Até ao eclodir da crise internacional de 2008, à qual se seguiu a nossa própria crise de que ainda não saímos, a construção constituía um dos sectores mais importantes da economia portuguesa. Reflexo da descida abrupta das taxas de juro e da abertura ao crédito fácil que se seguiram à entrada na zona do euro, pode-se considerar que a construção explodiu em Portugal. É mesmo uma das causas do elevado endividamento externo privado, dado que os Bancos iam lá fora buscar o dinheiro que cá dentro emprestavam à construção.
As Autarquias também ajudaram à festa, satisfeitas com as receitas que tal actividade lhes proporcionava. Aproveitando um regime legal facilitador das operações de loteamento, as cidades cresceram em mancha de óleo, muitas vezes de forma desordenada e fazendo subir os custos sociais inerentes ao afastamento habitacional dos serviços necessários, como escolas, hospitais e até empregos.
Enquanto isso se passava e o país corria alegremente para o precipício, ignorando olimpicamente os avisos em contrário que os houve e muitos, os centros das cidades foram sendo abandonados à sua sorte. Mesmo os comerciantes dos centros que viviam nos prédios onde tinham as suas lojas no rés do chão, foram no canto da sereia e usaram os rendimentos dos bons tempos de vendas fáceis, para construírem as suas moradias nos arrabaldes das cidades. Assim contribuíram de forma poderosa para o vazio residencial em que os centros urbanos se foram tornando e ajudando a criar as condições para a falta de clientes de que hoje se queixam, com razão.
Mas a crise trouxe a oportunidade de olhar hoje de forma diferente para os centros das cidades e não me refiro apenas aos centros históricos. Muitos jovens olham para esses centros como uma boa alternativa de escolha de local para viver, evitando os custos das longas deslocações casa/emprego, uma vantagem importante quando tantas funções exigem hoje muito mais horas de trabalho do que as clássicas “nove às cinco”.
Sucede, no entanto, que grande parte do edificado antigo não oferece as condições de conforto ou mesmo de habitabilidade exigíveis como mínimas nos dias de hoje. É, assim, necessário fazer obras para adaptar esse edificado antigo às actuais necessidades. A legislação reguladora da construção também acompanhou, e bem, os bons tempos do ilusório progresso das últimas décadas, tendo ido buscar tudo o que de melhor e de mais sofisticado existe no mundo rico, no que diz respeito, por exemplo, às condições de isolamento acústico e térmico, acessibilidades a quem não possui as habitiais condições de mobilidade, etc. Poder-se-à, com razão, afirmar mesmo que fomos longe demais na regulamentação que foi sendo feita de forma parcial e não como um todo, esquecendo por vezes os elevadíssimos custos inerentes, mas não é disso que trato nestas linhas. O pior foi que se esqueceu o edificado existente, cujas obras de remodelação teriam que seguir os regulamentos da construção nova, complicando desajustadamente os projectos (que por vezes são mesmo inexequíveis face aos regulamentos) e aumentando extraordinariamente os custos dessas intervenções. Tudo isto contribui para que, em Portugal, a reabilitação do edificado represente apenas uns parcos 6,5% da actividade da construção, contra os 37% da restante Europa.
Foi assim com grande satisfação que se soube da intenção governamental de isentar durante sete anos a reabilitação dos edifícios localizados em Áreas de Reabilitação Urbana e, talvez ainda mais importante, dos edifícios construídos há mais de trinta anos, de cumprir a regulamentação técnica que entretanto foi surgindo. A condição é que as obras de reabilitação não introduzam desconformidades nem agravem as condições existentes. É certamente uma medida poderosa para impulsionar a reabilitação dos centros das nossas cidades, pelo que aqui se saúda, enquanto se ajuda ao necessário conhecimento geral.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Março de 2014
jpaulocraveiro@ gmail.com "Por decisão do autor, o presente blogue não segue o novo Acordo Ortográfico"
segunda-feira, 17 de março de 2014
segunda-feira, 10 de março de 2014
ODESSA
Nas margens do Mar Negro, a pouca distância da Crimeia
que de repente marcou lugar nas primeiras páginas dos jornais de todo o mundo,
situa-se Odessa, “a pérola do mar Negro”. Cidade mítica, que entrou certamente
nas nossas memórias pessoais por algum dos escritores que, ainda que nunca lá
tenham estado, dela fizeram cenário de algum dos seus livros, como Júlio Verne,
Balzac ou Arthur Conan Doyle, ao contrário de outros que por lá passaram como
Leo Tolstoy ou Chekhov ou Pushkin que aí escreveu parte do seu Eugen Oneguin.
