segunda-feira, 19 de junho de 2023

O insustentável peso da negação

 


Não foi certamente o acaso que determinou o insucesso das duas últimas sessões comemorativas que houve em Portugal, as mais importantes e significativas que temos na actualidade. Numa se comemora a própria existência de Portugal como país independente e noutra a fundação do regime democrático. Momentos que era suposto serem de júbilo e celebração colectiva transformaram-se em sinais de profunda tensão social e, pior, de denegação política da existência dessa mesma tensão. Em 25 de Abril, ao celebrarem-se os 49 anos do regime, vieram à tona incapacidades de aceitação da diferença que, em mistura com desrespeito pelo representante máximo do maior país que de nós saiu, o Brasil, levaram a que se a Assembleia da República se transformasse em palco de uma autêntica vergonha colectiva. No 10 de Junho, toda a festa e significado do local das celebrações ficaram escondidos por detrás de uma manifestação de professores que, ao destratarem na via pública o Primeiro Ministro em momento festivo, se diminuíram a si mesmos, enfraquecendo a própria luta reivindicativa que vêm mantendo há longos meses. Não se pense que esta minha visão constitui uma manifestação pessoal de “respeitinho bonito”, que não é de todo o caso. Lamentando que haja quem não perceba a diferença estre as diversas situações e circunstâncias saliento haver, no entanto, algo que une estes dois momentos, para além da má-educação evidenciada: a prova de que os extremos se unem em muito mais do que possa parecer à primeira vista, já que num se manifestou a extrema-direita e noutro a extrema-esquerda.

Mas estas manifestações evidenciam ainda uma insatisfação colectiva profunda que os extremistas aproveitam para os seus intentos imediatos, enquanto os responsáveis políticos moderados assobiam para o lado, deixando o terreno cada vez mais aberto precisamente para os extremistas.

Os momentos de celebração colectiva, ao contrário de manifestações de auto-satisfação, bem poderiam servir para se fazer uma avaliação do que tem sido feito nas últimas décadas, de bem mas também de mal feito. Até porque as sondagens indicam que os portugueses estão a tomar consciência de muitas coisas. Como o Expresso indicava há uma semana, 90% dos portugueses estão insatisfeitos com a distribuição de riqueza, 91% com o nível de impostos sobre o rendimento, 74% com o SNS, 68% com a educação pública e 87% com o combate à corrupção. Estes apenas alguns dos indicadores da insatisfação dos portugueses. Terá sido um balde de água gelada para os apoiantes do actual Governo que se afadigam a tentar mostrar que Portugal é um autêntico oásis na União Europeia.


A realidade é que o ordenado mínimo se aproxima cada vez mais do ordenado médio dos portugueses, com o que isso significa de destruição das classes médias cada vez mais proletarizadas. A saída de jovens portugueses com formação superior à procura de condições de vida de acordo com os seus sonhos e capacidades lá fora é cada vez mais uma realidade, enquanto um grande número permanece em casa dos pais até aos 33 anos, quando a média europeia é de 26. Não nos podemos admirar com a ocupação do espaço público de forma ostensiva por parte dos extremistas, sejam de esquerda como na Régua, ou de direita, como na Assembleia da República. 

É verdadeiramente aflitivo que, precisamente numa altura em que as transferências de fundos europeus estão a ser gigantescas como nunca, o nosso crescimento nos últimos 20 anos tenha sido, em média, de 0,55% ao ano. Isto nos últimos vinte anos!

Temos de mudar de caminho. Em nome do futuro de filhos e netos.

Infelizmente, não vai ser fácil. Escondem-se os políticos do sistema, do PS e do PSD em estado de negação. Uns por prosseguirem com políticas corruptas e extractivas que levam paulatinamente, mas seguramente, o país para o lugar de mais pobre de toda a União Europeia. Outros porque, ou não têm coragem para o fazer, ou porque nem vêem necessidade de propor uma alternativa evidente, se apresentam apenas como mais competentes para fazer o mesmo, apenas melhor, enquanto aguardam pela saída de quem está.

