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terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020
O ESTADO E A VIDA
Não se pode abordar a História da
Humanidade sem ter uma percepção clara da evolução das relações entre os
indivíduos e o poder organizado em cada momento que, a partir de certa altura
passou a ser designado por Estado. Desde os tempos dos simples chefes de clãs
até aos faraós do Egipto, imperadores chineses ou reis europeus do chamado
Antigo Regime, havia algo de comum que era a subordinação dos indivíduos
perante os chefes, incluindo a própria vida. Durou muitos séculos a redução do
poder do Estado sobre a vida dos indivíduos (que só a partir de certa altura se
podem chamar cidadãos), o que se reflectiu na evolução da pena de morte. Por
exemplo, em Portugal, a pena de morte só foi totalmente abolida com a
Constituição da República Portuguesa de 1976. Antes disso, houve um breve
período em que tal também se verificou a partir de 1911 mas, com a entrada de
Portugal na Primeira Grande Guerra em 1916, foi readmitida pelo crime de
traição em plena guerra, situação que se manteve até 1976.
Portugal costuma orgulhar-se de ter
sido o primeiro país a abolir a pena de morte, em 1867, mas tal verificou-se
apenas para crimes civis, mantendo-se a excepção dos crimes de traição em
situação de guerra.
Há muitos países onde, ainda hoje, o
Estado se arvora o direito de retirar a vida a pessoas como castigo pela
perpetração de determinados crimes de grande gravidade. Contudo, o rumar da
História tem sido no sentido de se considerar que a vida das pessoas é algo de
que os estados não podem dispor, seja a que título for.
Não foi assim há tanto tempo que a
Alemanha nacional-socialista utilizou as mais diversas razões para justificar a
retirada de vida a milhões de pessoas, fosse por razões políticas, religiosas,
pretensamente raciais, sociais ou mesmo por diferenças pessoais. Para além da
eutanásia, na altura chamada «morte misericordiosa», a eugenia foi
particularmente odiosa, pretendendo «purificar a raça», pelo que todos os que
tivessem algum pormenor pessoal tido como defeito, viam-se objecto das
«experiências médicas» mais inacreditáveis que acabavam na morte dos infelizes
em condições desumanas. Não foi apenas o Holocausto que definiu os que o
levaram a cabo, não podendo ser esquecido, antes pelo contrário, recordado como
um dos períodos mais negros da humanidade. As práticas de eugenia levadas a
cabo pelos nazis devem também ser motivo de discussão e ser levadas ao
conhecimento do maior número de pessoas de hoje. Deveriam ainda ser
clarificadas e responsabilizadas as práticas de eugenia, não tão extremas, mas
no mesmo sentido, que continuaram durante dezenas de anos em diversos países
tidos como faróis da civilização, mesmo na Europa nórdica.
Em causa está, sempre, a ideia que muitos estados
ainda hoje mantêm, de que a vida dos cidadãos é um bem de que o Estado pode
dispor. Foi só depois do fim da Segunda Grande Guerra, em 1948, que surgiu a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, subscrita pela maioria dos países. O
artigo terceiro da Declaração estipula que: «Todo o indivíduo tem direito à
vida, à liberdade e à segurança pessoal».
Foi este o momento histórico em que a maioria dos
estados prescindiu de dispor da vida dos indivíduos. Em vez disso, estão
obrigados a garantir a todas as pessoas aqueles direitos designados como
universais, que são a vida, a liberdade e a segurança pessoal, por esta mesma
ordem, isto é, com a vida à cabeça. Claro que, como todos os progressos
civilizacionais, pelo facto de estar no papel isso não significa que, em
primeiro lugar esteja a ser praticado por todos os que nele se comprometeram,
em segundo lugar que esteja garantido para sempre.
E é isso que temos visto nos últimos dias, em
Portugal, na discussão sobre a eutanásia. Percebemos que o direito das pessoas
à vida não está garantido para sempre, nem em todo o lado, mesmo entre nós,
como mostra a declaração por uma deputada à Assembleia da República de que «a
vida não é um direito absoluto». Isto, em Portugal, no ano de 2020. Pelo que se
percebe, em determinadas circunstâncias, o Estado pretende voltar a arrogar-se
o direito de decidir sobre matar uma pessoa, quem o pode fazer e como. Trata-se
de voltar a abrir uma porta que, para segurança de todos, mais valia continuar
fechada. E nem é preciso ir muito longe para perceber o que pode entrar por
essa porta, como já sucede na Holanda e na Bélgica. Não me venham dizer que
isso é progresso civilizacional. É exactamente o oposto, constituindo mesmo um
sinal perturbador de declínio civilizacional.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Fevereiro de 2020
sábado, 15 de fevereiro de 2020
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020
AMAR A CIDADE QUE (TAMBÉM) SE ODEIA
Qualquer cidadão que se preocupe com
a sua cidade, ainda mais no caso de Coimbra, desenvolve com ela uma relação
necessariamente afectiva, cuja substância cresce muito para além de
preocupações técnicas ou político-ideológicas. E essa relação com a Cidade
surge, ainda que tantas vezes contraditoriamente, a níveis diversos, seja com a
evolução temporal do espaço público e em geral, do urbanismo, seja com as próprias
pessoas que a habitam, tantas vezes sem se darem conta do que as rodeia, e
ainda menos se questionarem sobre as razões da evolução.