Fundada pela Imperatriz russa Catarina a Grande há pouco
mais de duzentos anos, é bem a imagem concentrada das numerosas movimentações
de povos e mesmo exércitos ao longo dos séculos através do território que é
hoje a Ucrânia independente, umas vezes de ocidente para oriente, outras vezes
ano sentido inverso. O antigo forte Turco tornou-se na cidade mais europeia do
mar Negro. Através de promessa de impostos baixos e liberdade religiosa, foi
atraída a gente mais variada que constituiu uma miscelânea impressionante de
Russos, Turcos, Gregos, Arménios, Tártaros, Moldavos, Ucranianos, Búlgaros,
Polacos, Italianos e sabe-se lá quem mais. A nova cidade cresceu em dimensão e
beleza e ganhou uma grande pujança económica, o que originou mesmo o “Mito de
Odessa” que a dava como um lugar mágico onde se ficaria rico apenas por se lá
colocar o pé. O porto de Odessa deu saída à maior exportação de cereais do
mundo durante largas dezenas de anos. Durante todo o século XIX e início do século
XX Odessa atraiu artistas das mais diversas artes, chamados pelo seu
cosmopolitismo, beleza e liberdade.
O século XX tratou Odessa muito mal. A ocupação Nazi durante
quase toda a segunda grande guerra através do exercito romeno levou a uma
perseguição sanguinária da comunidade judaica, provocando o desaparecimento de
mais de um terço da sua população. O regime soviético utilizou a mitologia de
Odessa para promover um turismo interno folclórico de massas que desvirtuou e
retirou a alma à cosmopolita Odessa. A herança do fim da era soviética foi o
domínio de dirigentes clepocratas corruptos que deixaram degradar o rico
património arquitectónico e monumental a um ponto inimaginável. A mítica Odessa
idílica do romantismo dos fins do século XIX desapareceu às mãos das ideologias
e guerras do século XX, restando o porto e seu terminal como único e sem igual,
pelo que está classificado como património mundial pela Unesco.
Os ventos da História sopraram violentamente em todas as
direcções e em todos os sentidos em Odessa, símbolo do que se passou em toda a Ucrânia
encravada entre a Europa e a Ásia, “melting pot” étnico e cultural resultado de
invasões, deportações em massa e também deslocações pacíficas de povos. É por
isso que não faz sentido que alguma das partes que em algum tempo teve um papel
preponderante venha usar isso como argumento para hoje reinvindicar uma
influência própria que não lhe assiste. Deve ser o povo de todo o país, em
liberdade, e sem pressões externas económicas ou militares, a escolher o seu
futuro, ainda que tal custe a vizinhos poderosos que acalentam velhos sonhos de
poder imperial.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 Março 2013
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 Março 2013
segunda-feira, 3 de março de 2014
MULHERES PODEROSAS
O papel das mulheres na sociedade foi variando muito ao
longo dos tempos e diferentes civilizações. Se na Antiguidade houve
civilizações que atribuíam à mulher um papel activo e relevante, na nossa
sociedade ocidental, de matriz essencialmente cristã, a Mulher teve o seu
destino marcado pela maternidade e modelo familiar pré-definido em consequência
disso. A afirmação pessoal das mulheres ficou durante séculos dependente desse
modelo rígido e só surgiu em pleno a partir do momento em que a possibilidade
do planeamento familiar passou a ser uma realidade, já a meio do século XX.
Mas a afirmação profissional generalizada demorou ainda
muitos anos a ser uma realidade e é ainda, entre nós, muito limitada e de
difícil concretização, para além das áreas tradicionais ligadas ao ensino ou à
saúde. Será bom que as leis das quotas, através das quais a sociedade faz uma
discriminação positiva às minorias, seja desnecessária no que respeita às
mulheres dentro de pouco tempo, até pelos efeitos perversos que provoca, muitas
vezes contrários à afirmação própria das mulheres.