Toda a organização política tem de ser repensada e verdadeiramente descentralizada. Os impostos sobre o rendimento e o trabalho têm de diminuir. Tal como sobre as empresas. A melhoria da rentabilidade da economia tem de passar a ser um desígnio nacional; não nos podemos tornar em empregados de café e de hotelaria dos europeus ricos, com todo o respeito por essas profissões.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 de  Junho de 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 12 de junho de 2023

A vida em palavras escritas

 


Sempre tive uma ideia muito clara sobre a existência das crónicas nos jornais, como esta. E é a de que uma crónica não vive por si e sim, por pressupor alguém que a escreve e também os seus leitores que a apreciam, quer de forma favorável ou não. Aliás, quando é escrita, o seu autor bem pode convencer-se de ter uma consciência clara do tipo de reacções que eventualmente provocará, que frequentemente estará redondamente enganado, como já tantas vezes sucedeu com o autor destas linhas.

Esta série de crónicas semanais a que chamei “visto de dentro” está prestes a fazer 18 anos. Não é a minha primeira série de crónicas, houve outra anterior, mas é de longe a de maior duração. A primeira crónica saiu depois de acertar pormenores com o Arménio Travassos que aqui recordo com saudade, bem como o seu Pai, o Sr. Travassos, excelente pessoa e que foi um competentíssimo funcionário da Câmara Municipal de Coimbra com quem tive o gosto e a honra de trabalhar.

A consciência de que as crianças nascidas pouco tempo antes de a primeira crónica sair no jornal já podem votar em eleições transmite uma sensação algo estranha, agravada pela circunstância paralela de muitos leitores e amigos não estarem já entre nós, pela lei inelutável da vida. Ao longo de tantos anos de crónicas, perante todos os leitores, os novos e mesmo os que já nos deixaram, há algo que tentei que se mantivesse constante: o respeito por eles. Tal obrigou a assumir sempre a responsabilidade pelas afirmações, mas mantendo sempre claras as ligações pessoais, aos mais diversos níveis, sejam político-partidários, religiosos, sociais ou outros. Penso que mesmo o facto de ter militado num partido, o PSD, durante longos anos, nunca me retirou capacidade de análise própria, fugindo sempre a fazer qualquer espécie de proselitismo.

Mas o que era verdade há quarenta e tal anos não o é hoje. A sociedade portuguesa evoluiu, a Democracia também e os próprios partidos têm pouco a ver com o que eram no início do regime em que se afirmavam pela definição ideológica, mas também pelas lideranças que se haviam imposto na política, mas também fora dela. Atualmente, os partidos, e falo essencialmente dos que se situam ao centro, mais à esquerda ou mais à direita que a outros não poderia nunca aderir, isto é o PS e o PSD, tornaram-se máquinas de poder seja para o conquistar, seja para o manter. As lideranças, sejam nacionais sejam locais surgem quase sempre através de carreiras feitas nas juventudes partidárias, sem ligação efectiva à realidade e, consequentemente, sem perceberem sequer o que se passa à sua volta e muito menos terem consciência das consequências das suas decisões. A mais que evidente necessidade urgente de alterar as leis eleitorais de forma a aproximar os eleitores dos eleitos é negada e rejeitada pelos dois partidos que também nessa matéria agem como donos da Democracia. O estado de degradação evidente do relacionamento entre grandes sectores sociais e políticos entre instituições, e mesmo entre pessoas, dever-se-á muito, a meu ver, a esta incapacidade de rever e reformar o sistema político. Outra consequência é o extremar de posições que coloca tanta gente a falar sozinha.

Como é evidente, com esta análise da situação política e social e embora continuando conv


icto da bondade da Democracia sobre todos os outros regimes e, portanto, da imprescindibilidade dos partidos políticos, o abandono da militância partidária tornou-se-me uma obrigação. Não posso afirmar que todos os líderes partidários do passado eram melhores que este ou aquele líder dos dias de hoje, mas algo me parece claro: em termos médios, a degradação do pessoal político é evidente e mesmo por vezes confrangedora. Por outro lado, militar num partido não pode ser semelhante a ser adepto de um clube de futebol: neste caso, a emoção tudo permite enquanto naquele a razão tem de apoiar programas e protagonistas com quem tem de estar de acordo. Consequentemente, se a minha independência de opinião era já um facto, hoje é-o com muito mais facilidade.

O avançar da idade, e vou iniciar nesta semana a minha septuagésima volta em torno do Sol, deve ajudar a que minha perspectiva da realidade seja hoje a que é. Mas não se pense que seja sinónimo de desistência de intervenção cívica que continuo a considerar um imperativo. Regressando à primeira crónica desta série, continuo a concordar com algo que lá estava escrito e que é achar que, em vez de optimistas ou pessimistas, o que devemos ser é optimizadores.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 12 de Junho de 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 5 de junho de 2023

ESCRAVATURA, HOJE

 


O facto de nos debatermos com problemas sérios a nível de crescimento económico, mas também de organização nos mais diversos sectores desde a educação à justiça, passando pela habitação e organização territorial, não nos deve tornar cegos relativamente ao que de verdadeiramente grave se passa noutras partes do mundo.

