendo esta crónica apenas um assunto. Como conimbricense e em liberdade, faço votos que na nossa Cidade Laocoonte não se sentisse só e recordo que a partir de Coimbra Adriano cantou para todo o país as palavras de Alegre: "há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não".
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 Outubro 2011
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
A FUNDAÇÃO
Mas há uma Fundação mesmo muito especial que não deixa de nos surpreender e que diz muito do Portugal dos últimos anos.
O Centro Cultural de Belém é uma estrutura que nos suscita reacções opostas. Por um lado, é um conjunto de grande qualidade em termos arquitectónicos, beneficiando ainda de uma localização privilegiada, quer em termos naturais com o Tejo bem perto, quer em termos urbanos e patrimoniais com os Jerónimos mesmo ao lado.
Mas o preço que custou e, fundamentalmente, o desvio brutal face ao orçamento que estava inicialmente previsto (de 31 para 200 milhões de euros), ficará para sempre como um símbolo do país que fomos criando ao longo das últimas décadas, agora que muitos responsáveis nos tentam ensinar que "vivemos acima das nossas posses". Pelos vistos, se isso é verdade, houve ao longo dos anos muitos políticos que ajudaram a criar essa situação e que por pudor se deveriam abster de criticar os portugueses comuns por tal atitude.
Os 97.000 metros quadrados do CCB albergam desde 2007, em permanência, a Colecção Berardo que é gerida por uma Fundação própria. A Colecção Berardo foi ocupar o espaço que anteriormente era o Centro de Exposições do CCB. Isto é, o empresário Joe Berardo, também conhecido por Comendador Berardo, obteve do Estado Português um espaço absolutamente privilegiado para expor a sua colecção particular, evitando construir um edifício próprio e poupando até nos elevados encargos de seguro que uma colecção de arte com aquela dimensão exige. Há poucos dias ouvimos declarações do Sr. Comendador, queixando-se de que o Estado se teria atrasado na entrega de dinheiro para pagamento de salários. Vai-se a ver e somos surpreendidos com as contas da tal Fundação. Na realidade, desde 2006 até agora, o Estado pagou à mesma mais de 27 milhões de euros e o Sr. Comendador Berardo 2 milhões, consta que metade desta verba em espécie através da entrega de mais obras de arte avaliadas por ele próprio. Pelos vistos tudo isto em observância do acordo celebrado pelo Estado e o Sr. Comendador, que vai sempre ameaçando com a hipótese de levar as obras de arte para outro lado qualquer se o Estado não se portar bem. Para se ter uma ideia do que estamos a falar, o valor pago pelo Estado foi o equivalente ao dobro do valor anual de apoios estatais às artes cénicas, plásticas e performativas e a artistas independentes. É obra, caramba!
Claro que vindo de quem vem, não é de admirar. Todos percebemos já de que forma o Sr. Comendador conseguia até há pouco tempo trabalhar com o Estado. Basta ver como conseguiu da CGD um empréstimo de centenas de milhões de euros para comprar acções do BCP, dando como garantia as próprias acções, e assim arranjar força accionista para influenciar decisivamente a queda da anterior administração do BCP. Curiosamente, para o lugar dessa administração acabaram por ir os administradores da CGD que terão autorizado a operação de empréstimo. Claro que, com a desvalorização espectacular das acções do BCP, quem está a arder? A Caixa que é do Estado.
O Governo já se terá dado conta do que tem acontecido com estas famosas fundações e mandou fazer um levantamento exaustivo da situação. Outra delas, a famosa Fundação para as Comunicações Móveis, que tem actualmente uma dívida de cerca de 65 milhões de euros, já se sabe que vai fechar. Serviu para financiar os célebres computadores Magalhães distribuídos pelas crianças deste país, dando corpo a mais um dos famigerados "desígnios nacionais" que desde o Euro 2004 têm ajudado a enfiar-nos no buraco em que nos encontramos.
Apetece dizer: Deus nos livre de mais desígnios nacionais e de fundações destas.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Outubro de 2011
segunda-feira, 26 de setembro de 2011
Mudanças necessárias (também) na Cultura
O secretário de Estado da Cultura definiu há poucos dias as orientações políticas do actual Governo para a área da Cultura. Mais uma vez, a escassez geral de dinheiro obrigou a uma redefinição muito clara das políticas, de forma a poupar dinheiro também nesta área, sem colocar em causa o essencial. É assim que Francisco José Viegas definiu que os organismos culturais pagos ou apoiados financeiramente vão ter que apresentar resultados de bilheteira, mantendo embora a sua identidade e independência artísticas. Esta é uma velha questão, nunca completamente resolvida entre nós, embora haja companhias artísticas ditas de vanguarda que até fazem questão em mostrar que não dependem economicamente do Estado, conseguindo públicos próprios que reconhecem o seu trabalham e dão a sua compensação ao trabalho apresentado, através das bilheteiras. E assim deve ser, acrescento eu. Ou a independência é real, ou não é mais que conversa da treta para enganar incautos.