O mundo está a mudar a uma velocidade espantosa em muitas
áreas e também nesta, podendo prever-se grandes alterações sociais para as
próximas décadas. As mulheres começaram a chegar a lugares de topo na gestão de
grandes empresas e também de organismos que até há pouco estavam historicamente
reservados a homens. O caso de Christine Lagarde, actual directora geral do FMI
é o mais conspícuo a nível mundial.
Mas as mulheres dirigentes no mundo económico e
financeiro de topo não surgem apenas em cargos ligados à administração pública.
Também muitas grandes empresas têm hoje mulheres nos seus lugares de maior
responsabilidade, o que começa já a não ser excepção e sim normal.
Por qualquer motivo, a indústria automóvel apareceu desde
sempre associada aos homens, talvez pela ligação ao desporto automóvel, um
domínio masculino clássico, com muito raras excepções, de que destaco Michelle
Mouton nos rallies.
Assim, aparece ainda como facto de realce que a segunda
maior construtora automóvel do mundo, a General Motors, tenha hoje uma mulher à
frente da sua administração. Engenheira Electrotécnica de formação, Mary Barra
dirige um conglomerado presente em seis continentes que emprega 212.000 pessoas
e que recupera de uma situação de pré-falência em 2009, tendo já devolvido o
apoio financeiro estatal que recebeu na altura e regressado aos resultados
positivos a nível mundial. Mas outras grandes empresas têm hoje mulheres à
frente dos seus destinos. É o caso da IBM, dirigida por Ginni Rometty, bem como
da Pepsi Cola com Indra Nooyi, da Hewlett Packard com Meg Whitman, da Lockeed
Martin com Marilyn Hewson ou da Yahoo com Marissa Mayer.
Estes são, evidentemente, casos americanos. De facto, o
número de mulheres americanas com responsabilidades de topo em grandes empresas
é superior ao número equivalente de todo o resto do mundo, sendo a Europa a
segunda região com mais mulheres em lugares de topo, mas com a Ásia a
aproximar-se rapidamente.
Não discuto se o facto de serem mulheres introduz alguma
diferença relativamente à actuação dos homens em lugares semelhantes e,
sinceramente, nem é isso que aqui está em causa. Importa, sim, saudar o facto
de o mundo passar a ser mais equilibrado e respeitador de todas as pessoas como
tal e não em função de género ou outras razões. E isso já é suficientemente
positivo.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Março de 2014
domingo, 2 de março de 2014
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014
Obras públicas
Este é um assunto que me é muito caro e ao qual já dediquei algumas linhas nestas crónicas, tentando divulgar alguns aspectos fundamentais.
De uma forma que direi quase sistemática, as obras públicas são fonte de notícias pelas mais diversas razões, normalmente bem desagradáveis para os cidadãos.
Uma obra pública é, por definição, uma obra levada a cabo por uma entidade pública, que será utilizada pela comunidade e que é construída com dinheiros públicos, isto é, provenientes dos impostos dos cidadãos. Só por isso, deveria distinguir-se das obras levadas a cabo por particulares, sejam pessoas singulares ou empresas, que aí aplicam os seus recursos próprios. Isto é, quem é responsável pelas obras públicas tem, ou deveria ter, uma grande preocupação com a utilização das verbas necessárias, que não são suas e sim de todos, o que exige um muito maior cuidado na sua utilização.
De facto, verificam-se diferenças entre umas e outras. No entanto, o que distingue, entre nós, obras públicas de obras particulares, é que estas raramente custam mais do que previsto e terminam nos prazos acordados, enquanto aquelas muito raramente atingem esses objectivos.
Tudo tem início na decisão de fazer a obra pública e na definição do programa. Os critérios de decisão dependem frequentemente de factores não mensuráveis, de carácter político ou mesmo pessoal, que se sobrepõem à efectiva necessidade daquele investimento e da capacidade financeira para o fazer, para não falar da sua sustentabilidade económica ao longo do período de vida útil.
