segunda-feira, 21 de maio de 2018

A China e a nossa electricidade



A empresa chinesa “China Three Gorges”, que já detém 23,2% do capital da EDP, apresentou uma OPA para compra do resto do capital daquela que é a maior empresa portuguesa. Poder-se-ia pensar que se trata de um negócio privado que só podemos esperar que corra bem. Contudo, na realidade, não é disso que se trata. A empresa chinesa não é uma empresa privada, pertencendo ao Estado. E, como bem sabemos, nada do que se passa no Estado chinês foge ao controlo férreo do Governo e do único partido do país, o Partido Comunista Chinês. Acresce que a outra grande empresa portuguesa da área da energia, precisamente a REN que é a empresa responsável pela rede de distribuição do nosso país, tem também uma participação maioritária de uma empresa estatal chinesa, a “State Grid”. Isto é, há uma verdadeira possibilidade de o sector energético português vir a ser propriedade do governo chinês passando a sua estratégia a ser de quem o domina politicamente.
Torna-se assim óbvio que um assunto da maior importância para o país e para a nossa soberania só na aparência será resolvido pelo mercado, dependendo na verdade de factores externos que têm mais a ver com a política internacional, com o próprio domínio do mundo, em que a nossa dimensão é tão reduzida que as ondas passam-nos por cima e são tão grandes que nem lhes podemos fugir, quanto mais dominá-las. E, uma coisa é entregarmos voluntariamente soberania a uma União de Estados de que fazemos parte e onde temos voz para discutir tudo, inclusive opções económicas e financeiras. Outra coisa muito diferente é entregarmos uma fatia decisiva da nossa soberania a outro país, com um regime político completamente diferente, que usa e manipula os mercados apenas para se auto-promover como grande potência e atingir os seus próprios objectivos globais.

E qual a atitude de quem tem o dever directo e primário de defender os interesses do país? O primeiro-ministro já veio informar que o governo “não tem reservas à oferta chinesa”. Pelo seu lado o seu ministro-adjunto informou que “não irá intervir em matérias relacionadas com o sector eléctrico enquanto a operação se encontrar em curso”. Eventualmente, porque já interveio antes, ao fazer parte da “Estrutura de Missão para a capitalização das Empresas” que propôs ao Governo as alterações feitas ao Código dos Valores Imobiliários em Junho de 2016 que vieram facilitar em muito esta OPA à EDP dos chineses da “China Three Gorges” e ainda por ser à altura sócio da Linklaters, a sociedade de advogados que assessorou os chineses na preparação desta operação. Torna-se evidente que há meses que os nossos governantes têm conhecimento da preparação desta OPA da “China Three Gorges” tendo mesmo havido negociações a coberto de sigilo e às escondidas dos portugueses, embora a EDP seja uma empresa privada. Desde 2014 que existe legislação que criou um regime de salvaguarda de activos estratégicos essenciais, visando garantir “a defesa e segurança nacional e a segurança do aprovisionamento do País em serviços fundamentais para o interesse nacional, nas áreas da energia, dos transportes e comunicações.”. Se há serviço estratégico para o interesse nacional é o fornecimento da energia que nos ilumina e nos aquece. No entanto, não há notícia de que as nossas autoridades encarem a possibilidade de invocar esta garantia muito antes pelo contrário, o que se percebe é uma vontade de estender uma passadeira vermelha aos chineses para o domínio total da EDP, incluindo a estrategicamente apetecível EDP Renováveis.
Isto é, com esta posição governamental, a defesa dos nossos interesses nacionais está nas mãos de diversas instituições cujas funções e objectivos não têm directamente a ver com o país mas com a defesa de mercados a nível nacional e comunitário, mas também transnacional incluindo outros países onde a EDP desenvolve actividades. A envolvente de um negócio de mais de dez mil milhões de euros com matizes políticas deveria ser muito mais transparente para que os portugueses sintam que os interesses nacionais estão a ser completamente defendidos por acções e não apenas por palavras.