É assim que, no que me diz respeito,
amo a memória das ruas da Baixa de Coimbra com pessoas a atropelarem-se, umas a
ver as montras e outras apenas a passar nos seus trânsitos entre a Estação Nova
e a zona da Câmara Municipal. Guardo com particular carinho, algures num
qualquer recanto cerebral, a visão da rua que, em criança, conhecia como rua
dos bazares, com montras cheias de brinquedos em particular milhares de
miniaturas de automóveis, pistas eléctricas de comboios e de carros, com que
apenas podia sonhar. Era também a rua do «hospital das bonecas», bem conhecido
das minhas irmãs. Sei hoje que a rua se chama Adelino Veiga, «que foi operário
honesto e poeta de mérito» e odeio ver como se encontra actualmente abandonada
e triste, sem bazares e sem pessoas.
Amo a cidade aberta no sec. XIX
sobre a antiga Cerca de Sta Cruz desde a Sá da Bandeira aos Arcos do Jardim,
com continuação pela alameda Júlio Gonçalves, sem réplica urbanística posterior
de qualidade urbanística equivalente. Odeio a incapacidade de recuperar o
Jardim de Sta Cruz para uma normal e aberta vivência mas amo a rua que, ao
lado, os jacarandás que a bordejam todos os anos por volta de Maio vestem com
as cores da Cidade. E amo o Jardim Botânico que distingue Coimbra com a sua
excepcionalidade e, sobretudo, é o palco de memórias guardadas. Mas odeio os
mostrengos construídos na Av. Sá da Bandeira, aguardando que alguém se lembre
de utilizar o dinheiro entregue aquando da construção do golden, destinado ao
parque de estacionamento da Praça da República, para a compra dos 4 pisos
superiores do próprio edifício e sua demolição.
Amo a vitalidade que a juventude
universitária transmite à cidade, com a sua paleta de características
afirmativas pela diferença, seja pela liberdade cosmopolita de aspecto
exterior, seja pela capacidade de apontar caminhos novos nas mais diversas
áreas do pensamento, da ciência, das artes e mesmo da intervenção social. Mas
odeio a conservadora e muito hipócrita sociedade da má-língua da nossa cidade
que se compraz em desfazer naqueles que considera inferiores e em repassar
mentiras e boatos, agindo como se a Inquisição não tivesse terminado há, passam
no próximo ano, 200 anos. Amo mesmo algo que já odiei, o aparentemente ingénuo
tratamento por Senhor Doutor dado a qualquer homem que se apresentasse de fato
e gravata e que na realidade escondia uma certa malandrice futrica que se
aproveitava da célebre doutorice coimbrã. E odeio a falta de oportunidades
proporcionadas pela cidade aos seus filhos (ainda que muito bons) que se vêem
obrigados a deixá-la para construir as suas vidas noutras paragens.
Amo as diversas imagens que o rio Mondego
nos oferece, como a névoa deslizante sobre as suas águas matinais ou o reflexo
da iluminação da colina sagrada em noites amenas, tal como amo a recuperação de
Sta. Clara-a-Velha e a sua envolvente, a ponte pedonal Pedro e Inês e o
Exploratório.
Mas odeio que o parque verde esteja há anos sem recuperação dos
estragos nem limpeza e que a margem esquerda sirva para parqueamento de
auto-caravanas, sem condições higiénicas para tal, quando Coimbra até dispõe de
um parque de campismo de 5 estrelas.
Sim, amo o Penedo da Saudade e as
memórias pessoais e de todos os que lá deixaram pedras evocativas da sua
passagem pela Universidade, reveladoras de um encantamento que se sobrepõe a
todas as agruras por que passamos durante a vida.
Como acontece com as pessoas que
amamos, a relação com Coimbra pode ser de tal intensidade que até as
imperfeições que nela possamos odiar ou apenas desgostar passam, no fundo, a
fazer parte do todo como se rugas da velhice fossem tornando, por isso mesmo,
possível «amar a própria cidade que se odeia».