A seguir vêm os projectos e residirá aí a maior falha das obras públicas. Os donos de obra (decisores políticos, neste caso) têm normalmente uma falta de experiência aflitiva relativamente a estes assuntos. Gostam de chamar arquitectos de renome, esperando que parte do seu prestígio lhes passe para eles por osmose. Ficam, na maior parte dos casos, sem capacidade crítica sobre os projectos, colocando-se nas mãos dos projectistas. Depois, querem fazer ou lançar as obras nos seus mandatos, apressando a fase de estudo e projecto, que é o momento em que se devem tomar as grandes opções e onde é preciso tempo para definir a obra de forma completa. Nesta fase, é frequente atropelar-se tudo, fugindo a uma boa coordenação dos diversos elementos de projecto (arquitectura e especialidades), caindo-se mesmo no erro fatal de não mandar fazer a revisão dos projectos a uma entidade independente antes do lançamento do concurso para a obra. Tudo isto é crucial para retirar espaço a erros de projecto e imprevistos durante a obra.
No momento da adjudicação, o mais fácil é entregar a obra à proposta de preço mais baixo. Mas, como diz o povo, o que é barato sai caro e as propostas muito baixas escondem normalmente truques que levarão a que no fim da obra o preço suba muito, anulando a suposta vantagem inicial.
Depois temos a execução das obras. Dando de barato que se cumpriram as boas práticas até esse momento, o que é raríssimo suceder nas obras públicas, o empreiteiro tem todos os elementos para cumprir o contrato. Haverá sempre lugar a decisões pontuais a que o dono de obra deverá responder em tempo útil, pelo que se deverá rodear de uma equipa de acompanhamento e fiscalização, com capacidade de resposta e competências delegadas.
Nunca o dono de obra se deverá prestar a alterações durante o decorrer dos trabalhos: se o projectista as propuser, deverá responder-lhe com uma pergunta que é se trouxe o livro de cheques, porque será ele a pagá-las.
Infelizmente, todo o processo relativo a obras públicas é frequentemente um conjunto deplorável de erros evitáveis, cujas consequências surgem apenas no fim. Todos os conimbricenses sabem bem do que falo, pelo que é desnecessário referir casos concretos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Fevereiro de 2014
De uma forma que direi quase sistemática, as obras públicas são fonte de notícias pelas mais diversas razões, normalmente bem desagradáveis para os cidadãos.
Uma obra pública é, por definição, uma obra levada a cabo por uma entidade pública, que será utilizada pela comunidade e que é construída com dinheiros públicos, isto é, provenientes dos impostos dos cidadãos. Só por isso, deveria distinguir-se das obras levadas a cabo por particulares, sejam pessoas singulares ou empresas, que aí aplicam os seus recursos próprios. Isto é, quem é responsável pelas obras públicas tem, ou deveria ter, uma grande preocupação com a utilização das verbas necessárias, que não são suas e sim de todos, o que exige um muito maior cuidado na sua utilização.
De facto, verificam-se diferenças entre umas e outras. No entanto, o que distingue, entre nós, obras públicas de obras particulares, é que estas raramente custam mais do que previsto e terminam nos prazos acordados, enquanto aquelas muito raramente atingem esses objectivos.
Tudo tem início na decisão de fazer a obra pública e na definição do programa. Os critérios de decisão dependem frequentemente de factores não mensuráveis, de carácter político ou mesmo pessoal, que se sobrepõem à efectiva necessidade daquele investimento e da capacidade financeira para o fazer, para não falar da sua sustentabilidade económica ao longo do período de vida útil.
A seguir vêm os projectos e residirá aí a maior falha das obras públicas. Os donos de obra (decisores políticos, neste caso) têm normalmente uma falta de experiência aflitiva relativamente a estes assuntos. Gostam de chamar arquitectos de renome, esperando que parte do seu prestígio lhes passe para eles por osmose. Ficam, na maior parte dos casos, sem capacidade crítica sobre os projectos, colocando-se nas mãos dos projectistas. Depois, querem fazer ou lançar as obras nos seus mandatos, apressando a fase de estudo e projecto, que é o momento em que se devem tomar as grandes opções e onde é preciso tempo para definir a obra de forma completa. Nesta fase, é frequente atropelar-se tudo, fugindo a uma boa coordenação dos diversos elementos de projecto (arquitectura e especialidades), caindo-se mesmo no erro fatal de não mandar fazer a revisão dos projectos a uma entidade independente antes do lançamento do concurso para a obra. Tudo isto é crucial para retirar espaço a erros de projecto e imprevistos durante a obra.