terça-feira, 15 de maio de 2018

HAWKING E BEETHOVEN



Como acontece sempre que uma grande personalidade nos deixa, o recente desaparecimento de Stephen Hawking aos 76 anos não deixou de trazer associada alguma controvérsia que aliás, nunca o abandonou em vida. Não há seres humanos a preto e branco e o próprio gosto pessoal muitas vezes atrai a discussão que tantas vezes se diz trazer a luz. Stephen Hawking foi um dos cientistas mais consagrados dos nossos dias, mas cujos interesses extravasaram em muito os campos da física teórica e da cosmologia a que se dedicou. Nascido em Oxford em 8 de Janeiro de 1942, exactamente 300 anos depois da morte de Galileu, veio em 1979 a ocupar a Cátedra de Matemática da Universidade de Cambridge dita Lucasiana do nome de quem deu os fundos para a fundar (Henry Lucas) e que em 1699 fora de Isaac Newton. Para além dos estudos sobre o Espaço/Tempo e sobre os Buracos Negros que o tornaram conhecido, Stephen Hawking foi um grande divulgador de ciência, tendo o seu livro “Uma Breve História do Tempo” conhecido um enorme êxito em todo o mundo. Pouco depois de completar 21 anos, foi-lhe diagnosticada esclerose lateral amiotrófica, uma doença degenerativa ainda sem cura que, ao longo dos anos, lhe foi paralisando os músculos do corpo sem atingir as funções cerebrais. Durante grande parte da vida, a sua deslocação fez-se em cadeira de rodas e a comunicação através de sintetizadores de voz, tendo a certa altura perdido mesmo todo e qualquer movimento do corpo, incluindo segurar a cabeça. O seu cérebro brilhante continuou a trabalhar confinado a um corpo que se tornou na sua prisão, embora Stephen Hawking tivesse, num esforço admirável, feito todos os possíveis para continuar a transmitir ao exterior os resultados da laboração da sua actividade puramente cerebral.

Também o cérebro de Beethoven, um dos maiores músicos de todos os tempos, se viu a certa altura impedido de comunicar com o exterior através precisamente daquilo que o distinguia de todos, a capacidade de juntar os sons de uma forma única e revolucionária para a sua época. Nascido em 1770, a partir dos 26 anos de idade, Beethoven foi progressivamente perdendo a capacidade auditiva. Aquele que já então era considerado um génio, que aos dez anos já dominaria todo o repertório da Bach e que iniciara a sua carreira de compositor aos 11 anos, passaria grande parte da sua vida sem conseguir ouvir devidamente a interpretação das suas composições. Nos últimos anos dez anos da sua vida ficou mesmo completamente surdo. Felizmente, como a surdez só se manifestou enquanto adulto, a sua memória auditiva era suficiente para compor mentalmente, passando ao papel aquilo que para ele já era apenas pura construção cerebral, sem a poder ouvir. Espantosamente algumas das suas obras mais marcantes, pelo carácter inovador e visionário, são precisamente da fase final da sua vida como os Quartetos para Cordas. Desta fase final é a célebre 9ª Sinfonia apresentada pela primeira vez em 1824 sob a regência do compositor já com surdez total que nem o permitiu ouvir a grande salva de aplausos final. A obra de Beethoven é de tal forma avassaladora na História da Música, que durante muito tempo depois da sua morte os compositores se abstiveram de compor mais do que nove sinfonias, em manifestação de respeito e homenagem.
Beethoven e Hawking, personalidades históricas tão diferentes entre si e que dedicaram os seus génios a áreas tão diferentes da criação humana, mas unidos pela prisão dos seus cérebros nos corpos e conseguindo, com enorme esforço, encontrar meios de comunicar o seu labor intelectual com o exterior, constituindo-se assim em símbolos de liberdade. Através da superação de dificuldades extremas, tanto Beethoven como Hawking conseguiram deixar a Humanidade mais rica. Na realidade, a pior prisão que pode haver é a do espírito, como muitos prisioneiros dos mais diversos campos de concentração e escravaturas as mais diferentes descobriram por si, nunca se sujeitando aos carcereiros.
Quando um dia perguntaram a um juiz, após o julgamento de um caso particularmente grave, se ainda acreditava na Humanidade depois daquilo acontecer, a sua resposta foi que sim, porque tinha lido o “Diário de Ann Frank”. Tinha toda a razão. Àquela jovem heroína podemos acrescentar muitas outras personalidades que nos mostram como é possível ao espírito humano ultrapassar as barreiras mais adversas e escrever as mais belas páginas da Arte e da Ciência, provando sempre que a Humanidade vale a pena. 
NOTA: Republicação de artigo de 2 de Abril de 2018