Na realidade, para nós a escravatura é uma questão do passado, incómoda, mas para a qual tendemos a olhar apenas de um ponto de vista histórico. Mas não devíamos ter essa perspectiva. Em primeiro lugar, porque o facto de estarmos integrados geográfica, mas também económica e politicamente numa zona do globo que há anos baniu a escravatura não impede que essa chaga social persista em grande parte do mundo.

A maior parte dos países aboliu a escravatura clássica durante o sec. XIX, como foi o caso de Portugal que o fez em 1864, embora as últimas abolições tenham ocorrido já bem dento da segunda metade do sec. XX. O trajecto da abolição da escravatura em Portugal é bem demonstrativo do longo período que foi necessário para que a consciência do significado da escravatura fizesse o seu caminho: em 1570 condenou a escravidão e o tráfego dos indígenas do Brasil, proclamando-os livres e iguais aos outros homens; em 1761 foi proibida a venda de escravos para o território metropolitano; em 1773 um alvará extinguiu o estado da escravidão em Portugal, “declarando livre o ventre da mãe” e acabando com a perpetuação do cativeiro; em 1836 foi proibida a exportação de escravos, quer por mar, quer por terra, em todos os domínios portugueses; finalmente, em 1869 foi “abolida a escravidão em todas as colónias portuguesas, passando os escravos existentes à condição de libertos”.

Nos nossos dias, felizmente, já não se assiste em lugar nenhum à compra e venda de seres humanos como se de mercadoria se tratasse. Mas persistem formas de reduzir a independência de pessoas retirando-lhes praticamente toda e qualquer possibilidade de seguir livremente as suas vidas, numa nova forma de escravatura. Modernamente considera-se que a escravatura engloba várias situações degradantes tais como o tráfico humano, exploração sexual e algumas formas de trabalho infantil bem como casamento infantil forçado. Há mesmo zonas do mundo onde crianças são utilizadas como soldados. As instituições que analisam esta questão a nível global consideram que existem quase 50 milhões de pessoas vítimas de escravatura moderna, das quais 22 milhões em casamento forçado incluindo 12 milhões de crianças, e os restantes em trabalho forçado.

De acordo com os especialistas, os dez países com mais alta prevalência de escravatura moderna são os seguintes: Coreia do Norte, Eritreia, Mauritânia, Arábia Saudita, Turquia, Tajiquistão, Emiratos Árabes Unidos, Rússia, Afeganistão e Koweit. Alguns destes países têm direitos humanos e civis limitados, outros têm trabalhos forçados e outros ainda não garantem a imigrantes ou refugiados os mesmos direitos civis que aos seus cidadãos, permitindo a sua exploração.


Portugal é normalmente apontado como bom exemplo de país com legislação adequada à luta contra a moderna escravatura. Contudo, como bem sabemos, somos habitualmente muito bons a fazer leis, mas muito fracos a aplicá-las com eficácia. E as notícias que, com frequência cada vez maior, surgem sobre casos de imigrantes a viverem em condições miseráveis para trabalharem em explorações agrícolas intensivas no Alentejo e no Algarve, não nos podem deixar descansados.

Devemos tomar consciência de que muitos produtos ou serviços que compramos ou utilizamos têm origem em trabalho forçado, mesmo feito por crianças, numa economia que permanece em boa parte escondida dos nossos olhos. O exemplo do chocolate que todos apreciamos é revelador desta realidade. Apesar de empresas como a Nestlé ou a Mars se terem comprometido a abolir o trabalho infantil, a realidade é que se estima que mais de 1,5 milhões de crianças trabalhem na produção de café no mundo, muitas delas com cinco anos de idade, metade das quais nas fazendas de cacau da África Ocidental. Na semana passada todos celebrámos o “dia internacional da criança” com mais uns abracinhos e mimos aos nossos filhos e netos, e é uma satisfação poder fazê-lo. Mas o conhecimento da forma como ainda hoje milhares e milhares de crianças são tratadas no mundo, na mais infame violência, ignorância e exploração não nos deveria deixar indiferentes e em paz de espírito.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 5 de Junho de 2023