Muitos dizem que o facto de não existir hoje em dia um Ministério da Cultura é uma despromoção para a dita; como se o importante não fosse a política cultural e sim as designações. Digo ainda mais, como se a política dos últimos "Ministros da Cultura" tivesse tido algum impacto na Cultura em Portugal. Na realidade, pouco se viu para além da distribuição de dinheiros pelas corporações instaladas que, e de que maneira, se assenhorearam das programações e até da gestão de muitos dos organismos que vivem à custa desses dinheiros, sem efectivo controlo, dado que o sistema está minado de alto a baixo. A preocupação com a melhoria do nível cultural da população, ou pura e simplesmente desapareceu, ou apenas serviu como argumento para a realização de negócios muito lucrativos para alguns, de que a utilização do Centro Cultural de Belém é apenas o exemplo maior.
Francisco José Viegas, ao contrário de "ministros e ministras" seus antecessores, conhece bem o mundo cultural no seu todo. Não é um académico que escreve sobre cultura. É, para além agente cultural como editor, um artista da escrita consagrado e um apoiante de novos escritores. Conhece o mundo real da Cultura e as suas importantíssimas vertentes económicas. As alterações que definiu para a reorganização de todo o sector cultural do Estado vão na direcção certa, assim os diversos responsáveis estejam à altura para a levar a cabo. Claro que as mudanças põem em causa enormes interesses instalados. Faço votos que, também na área da Cultura, a crise financeira que a todos toca seja usada como oportunidade para fazer mais e melhor com menos dinheiro.
Publicado orginalmente no Diário de Coimbra em 26 de Setembro de 2011
segunda-feira, 19 de setembro de 2011
Acordar quem tem andado a dormir
Soube-se há poucos dias que a ERSE (Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos) prevê um aumento na ordem dos 30% na factura de electricidade a pagar pelos portugueses no próximo ano, não contando com o aumento de IVA já anunciado.
Só quem andou muito distraído nos últimos anos se pode admirar com isto. Mais cedo ou mais tarde haveria de acontecer, dada a política energética que os governos têm vindo a seguir desde há anos. Por mim, relembro aqui parte da minha crónica sobre este assunto já em Janeiro de 2007, até porque desde então tudo piorou:
"As tarifas de electricidade devem reflectir os custos totais da sua compra, produção e distribuição, a fim de garantir a liberalização do mercado energético e vir a permitir a entrada de outros fornecedores no mercado.
No entanto, é do interesse geral saber que a factura da electricidade inclui uma parcela que os não especialistas desconhecem. São os chamados "custos de interesse geral", que em 2006 totalizaram 673 milhões de Euros e que incluem os custos da co-geração (164 M€), das energias renováveis/eólicas (157 M€), das rendas aos municípios (234 M€) e da convergência tarifária das Regiões Autónomas (118 M€).
É ainda conhecido que os lucros da EDP no ano passado andaram pelos 649 milhões de Euros, tendo crescido cerca de 84%.
Este procedimento significa que o Governo transmite aos consumidores por inteiro, os custos das decisões políticas (eventualmente correctas) de pagar subsídios às empresas de co-geração, dos parques eólicos e ainda dos subsídios à electricidade mais baixa nos Açores e na Madeira. Trata-se de um autêntico imposto. Por outro lado, a EDP que está em grande parte privatizada é desonerada desse encargo."
Dentro da factura mensal da electricidade, este ano os consumidores domésticos pagam na verdade, três facturas: a da energia (44%), a das redes (26%) e a dos tais CIEG – "Custos de Interesse Económico Geral" (30%). De acordo com a própria ERSE, estes CIEG "são custos de decisão política repercutidos nas tarifas pagas por todos os consumidores".
O leitor estará agora abismado e não quererá acreditar no que escrevi. Na verdade, os governos anteriores levaram-no a pagar aqueles 30% da sua factura de electricidade, sabe para quê? A ERSE faz o favor de nos informar: Sobrecustos da Produção em Regime Especial, em Regime Ordinário e em Regime Especial, rendas aos municípios e "outros custos". Se o leitor ainda não percebeu o que são aqueles sobrecustos, é fácil de explicar: Trata-se essencialmente dos subsídios aos moinhos eólicos e centrais térmicas e hídricas.
Infelizmente, a tão decantada "Regulação" em Portugal dá nisto. Na realidade, o Estado meteu a mão em toda esta actividade e o resultado foi termos já uma das electricidades mais caras da Europa estando o distribuidor que tem o monopólio prático da distribuição de electricidade, a EDP, completamente defendido com os chamados CMEC – custos de manutenção do equilíbrio contratual. A coberto de contratos destes e sem concorrência efectiva, é fácil obter os belos resultados a distribuir pelos accionistas e dar mesmo prémios de gestão magníficos para os geniais gestores.
