Peço desculpa aos leitores pelo abuso da língua portuguesa que é a utilização de um termo que não constará dos dicionários, mas não encontrei outro que significasse de forma óbvia e imediata a apropriação da linguagem, mas também da nossa vida pelos fenómenos ligados ao desporto-rei que é o futebol.
Esse jogador genial que se chama Lionel Messi saiu do seu clube de há muitos anos e chorou por isso, mas logo sorriu perante a colossal manifestação de recepção feita pelos adeptos do novo clube. Clube esse, o Paris Saint-Germain, que é hoje financiado pelo monarca do Qatar, facto esse que permite esquecer todos os atropelos aos direitos humanos de que a Europa se ufana ser defensora estreme. Para além dos investidores como o referido Tamin bin Hamad Al Thani, ou os oligarcas russos, o magnífico desporto que é o futebol é hoje uma indústria alimentada pelo entusiasmo dos seus apreciadores, seja pela sua presença nos estádios, seja pelas transmissões televisivas, pagas a preço de ouro e em adiantado. Messi irá receber do novo clube cerca de 41 milhões de euros por ano, havendo notícias de que o Barcelona, o seu anterior clube, gastou com ele cerca de 600 milhões nos últimos três anos, o que deixou o clube na bancarrota, ou quase. Nem vale a pena referir os valores recebidos pelo nosso Cristiano Ronaldo, que é um dos desportistas mais bem pagos do mundo. Os valores dos ordenados das estrelas do futebol, bem como os custos das suas transferências entre clubes, com comissões para os seus representantes e dirigentes constituem uma das facetas mais opacas da indústria do futebol. Tal como os tais investimentos dos «donos» milionários dos clubes que apenas permitem supor que tipo de negócios estão por trás e que muito claros e dignos não serão, certamente.
Entre nós, passados os jogos olímpicos e recomeçado o campeonato nacional, regressam as horas infindáveis de conversa televisiva sobre os jogos realizados, que ocupam praticamente todas as estações, mantendo bem acesa a chama do sectarismo clubístico. Mesmo as intervenções judiciais relacionadas com corrupção dos dirigentes máximos passam para segundo plano, como se não tivessem a ver com toda a organização da indústria do futebol. Embora mais limitados do que internacionalmente, os vencimentos pagos pelos nossos principais clubes não têm nada a ver com o que os portugueses, na sua generalidade, recebem pelo seu trabalho. E é impressionante que se ache um exagero que um primeiro-ministro ganhe uns 5 mil euros por mês, enquanto se aceita calmamente que muitos futebolistas recebam bem mais que isso…diariamente.
Tal como não se percebe que seja admissível que os nossos impostos sirvam para pagar o acompanhamento policial daquelas manifestações de pura barbárie que são as entradas das claques nos estádios. E não me venham com a conversa de que” ah e tal, tu não gostas é de futebol, se não compreendias isso, porque é assim mesmo”. Na minha opinião, é exactamente ao contrário. Ninguém que goste verdadeiramente de ver desporto pode aceitar estas situações fora e dentro dos estádios, que levam a que não se possa levar crianças a assistir, quer por razões de segurança, quer para evitar que achem normais ali situações que em mais lado nenhum são permitidas. A clássica teoria que explica o entusiasmo nas competições desportivas como positivo por permitir, de forma pacífica, sublimar as tensões que sempre se desenvolvem no dia-a-dia não se aplica aqui. Pela simples razão de que aquilo a que se assiste é tudo menos pacífico.
O futebol tem passado, nas últimas décadas, muita da sua linguagem característica para a actividade política, sinal da sua influência crescente na sociedade. A militância política tem-se vindo a tornar em partidarismo cego à medida que os referenciais ideológicos têm vindo a dar lugar à pura e simples procura do poder e sua manutenção, à maneira do sectarismo clubístico que pressupõe que qualquer acto é justificado desde que garanta a “nossa vitória”.
Mas existe outro aspecto do futebol que tem tido uma influência verdadeiramente desastrosa na política. Trata-se do eterno recomeço que é a história dos campeonatos de futebol. Terminado um, logo começa outro que pode ser completamente diferente, não tendo nada a ver com o anterior. Esta lei da vida do futebol transposta para a política significa que os diversos governos que se sucedem agem como se não tivessem nada a ver com os anteriores porque, lá está, trata-se de ciclos diferentes. Nada de mais errado. As consequências das medidas tomadas em cada governação mantêm-se durante muitos anos depois de tomadas, para o bem e para o mal, mesmo durante os novos «ciclos» que lhes sucedem. Muito diferentemente do que sucede no futebol. E as pessoas parecem tender a esquecer-se cada vez mais disso, à medida que a linguagem imediatista do futebol invade o mundo mediático.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra de 16 de Agosto de 2021
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