No momento da adjudicação, o mais fácil é entregar a obra à proposta de preço mais baixo. Mas, como diz o povo, o que é barato sai caro e as propostas muito baixas escondem normalmente truques que levarão a que no fim da obra o preço suba muito, anulando a suposta vantagem inicial.
Depois temos a execução das obras. Dando de barato que se cumpriram as boas práticas até esse momento, o que é raríssimo suceder nas obras públicas, o empreiteiro tem todos os elementos para cumprir o contrato. Haverá sempre lugar a decisões pontuais a que o dono de obra deverá responder em tempo útil, pelo que se deverá rodear de uma equipa de acompanhamento e fiscalização, com capacidade de resposta e competências delegadas.
Nunca o dono de obra se deverá prestar a alterações durante o decorrer dos trabalhos: se o projectista as propuser, deverá responder-lhe com uma pergunta que é se trouxe o livro de cheques, porque será ele a pagá-las.
Infelizmente, todo o processo relativo a obras públicas é frequentemente um conjunto deplorável de erros evitáveis, cujas consequências surgem apenas no fim. Todos os conimbricenses sabem bem do que falo, pelo que é desnecessário referir casos concretos.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Fevereiro de 2014
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014
Baratas tontas
Um cidadão que se interesse pelo que acontece para tentar ter uma percepção minimamente verdadeira da realidade do país através da informação que lhe chega pelos meios de comunicação social tem muita dificuldade em consegui-lo. Não é por falta de meios. Hoje em dia, não é preciso ir procurar a informação, já que ela nos chega em catadupas pela televisão, pelos jornais e revistas e, cada vez mais, pela internet. O problema está em discernir o que é verdade e verdadeiramente importante, no meio do manancial que nos chega, por dois motivos essenciais: desde logo, pela necessidade de distinguir o importante da chamada espuma dos dias; depois, porque a informação nos chega cada vez mais filtrada pelos interesses dos mais diversos actores, sejam políticos, económicos ou apenas sociais.
Em consequência, os média saltam de assunto em assunto, tratando cada um deles com uma sofreguidão impressionante e tantas vezes confrangedora, atropelando de caminho a dignidade de pessoas, instituições e até, muitas vezes, a verdade que deveria ser o seu objectivo principal.
Para não ir muito atrás no tempo, relembro aqui alguns assuntos que dominaram por completo os media durante dias sucessivos, quase parecendo que todo o nosso futuro dependia daquilo, apenas até o novo substituir o anterior. Foi assim que se discutiram os “swaps”, dando a ideia de que toda a gente percebia mesmo aquilo. A adopção de crianças por casais homossexuais parecia a certa altura o assunto crucial da sociedade portuguesa. O Tribunal Constitucional também tem o seu lugar garantido com estrela da companhia quando é chamado a tomar alguma decisão.
Os estaleiros de Viana do Castelo, após anos e anos de quase inactividade laboral apareceram de repente como assunto dramático para a economia e política nacionais quando o governo, mal ou bem, pouco interessa para aqui, tentou encontrar uma solução para o seu futuro.
Mas isso só até os média se atirarem à magna questão das praxes universitárias, não tocando minimamente no problema, esse sim importante para o país, da qualidade de ensino, ou da falta dela, em grande número de ditas universidades. A venda de mais de oitenta quadros de Miró, por uma das empresas liquidatárias do BPN, pareceu transformar todos os portugueses em especialistas de arte, podendo até levar a crer que os museus que temos têm grande dificuldade em gerir as permanentes multidões que diariamente os vão visitar.
Provavelmente o leitor já nem se lembrará, mas aqui há umas semanas morreu o grande Eusébio. O coitado do grande jogador benfiquista nunca deve ter imaginado o entusiasmo com que os media pugnaram por depositar os seus restos no panteão nacional, tratando aliás esse cemitério como se de um templo religioso se tratasse.
