segunda-feira, 10 de março de 2014

ODESSA



Nas margens do Mar Negro, a pouca distância da Crimeia que de repente marcou lugar nas primeiras páginas dos jornais de todo o mundo, situa-se Odessa, “a pérola do mar Negro”. Cidade mítica, que entrou certamente nas nossas memórias pessoais por algum dos escritores que, ainda que nunca lá tenham estado, dela fizeram cenário de algum dos seus livros, como Júlio Verne, Balzac ou Arthur Conan Doyle, ao contrário de outros que por lá passaram como Leo Tolstoy ou Chekhov ou Pushkin que aí escreveu parte do seu Eugen Oneguin.
Fundada pela Imperatriz russa Catarina a Grande há pouco mais de duzentos anos, é bem a imagem concentrada das numerosas movimentações de povos e mesmo exércitos ao longo dos séculos através do território que é hoje a Ucrânia independente, umas vezes de ocidente para oriente, outras vezes ano sentido inverso. O antigo forte Turco tornou-se na cidade mais europeia do mar Negro. Através de promessa de impostos baixos e liberdade religiosa, foi atraída a gente mais variada que constituiu uma miscelânea impressionante de Russos, Turcos, Gregos, Arménios, Tártaros, Moldavos, Ucranianos, Búlgaros, Polacos, Italianos e sabe-se lá quem mais. A nova cidade cresceu em dimensão e beleza e ganhou uma grande pujança económica, o que originou mesmo o “Mito de Odessa” que a dava como um lugar mágico onde se ficaria rico apenas por se lá colocar o pé. O porto de Odessa deu saída à maior exportação de cereais do mundo durante largas dezenas de anos. Durante todo o século XIX e início do século XX Odessa atraiu artistas das mais diversas artes, chamados pelo seu cosmopolitismo, beleza e liberdade.

O século XX tratou Odessa muito mal. A ocupação Nazi durante quase toda a segunda grande guerra através do exercito romeno levou a uma perseguição sanguinária da comunidade judaica, provocando o desaparecimento de mais de um terço da sua população. O regime soviético utilizou a mitologia de Odessa para promover um turismo interno folclórico de massas que desvirtuou e retirou a alma à cosmopolita Odessa. A herança do fim da era soviética foi o domínio de dirigentes clepocratas corruptos que deixaram degradar o rico património arquitectónico e monumental a um ponto inimaginável. A mítica Odessa idílica do romantismo dos fins do século XIX desapareceu às mãos das ideologias e guerras do século XX, restando o porto e seu terminal como único e sem igual, pelo que está classificado como património mundial pela Unesco.
 Os ventos da História sopraram violentamente em todas as direcções e em todos os sentidos em Odessa, símbolo do que se passou em toda a Ucrânia encravada entre a Europa e a Ásia, “melting pot” étnico e cultural resultado de invasões, deportações em massa e também deslocações pacíficas de povos. É por isso que não faz sentido que alguma das partes que em algum tempo teve um papel preponderante venha usar isso como argumento para hoje reinvindicar uma influência própria que não lhe assiste. Deve ser o povo de todo o país, em liberdade, e sem pressões externas económicas ou militares, a escolher o seu futuro, ainda que tal custe a vizinhos poderosos que acalentam velhos sonhos de poder imperial.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 Março 2013 

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