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segunda-feira, 29 de maio de 2023

A VERDADE DA MENTIRA


 O rapazinho com cerca de dez anos tinha acabado de, por má utilização, partir um apoio de uma máquina doméstica recém-comprada. Com os seus conhecimentos limitados pensou que com a chamada “cola-tudo” resolveria o caso. Quando o seu Pai verificou que a enceradora nova tinha uma peça partida e colada, decidiu reclamar junto do vendedor e o rapazinho calou-se, não assumindo a sua responsabilidade no caso. Quando o Pai, para quem a verdade sempre tinha sido algo de sagrado, regressou da loja com a informação de que o vendedor iria apresentar o caso ao fabricante, o rapaz decidiu contar o que tinha acontecido. O caso resolveu-se com a informação ao comerciante do que tinha realmente acontecido e a tomada de consciência, pelo jovem, de que a mentira tem sempre perna curta, tendo ficado para sempre com uma relação muito difícil com a mentira e para com quem tem relação fácil com a mentira, digamos assim. Aqui chegados, devo esclarecer quem foi o rapaz que naquela altura da sua curta idade pensou que seria mais fácil calar o sucedido, assim mentindo: foi o autor destas linhas que, passados quase 60 anos sobre o sucedido, nunca o esqueceu.

Assistimos hoje ao que parece ser uma completa inversão de valores, quando a mentira se torna absolutamente aceitável se permitir alcançar o objectivo pretendido, havendo apenas uma preocupação, que é a de não se ser apanhado.

Claro que, em política, nunca é de esperar que a verdade seja um valor sagrado. Todos os políticos profissionais sabem que ao apresentarem a realidade aos eleitores sem pelo menos dourarem um pouco a pílula, nunca ganharão eleições, a não ser em situações muito específicas e de perigo imediato. Winston Churchill é o exemplo acabado disso. Enquanto Hitler ia fazendo das suas na Alemanha bem foi avisando do perigo que dali vinha para todos, que ninguém o quis ouvir. Só quando a Europa estava toda a arder e as Ilhas Britânicas quase a serem também invadidas é que os seus concidadãos lhe confiaram os destinos do país, quando ele os informou de que só lhes poderia prometer “sangue, suor e lágrimas” e foi, de facto, o que lhes deu ao não se submeter aos desígnios nazis. Para, logo que a guerra acabou, o despedirem sem apelo nem agravo nas primeiras eleições que se seguiram. Aliás, o Reino de S. Majestade foi ainda recentemente palco de uma vaga de mentiras do mais desbragado populismo que levou à sua saída da União Europeia numa decisão evidentemente democrática porque ditada pelo voto popular, mas constituindo um erro crasso de que a maioria do povo estará já arrependida. As promessas que então lhes foram feitas de melhor futuro não passavam de um engodo bem montado que se vieram a revelar, tarde demais, como impossíveis de alcançar porque completamente desfasadas da realidade.

A generalização e mesmo banalização da mentira como instrumento político é por demais evidente. Governantes e agentes políticos dos mais diversos níveis e quadrantes bem se podem achar muito inteligentes ao fazê-lo, mas mais não fazem do que corroer a democracia, escancarando as portas, eles sim, aos cavaleiros do apocalipse da ditadura. Uns mentem, objectivamente ou por omissão porque não têm coragem de dizer ao que vão temendo que tal não traga votos. Outros mentem quando tentam manipular a realidade, distorcendo números ou escondendo parte deles, os que mostram as suas incapacidades ou mesmo incompetências.

A evidência empírica mostra-nos que estas situações não podem durar para sempre e a realidade acaba sempre por se impor. Como dizia Abraham Lincoln, "É possível enganar algumas pessoas todo o tempo; é também possível enganar todas as pessoas por algum tempo; o que não é possível é enganar todas as pessoas todo o tempo.

O problema é que a mentira parece uma droga: depois de se habituarem a ela, dificilmente as pessoas se livram dela. Por outro lado, as actuais ideias pós-modernas ajudam, já que se difunde a ideia de que não existe verdade ou mentira, tudo dependendo do ponto de vista. Nada de mais errado, claro está. Não é o facto de estarmos a partir da Terra a observar o movimento do Sol que põe este a girar à nossa volta. Mas será que, nos nossos dias, Galileu voltaria a ter de negar aquilo que para ele era uma evidência científica?

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 29 de Maio de 2023

Imagens recolhidas na internet