O mais recente drama pungente do país é a saída do resgate, com ou sem programa cautelar, como se isso fosse uma questão ideológica e não uma decisão ponderada a tomar em consequência da situação económica e financeira no momento adequado, tendo apenas em conta os interesses do país.
Os portugueses são tratados como patetas pela maioria da comunicação social, com a televisão e os seus telejornais de uma hora e as suas estrelas apresentadoras e comentaristas à cabeça, eles sim que se comportam como baratas tontas. Será, talvez, sintoma de uma profunda alteração que se está a verificar na comunicação da informação aos cidadãos através da internet e que leva os meios tradicionais a tentar agarrar e tratar a informação como puro espectáculo, para se manterem á tona de água. Seja como for, tudo isto é muito desagradável para quem observa, ridículo para os seus actores do momento e acaba por retirar à comunicação social a credibilidade que lhe é essencial para sobreviver.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Fevereiro de 2014
Em consequência, os média saltam de assunto em assunto, tratando cada um deles com uma sofreguidão impressionante e tantas vezes confrangedora, atropelando de caminho a dignidade de pessoas, instituições e até, muitas vezes, a verdade que deveria ser o seu objectivo principal.
Para não ir muito atrás no tempo, relembro aqui alguns assuntos que dominaram por completo os media durante dias sucessivos, quase parecendo que todo o nosso futuro dependia daquilo, apenas até o novo substituir o anterior. Foi assim que se discutiram os “swaps”, dando a ideia de que toda a gente percebia mesmo aquilo. A adopção de crianças por casais homossexuais parecia a certa altura o assunto crucial da sociedade portuguesa. O Tribunal Constitucional também tem o seu lugar garantido com estrela da companhia quando é chamado a tomar alguma decisão.
Os estaleiros de Viana do Castelo, após anos e anos de quase inactividade laboral apareceram de repente como assunto dramático para a economia e política nacionais quando o governo, mal ou bem, pouco interessa para aqui, tentou encontrar uma solução para o seu futuro.
Mas isso só até os média se atirarem à magna questão das praxes universitárias, não tocando minimamente no problema, esse sim importante para o país, da qualidade de ensino, ou da falta dela, em grande número de ditas universidades. A venda de mais de oitenta quadros de Miró, por uma das empresas liquidatárias do BPN, pareceu transformar todos os portugueses em especialistas de arte, podendo até levar a crer que os museus que temos têm grande dificuldade em gerir as permanentes multidões que diariamente os vão visitar.
Provavelmente o leitor já nem se lembrará, mas aqui há umas semanas morreu o grande Eusébio. O coitado do grande jogador benfiquista nunca deve ter imaginado o entusiasmo com que os media pugnaram por depositar os seus restos no panteão nacional, tratando aliás esse cemitério como se de um templo religioso se tratasse.
O mais recente drama pungente do país é a saída do resgate, com ou sem programa cautelar, como se isso fosse uma questão ideológica e não uma decisão ponderada a tomar em consequência da situação económica e financeira no momento adequado, tendo apenas em conta os interesses do país.
Os portugueses são tratados como patetas pela maioria da comunicação social, com a televisão e os seus telejornais de uma hora e as suas estrelas apresentadoras e comentaristas à cabeça, eles sim que se comportam como baratas tontas. Será, talvez, sintoma de uma profunda alteração que se está a verificar na comunicação da informação aos cidadãos através da internet e que leva os meios tradicionais a tentar agarrar e tratar a informação como puro espectáculo, para se manterem á tona de água. Seja como for, tudo isto é muito desagradável para quem observa, ridículo para os seus actores do momento e acaba por retirar à comunicação social a credibilidade que lhe é essencial para sobreviver.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Fevereiro de 2014
terça-feira, 11 de fevereiro de 2014
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014
Sch!!!! Ouçam a música
Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.
…..
Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria…
Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!
…
Claudio Abbado costumava dizer que a queda da neve tinha um certo som; nada que nós portugueses não saibamos desde a infância, através do lindíssimo poema de Augusto Gil. O maestro falecido há poucas semanas admirava o silêncio das montanhas por onde desde criança gostava de passear, e que usava como elemento essencial das suas criações musicais. Não por acaso, no fim dos concertos chegava a ficar dois ou três minutos em suspense depois da última nota de Mozart ou do seu amado Bruckner se extinguir e antes de se virar para os aplausos.