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Trump cumpre



Ano e meio depois de ser eleito, o presidente americano cumpriu na semana passada uma das suas promessas eleitorais, ao decidir quebrar a participação do seu país no acordo nuclear com o Irão conhecido por JCPOA (Joint Comprehensive Plan of Action) assinado em 2015 pelos EUA em conjunto com a França, o Reino Unido, a Alemanha, a Rússia e a China além, claro, do Irão. O acordo visa, fundamentalmente, evitar que o Irão venha a desenvolver armas nucleares, constituindo um passo muito importante na luta contra a proliferação nuclear, ainda por cima numa zona com uma conflitualidade histórica permanente, como é o médio-oriente. O Irão viu descongelados os seus bens no estrangeiro e serem retiradas as sanções económicas sendo ainda autorizado a vender petróleo, o que lhe permitiu ser hoje o quinto maior produtor de crude do mundo levando a economia a uma recuperação impossível sem este acordo. Como contrapartida, o Irão reduziu em 13.000 as quase 20.000 centrifugadoras utilizadas para enriquecer urânio, entregou cerca de 98% do stock de urânio enriquecido que possuía e desmantelou o seu único reactor de plutónio. Este complexo nuclear permitiria, logo em 2015, fazer uma bomba nuclear em poucos meses se o Irão decidisse seguir por esse caminho, sendo possível fabricar até dez bombas nucleares com o material já existente. Dos prazos constantes do acordo faz parte o fim do embargo às armas iranianas em 2020, podendo o Irão retomar o seu programa nuclear com fins pacíficos em 2030 terminando as inspecções às centrifugadoras em 2035.

A monitorização deste conjunto de medidas cabe à Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), uma agência que depende da ONU. Desde o início do JCPOA em 1 de Janeiro de 2016 a AIEA já produziu 10 relatórios a certificar o cumprimento do acordo por parte do Irão levando toda a comunidade internacional envolvida a descansar sobre a execução do acordo.
Todos, excepto o presidente americano que, desde a campanha eleitoral tem classificado o acordo como um desastre, em parte pelos prazos indicados que, segundo ele, permitem ao Irão vir a desenvolver armas nucleares, e pelo dinheiro que entende estar a ser “dado” ao Irão com o fim das sanções económicas. Trump encontra-se agora bem acompanhado nestas suas opções, já que o novo Conselheiro de Segurança John Bolton defende igualmente a saída do acordo e o novo Secretário de Estado Mike Pompeo desde há muito que classifica o acordo como desastroso. Não é possível ignorar ainda outra circunstância que não terá nada a ver directamente com o caso, mas ainda que não acreditando em bruxas, que as há, há, como se costuma dizer. O novo presidente da influente NRA (National Rifle Association), o maior lobby a favor da liberdade de venda de armas nos EUA é o tristemente célebre Coronel Oliver North do célebre escândalo Irão-Contras que, nos anos finais da década de 1980, assumiu a responsabilidade por violações á lei americana, precisamente na venda de armas ao Irão.
Curiosamente, o momento escolhido por Trump para esta atitude coincide com o fim da “guerra de palavras” com o líder da Coreia do Norte que parecia seguir uma escalada com um final perigoso. Não podemos deixar de notar esta coincidência temporal, dado que o líder norte-coreano Kim Jong-un, numa reviravolta repentina resolveu, pelo menos aparentemente, restabelecer relações com a Coreia do Sul e sentar-se à mesa para negociações tendo já sido marcada uma cimeira entre os dois líderes para a primeira quinzena de Junho em Singapura
Apesar de tudo, Trump deixou ainda em aberto a hipótese de haver negociações para um novo acordo, o que poderá sugerir que tem em mente a hipótese de o Irão vir a mudar de posição perante posições de força como terá sucedido com a Coreia do Norte. Se for esse o caso, estará completamente enganado. O médio-oriente não é a península da Coreia, neste caso os EUA estão isolados no Conselho de Segurança das Nações Unidas e, fundamentalmente, a República Islâmica xiita dos ayatolás iranianos já mostrou à saciedade que não é para brincadeiras, como aliás os americanos bem sabem, dado o historial do seu relacionamento mútuo desde 1979.

domingo, 13 de maio de 2018

Nova maternidade em Coimbra

A questão da localização da nova maternidade em Coimbra parece um Benfica-Porto. Os defensores de cada uma das hipóteses de localização atiram-se uns aos outros como claques de clubes de futebol, deixando de lado a racionalidade e usando apenas de retórica. Ao lado do novo Pediátrico há muito terreno livre, porque é que está fora da discussão? A ligação prevista à circular externa, ainda por fazer, resolveria a questão dos acessos a ambas as estruturas hospitalares. Triste terra esta em que as decisões importantes são tratadas desta forma.

terça-feira, 8 de maio de 2018

Fanfare for the Common Man, New York Philharmonic, James Levine

Mentiroso? Não, apenas um reles vigarista

A verdade sempre esteve bem à vista. Havia era muita gente que não queria ver - dava-lhes jeito.
Certificado de 1996 com indicativo telefónico que só surgiu em 1998.
Um pequeno gato com o rabo de fora.
Como este da loja de fatos a 50.000 dolares:




“Entre marido e mulher, não metas a colher”




Quase não há semana sem que, um pouco por todo o país, surjam notícias sobre mulheres mortas de forma violenta pelo marido, pelo namorado ou amante ou por algum ex-qualquer coisa. Por vezes, junta-se-lhe ainda no infortúnio alguma filha, irmã ou sogra. E damos por nós a pensar sobre se há alguma pandemia a alastrar pela sociedade nos dias de hoje e se será sinal dos nossos tempos.
Só no ano de 2015 foram registados 26.141 casos de violência doméstica em Portugal, o que corresponde a 3 casos por mil habitantes, deixando de fora muitos outros que não chegaram às estatísticas, por desconhecimento. Há realmente quem tenha a ideia de que, por qualquer motivo, a violência doméstica é um problema dos dias de hoje e que está a aumentar. Ideia que surge integrada naquele mito do país de brandos costumes que na verdade não tem nem nunca teve nada a ver com a realidade, servindo apenas para camuflar uma realidade violenta com um manto diáfano de fantasia que serve bem os interesses de criminosos.
Mas a violência doméstica sempre existiu. Foi escondida durante muito tempo dentro das paredes das casas. Era um problema a resolver debaixo de telhas entre os próprios intervenientes e a sociedade entendia que não devia interferir, abandonando as vítimas à sua sorte e continuando a conviver com os agressores como se nada se passasse. Só começou a ser debatida publicamente nos últimos trinta anos do século XX, com a libertação da mulher e o desenvolvimento dos direitos cívicos. A consciencialização social e política do problema apenas começou a encontrar respostas concretas na década de setenta, altura em que surgiram as primeiras casas de abrigo em Inglaterra e nos Estados Unidos. Em Portugal as casas de abrigo surgem a partir de 1999 com o I Plano Nacional contra a Violência Doméstica, havendo hoje 39 instituições que lidam com este problema e passou a ser um crime de natureza pública em 2007: qualquer pessoa que tenha conhecimento de algum caso pode hoje apresentar queixa.
Também contrariamente ao que se possa pensar, é um problema que atravessa toda a sociedade São muitos milhares de mulheres espancadas e mutiladas, sujeitas aos mais bárbaros tratamentos nas mais variadas classes sociais, daquelas com maiores dificuldades financeiras às mais abastadas. Nem sequer a formação a nível superior é garantia de que esse problema esteja ausente, como se fosse necessária mais uma prova de que formação não equivale a educação. E também entre adolescentes e jovens adultos se verifica este problema de forma preocupante: estima-se que 25% da população jovem tenha tido comportamento violento pelo menos uma vez e 22,5% admite mesmo já ter sido vítima de agressão por parte do namorado ou da namorada. A esmagadora maioria das vítimas, numa percentagem de 85%, é do sexo feminino, mas também vão surgindo casos ainda mais escondidos em que as vítimas são homens, havendo já em Portugal uma casa de abrigo específica para eles.

Os estudos dizem que a duração média das situações de violência conjugal é de treze anos e que a idade média das mulheres das mulheres que pedem ajuda é de 50 anos. Como será fácil de imaginar, as consequências a nível psiquiátrico para as vítimas de violência conjugal em períodos tão prolongados, são graves. Por vezes, tão ou mais graves que as feridas físicas e de difícil e prolongado tratamento. Estas consequências estão hoje bem documentadas e estudadas, por exemplo em Coimbra, no Serviço de Violência Familiar no Hospital Sobral Cid que trabalha em colaboração com escolas, polícias e Tribunais. Há ainda outras vítimas directas da violência conjugal que são as crianças. Por mais resistentes que sejam e que pareçam conseguir ultrapassar aquilo de que são testemunhas directas, não será possível fugirem a que, mais cedo ou mais tarde, o seu comportamento se venha a ressentir de forma mais ou menos grave.
Felizmente há hoje uma série de instituições dedicadas a lidar especificamente com a violência doméstica e as forças policiais e os tribunais estão técnica e humanamente apetrechados. Mas, além de tratar os casos que surgem, há necessidade urgente de os prevenir, acabando com esta chaga social. E tal só pode ser conseguido com uma consciência social generalizada do mal, para além de uma cultura de cidadania que faça sentir a todos os homens e mulheres que são iguais em direitos e deveres e que ninguém, seja de que forma for, pode sentir-se como sendo dono de alguém. 
Republicação de crónica de Maio de 2017