Os portugueses que andaram tantos anos distraídos deverão agora "acordar" para uma realidade pesada que lhes está a sair toda da carteira. O Portugal "moderno" que lhes venderam e em que é tão bonito acreditar sai caro e por detrás da fachada estão muitas injustiças e mesmo coisas feias. Mas há algo de que os portugueses não se podem queixar: é de que não foram avisados. Talvez por isso estejam a aguentar esta canga da crise com uma bonomia que espanta os mais incrédulos.
segunda-feira, 12 de setembro de 2011
Haja coerência e responsabilidade
Estamos em meados do mês de Setembro de 2011. Não estimado leitor, não vou lembrar a tragédia ocorrida há dez anos em Nova Iorque. Vou recordar algo muito mais recente. De facto, foi em Maio de 2011 que o chamado "memorando da troika" entrou nas nossas vidas por muitos anos. Faz apenas quatro meses. E faz três meses que houve eleições, que retiraram do poder José Sócrates e o seu Governo que tinham trazido Portugal ao ponto em que o Estado nem tinha dinheiro para pagar aos seus funcionários no mês seguinte, nem tinha capacidade para se financiar internacionalmente de forma sustentável. O défice das contas públicas e, essencialmente, a dívida pública obrigaram-nos a pedir ajuda externa para nos podermos financiar. Claro que para garantir esse financiamento, as instituições internacionais (União Europeia e FMI) estabeleceram metas e prazos muito concretos que obrigam a redução de despesas e acréscimos de receitas. Cabe lembrar que, caso não tivéssemos o apoio da "troika", o défice teria de ser nulo já no próximo ano, pelas regras da União Europeia, aceites por nós, o que obrigaria de imediato a tais cortes na despesa e subidas de impostos que dificilmente o país reagiria melhor do que o que acontece com a Grécia neste momento. Com o acordo obtido através da aceitação do "memorando de entendimento", estamos obrigados a um défice de 5,9% do PIB este ano e de 4,5 no próximo, o que nos deu alguma folga e acesso ao financiamento.
Percebem-se assim, melhor, os esforços quase loucos de contenção de despesas onde o Estado mais gasta e dos aumentos de impostos a que temos assistido.
Acresce que o ambiente económico e político na União não está para brincadeiras. Há rumores de que a Espanha esteve quase a pedir ajuda externa em Agosto. A Grécia está claramente a caminho do abismo; na semana passada os juros para a Grécia chegaram a ultrapassar os 90%, significando que já não há medida de risco: a certeza do incumprimento por parte da Grécia é total.
Do lado da Alemanha, as notícias não dão para acalmar ninguém. Embora o Tribunal Constitucional tenha validado as participações alemãs na ajuda à Grécia e no fundo de socorro europeu decididas pelo governo alemão, a Sra. Merkel terá que, a partir de agora, fazer passar quaisquer novas decisões desse tipo pelo parlamento alemão. Conhecendo-se as reticências de muitos alemães a esse tipo de acções para ajuda dos chamados países periféricos, prevê-se que venham aí tempos ainda mais difíceis. Muitos defendem, mesmo entre nós, soluções milagrosas como os "eurobonds" de imediato, sem a criação prévia de um organismo orçamental comum. Esquecem-se de que, em primeiro lugar os países cumpridores dificilmente aceitarão "cobrir" permanentemente e para sempre os erros dos países não cumpridores e que, como é bem conhecido, a resistência de qualquer corrente é a do seu elo mais fraco. Aliás a Standard & Poors encarregou-se de imediato de anunciar que os "eurobonds" receberiam a notação da dívida menos bem cotada de entre todos os participantes.
Para completar a imagem do que se passa, soube-se que a saída do euro, outra ideia peregrina de muita gente entre nós, custaria para cada país "periférico" como nós, entre 40 a 50% do seu PIB; significaria isso que cada cidadão de um país que saísse do euro pagaria entre 9500 a 11500 euros no primeiro ano e 3000 e 4000 nos anos seguintes.
Por tudo isto faz alguma impressão que responsáveis políticos que levaram Portugal a ter que fazer o acordo com a "troika" ensaiem agora algum distanciamento do mesmo. Mas para dizer a verdade, o que choca verdadeiramente é ver muita gente importante do PSD, incluindo ex-lideres que nunca conseguiram chegar a primeiro-ministro, numa roda viva de críticas sem sequer esperarem para conhecer todas as acções do governo eleito há três meses, neste autêntico "momento de verdade" nacional que atravessamos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 12 de Setembro 2011
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