De cada vez que dirigia uma peça, Abbado nunca a repetia, por mais vezes que a tivesse interpretado. As composições surgiam sempre diferentes, com vida própria. Quando substituiu Karajan à frente da Filarmónica de Berlim, a mesma orquestra, com os mesmos músicos, passou a ser outra completamente diferente. A sua forma de dirigir, sem imposições nem movimentos bruscos, quase que apenas com o sorriso e o olhar, fazia fluir a música de uma forma surpreendentemente subtil e aparentemente fácil, por mais complexa que fosse.
A sua maneira de interpretar a música de forma completamente diferente do que se conhecia até então, bem como uma capacidade muito própria para gerir personalidades vincadas como são os músicos em orquestras de altos níveis de exigência e excelência, marcaram vivamente a sua passagem pelas diversas orquestras que dirigiu. Os quase vinte anos em que dirigiu o La Scala da sua cidade natal, Milão, conduziram a uma mudança radical naquele teatro. Claudio Abbado fugia ao conservadorismo musical e levava as suas orquestras a interpretar obras de compositores contemporâneos como Alban Berg ou mesmo Stockhausen. Sempre virado para o futuro, deu força ao jovem maestro venezuelano Gustavo Dudamel e fundou três orquestras: a Orquestra Mozart de Bolonha, a Orquestra Juvenil da união Europeia e a Orquestra Juvenil Gustav Mahler.
Como já é tradição quando morre um seu Maestro, o Teatro la Scala despediu-se de Claudio Abbado de uma forma tocante: de portas abertas, mas com as cadeiras sem público que ouvia em pé no exterior do Teatro, a filarmónica tocou uma das peças preferidas do grande Maestro, a Marcha Fúnebre da Terceira Sinfonia “Eróica” de Beethoven, sob a direcção emocionada de Daniel Baremboim.
Ficam-nos as gravações, mas Claudio Abbado é insubstituível porque as suas interpretações eram recriações permanentes da música.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Fevereiro de 2014
http://youtu.be/5sl0eYgs6EA
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014
Shostakovitch
Não deverá ser fácil encontrar um artista que tenha sido vítima de maiores desencontros de mitologias políticas do que Dimitri Shostakovitch. Um dos grandes génios da música, sendo quase certamente o maior do século XX, este compositor Russo vê agora a sua obra criativa ser descoberta e apreciada, finalmente sem óculos ideológicos, quaisquer que eles sejam. Como merece aliás, sendo mesmo por muitos considerado o Beethoven do século XX. E não é nenhum desconhecido que o afirma: de acordo com Sviatoslav Richter, “Shostakovitch é um descendente de Beethoven, através de Mahler e de Tchaikovski”.
O desejo do regime soviético em apresentar um grande compositor como representante perfeito da sua ideologia foi chocando, ao longo da sua vida, com a sua liberdade artística que não estava de facto ao serviço de ninguém. Para seu azar, Stalin resolveu ir assistir em 1936 a uma das suas obras mais significativas a ópera Lady Mcbeth que, após dois anos de apresentações de sucesso, terminou ali mesmo. Terminou a apresentação da ópera que só voltou a ser representada na ex –URSS em 1963, e ia terminando muito mais para o compositor. Algumas figuras relevantes do regime soviético que ousaram furar a censura à obra foram pouco depois executadas às ordens de Stalin. Os ideólogos do regime, Jdanov à cabeça, não perdoavam a Shostakovich e a outros diversos compositores o “formalismo” e “cosmopolitismo” das suas obras, o que os definia desde logo como pouco preocupados com “as preocupações dos trabalhadores”, e os catalogava como “inimigos do povo”.
Na sequência da “destalinização” que se seguiu ao desaparecimento do “paizinho dos povos”, Shostakovich acabou por se inscrever no Partido Comunista, o que foi amplamente anunciado para o exterior, escondendo-se no entanto que o partido não reconhecia erros na sua actuação anterior perante os compositores censurados. Curiosamente, o compositor aproveitou o abrandamento da mão pesada para escrever algumas das obras mais críticas do poder soviético.