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Fevereiro de 2020
terça-feira, 4 de fevereiro de 2020
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020
COIMBRA E A SUA CIRCUNSTÂNCIA
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Se as condições ditadas pela Natureza foram a razão original que justifica a
localização de Coimbra, foi a acção do Homem ao longo dos tempos que construiu
a Cidade que hoje conhecemos, embora sempre limitada por aquelas condições
iniciais. Por exemplo, ouvem-se frequentemente comentários sobre uma diferença
de tratamento das duas margens, sendo que a margem direita é beneficiada
relativamente à esquerda, quase apelando de forma subliminar a sensibilidades
políticas. A realidade é que essa diferença tem uma razão de ser simples, muito
anterior a os mais moderados girondinos se terem sentado à direita na
Assembleia Nacional Constituinte da Revolução Francesa enquanto os mais
radicais jacobinos se sentavam à esquerda, assim se inaugurando historicamente
a diferença entre direita e esquerda. A Natureza dita, de forma imutável, que a
margem direita do rio Mondego apanhe luz solar durante a maior parte do dia,
enquanto a esquerda é sombria e mais húmida, logo com piores condições de
salubridade. Em consequência, a margem direita foi, desde sempre, mais
valorizada para habitação como, aliás, sucede em Lisboa e no Porto.
Claro que as novas técnicas de construção permitem artificializar ambientes,
diminuindo as desvantagens naturais, pelo que a ocupação urbana se vai
homogeneizando nas duas margens do rio. Contudo, o historial criou situações
urbanísticas na margem esquerda que hoje deveriam ser revistas procurando
introduzir qualidade urbana em boa parte de, pelo menos, as freguesias urbanas
de Sta. Clara e de S. Martinho do Bispo e Ribeira de Frades. Para tal seria
necessário estudar seriamente o existente de forma a permitir «agarrar» a
situação e encontrar soluções para diminuir a actual degradação e preparar um
futuro com qualidade urbana, através de um plano de urbanização adequado.
Mas, para quem conheceu Coimbra há 40/50 anos, a nossa cidade está muito
diferente, para melhor. Surgiram novas centralidades como a Solum e Celas,
dispondo hoje a cidade de infra-estruturas essenciais como vias circulares que,
em muito, beneficiam a circulação viária interna. Contudo, houve também
intervenções urbanas de fundo, levadas a cabo por diversas instituições, no
mínimo muito discutíveis. Infelizmente, a começar pela Universidade. O chamado
pólo1 foi alvo do maior crime patrimonial do século XX apadrinhado na altura
por poder local e órgãos dirigentes da Universidade. É hoje um conjunto de
edifícios históricos de uma beleza indiscutível lado a lado com outros muito
imponentes mas representantes de um gosto muito datado que marcou a necessidade
de afirmação de regimes não democráticos europeus, curiosamente de sinais
políticos opostos.
O pólo2, apesar da excelência da localização, permanece
inacabado, não logrando atingir o objectivo de «campus universitário». O pólo
3, o mais recente, é o exemplo acabado de se «tentar meter o Rossio na Betesga»
e, inacreditavelmente, ainda vai receber mais equipamentos, como o anunciado
Instituto Multidisciplinar do Envelhecimento. Não colocando em questão a
necessidade destes equipamentos nem a vantagem de se localizarem em Coimbra,
penso ser evidente a falta de força (ao longo de muitos anos) da Autarquia que,
recordo, tem a legitimidade da vontade popular, para obrigar as outras
entidades a estudar em conjunto a optimização urbana da implantação dos novos
edifícios.
Coimbra tem sofrido também de um evidente abandono, para não dizer ataque
cruzado, por parte de entidades oficiais nacionais. O metro de superfície já foi
transformado num sistema de autocarros eléctricos. E não podemos considerar que
seja por acaso que a Estação Velha se mantenha no estado que todos conhecemos,
que o IC6 esteja inacabado, a A13 idem aspas aspas e que o IP3 seja aquilo que
é. As ligações de qualidade que servem Coimbra apenas o fazem em função dos
interesses de Lisboa e Porto. As ligações de Coimbra para o interior, isto é,
para as Beiras de que supostamente deveria ser a capital, ou são inexistentes
ou completamente ineficientes para os dias de hoje. A tão decantada
multi-polaridade da região Centro apenas tem servido para diminuir
artificialmente o papel que Coimbra sempre desempenhou na região, fazendo temer
as consequências, para a nossa cidade, da falada
descentralização/regionalização encapotada.
É por tudo isto, factores externos, mas também internos, que Coimbra tem que
se conhecer, tem que perceber os actuais contextos e tem que encontrar
consensos para além de partidarites para readquirir amor-próprio, fazer por si
própria e não aceitar mais ser menosprezada em nome de uma História riquíssima,
mas sobretudo pelos seus cidadãos, actuais e futuros.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Fevereiro de 2020
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