Com uma obra imensa, de que se destacam 15 sinfonias e numerosos quartetos e concertos, não será talvez uma surpresa assim tão grande que o reconhecimento automático da sua obra se faça em todo o mundo através de uma composição de um estilo diferente. Na realidade, a utilização pelo cinema das suas suites de jazz, nomeadamente a valsa da 2ª suite, acabou por levar o seu nome a muitas pessoas que não conheciam a sua obra e que a partir daí foram satisfazer a sua curiosidade em outras paragens musicais. Esta história da promoção a música clássica pelo cinema levar-nos-ia aliás muito longe, em particular nos filmes de Stanley Kubrick que, também usou a valsa da 2º Suite em “Eyes Wide Shut”, para além de Francis Ford Coppola no seu “Godfather”.
Em tempos de “guerra fria”, a música de Chostakovitch andou de andas para bolandas entre o bloco comunista e o bloco ocidental. Felizmente, todo esse tempo passou. Resta-nos a possibilidade de conhecer e apreciar a Arte de Dimitri Shostakovitch que não é, nem nunca foi, boa ou má por ser soviética ou anti-soviética. E acredite leitor, a sua música é uma surpresa mesmo para quem acha que a música dita clássica acabou com Mahler. Não é verdade, muito longe disso. Ouça as suas obras, entre as quais se destacam a sétima e a décima sinfonias, para ter a certeza disso.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Fevereiro de 2013
O desejo do regime soviético em apresentar um grande compositor como representante perfeito da sua ideologia foi chocando, ao longo da sua vida, com a sua liberdade artística que não estava de facto ao serviço de ninguém. Para seu azar, Stalin resolveu ir assistir em 1936 a uma das suas obras mais significativas a ópera Lady Mcbeth que, após dois anos de apresentações de sucesso, terminou ali mesmo. Terminou a apresentação da ópera que só voltou a ser representada na ex –URSS em 1963, e ia terminando muito mais para o compositor. Algumas figuras relevantes do regime soviético que ousaram furar a censura à obra foram pouco depois executadas às ordens de Stalin. Os ideólogos do regime, Jdanov à cabeça, não perdoavam a Shostakovich e a outros diversos compositores o “formalismo” e “cosmopolitismo” das suas obras, o que os definia desde logo como pouco preocupados com “as preocupações dos trabalhadores”, e os catalogava como “inimigos do povo”.
Na sequência da “destalinização” que se seguiu ao desaparecimento do “paizinho dos povos”, Shostakovich acabou por se inscrever no Partido Comunista, o que foi amplamente anunciado para o exterior, escondendo-se no entanto que o partido não reconhecia erros na sua actuação anterior perante os compositores censurados. Curiosamente, o compositor aproveitou o abrandamento da mão pesada para escrever algumas das obras mais críticas do poder soviético.
Com uma obra imensa, de que se destacam 15 sinfonias e numerosos quartetos e concertos, não será talvez uma surpresa assim tão grande que o reconhecimento automático da sua obra se faça em todo o mundo através de uma composição de um estilo diferente. Na realidade, a utilização pelo cinema das suas suites de jazz, nomeadamente a valsa da 2ª suite, acabou por levar o seu nome a muitas pessoas que não conheciam a sua obra e que a partir daí foram satisfazer a sua curiosidade em outras paragens musicais. Esta história da promoção a música clássica pelo cinema levar-nos-ia aliás muito longe, em particular nos filmes de Stanley Kubrick que, também usou a valsa da 2º Suite em “Eyes Wide Shut”, para além de Francis Ford Coppola no seu “Godfather”.
Em tempos de “guerra fria”, a música de Chostakovitch andou de andas para bolandas entre o bloco comunista e o bloco ocidental. Felizmente, todo esse tempo passou. Resta-nos a possibilidade de conhecer e apreciar a Arte de Dimitri Shostakovitch que não é, nem nunca foi, boa ou má por ser soviética ou anti-soviética. E acredite leitor, a sua música é uma surpresa mesmo para quem acha que a música dita clássica acabou com Mahler. Não é verdade, muito longe disso. Ouça as suas obras, entre as quais se destacam a sétima e a décima sinfonias, para ter a certeza disso.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Fevereiro de 2013
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