sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Do mal absoluto

Assinalou-se na semana passada o Dia Internacional das Vítimas do Holocausto com uma cerimónia no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau em que participaram alguns dos últimos sobreviventes, já que a libertação do campo pelo exército soviético ocorreu há oitenta anos. Dos cerca de seis milhões de judeus vítimas do nazismo, estima-se que mais de um milhão foram assassinados em Aushwitz.

Devo dizer que nunca me atrevi a visitar nenhum dos campos de concentração nazis, embora tenha amigos próximos que o fizeram e comigo partilharam a extrema impressão que lhes causou essa visita. Talvez por isso mesmo nunca o tenha feito até porque, sendo português e beirão, sei perfeitamente que alguma ascendência judaica certamente terei.

Já por várias vezes abordei o nazismo, as suas origens, a sua ideologia e as trágicas consequências para a humanidade que daí vieram. Não é fácil entender como seres humanos levaram a cabo tais barbaridades, só tendo uma classificação para tal, como sendo o “mal absoluto”, que chega a não ter explicação. A filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt debruçou-se sobre esta questão tendo aventado uma explicação algo perturbadora e mesmo assustadora para o que se passou na Alemanha nos anos 30 e 40 durante o nazismo. Ao acompanhar o julgamento de Eichmann, Hannah Arendt concluiu que, em determinadas condições de massificação social, as pessoas comuns podem desenvolver uma indiferença moral que lhes permite fazer coisas em obediência a ordens, que em condições normais achariam impensáveis, quanto mais realizáveis por elas próprias. Daí a sua expressão “a banalidade do mal”, que se tornou célebre, mas que a própria comunidade judaica teve dificuldade em aceitar, por se poder confundir com uma desculpabilização do mal praticado e consequente desresponsabilização dos perpetradores da barbaridade que se conhece

O Holocausto deve ser sistematicamente recordado, porque o que sai da memória pode ser facilmente apagado da História. E é evidente o regresso e difusão do antissemitismo, havendo mesmo muitas pessoas que negam a existência do Holocausto. Bem andou o Gen. Eisenhower quando organizou uma visita ao campo de concentração de Gotha. Além de chamar jornalistas e fotógrafos para reportarem ao mundo inteiro a realidade dos campos de concentração nazis, obrigou os civis alemães moradores dos arredores a testemunharem com os seus próprios olhos o que o regime alemão ali tinha feito. Como explicação para obrigar a ver, cheirar e ouvir testemunhos vívidos, Eisenhower afirmou ter a certeza de que, dentro de poucos anos, haveria muita gente a negar que aquele horror tivesse realmente acontecido. E, como se vê hoje, tinha inteira razão.

Quer se concorde ou não com a tese de Arendt parece ser certo que a existência de determinadas circunstâncias sociais que promovem o medo generalizado condiciona gravemente as escolhas pessoais que envolvam algum risco imediato. Daí a obedecer cegamente a ordens ilegítimas e imorais vai um passo que, demasiadas vezes, se verifica ser fácil de dar.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  3 de Fevereiro de 2025

 

Reféns, Sr. Presidente? A sério?

 No meio das centenas de “ordens executivas” que equivalem a decretos presidenciais e que foram a marca da sua tomada de posse, o novo Presidente dos EUA assinou um decreto a perdoar pessoas condenadas em tribunal pelo ataque de 6 de Janeiro de 2021 ao Capitólio. Como justificação, adiantou que essas pessoas, a quem chamou reféns, apenas protestavam contra a suposta viciação das eleições presidenciais de 2020, nas quais Trump perdeu contra Biden. Recordo que em todos os Estados na altura referenciados por Trump como locais de batota nos resultados se concluiu judicialmente não ter ocorrido nada disso, tendo as eleições sido limpas. E, no entanto, o novo Presidente americano continua a usar esse argumento, agora para libertar os criminosos que fizeram o que todos nós assistimos em directo pela TV durante horas: um assalto violento ao Capitólio, destruindo o que lhes apeteceu, agredindo polícias e quem se lhes opusesse e provocando mesmo várias mortes.

Acredito que, no meio dos múltiplos decretos presidenciais, esta ordem tenha passado relativamente despercebida e mesmo tida como irrelevante perante a importância política, social e económica de todo o pacote que corresponde a um verdadeiro comportamento disruptivo para com o passado recente. Mas esta decisão, só por si, basta para definir por completo a personalidade do novo. Expõe o entendimento de que está autorizado a exercer o poder para praticar tudo o que lhe parecer defender os seus interesses.

Não vou abordar os temas de política exclusivamente interna dos EUA, já que Donald Trump ganhou as eleições de forma absoluta e tem, portanto, toda a legitimidade para aplicar as políticas que anunciou na sua campanha.

Mas, como europeu, há alguns aspectos que não posso deixar de abordar. Desde logo, Trump mostrou, no seu discurso, que a Europa é para si uma inexistência, ao não se lhe referir uma única vez. Anunciou ainda o estabelecimento de tarifas sobre os produtos europeus exportados para os EUA, queixando-se de que os europeus não compram os carros americanos, enquanto os carros europeus são bem vendidos na América. Como ele muito bem sabe, sendo empresário, ninguém é obrigado a comprar algo mau tendo ao lado uma boa alternativa e isso é a base da economia de mercado que promove a inovação e a qualidade. As tarifas têm o resultado contrário ao que ele anuncia como sendo garantido. E quem pagará tudo isso serão os consumidores americanos.

No meio de tudo isto há, no entanto, várias conclusões a tirar e com consequências sérias para os europeus, que não podem ser escamoteadas pelos nossos responsáveis políticos. A sociedade liberal, como a conhecíamos, vai ser colocada seriamente em causa e desta vez não é pelos seus velhos inimigos, os comunistas. A Europa vai deixar de ter o guarda-chuva americano na defesa e vai ter de olhar para o resto do mundo de forma adulta e responsável. E vai ter de se organizar, já não como uma super-burocracia, mas como uma entidade autónoma e responsável, política, económica e militarmente.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Janeiro de 2025

domingo, 26 de janeiro de 2025

Saúde em Coimbra

 

Terminado o primeiro milhar de crónicas desta série, dê-se continuidade à sequência, que novo milhar não será, de certeza. E não deverá haver melhor forma de o fazer do que dedicando estas linhas à nossa cidade, de forma independente e liberdade de opinião, que a tal obriga o respeito pelos leitores.

Para quem, há muitos anos, segue com alguma atenção a evolução da nossa cidade nos mais diversos aspectos, é evidente haver uma área cuja importância local ultrapassa a sua natureza intrínseca, reflectindo-se em vários outros sectores. Refiro-me à área da Saúde, nomeadamente às diversas instalações do sector pública/SNS em Coimbra. Para se ter uma ideia da sua importância local, e de acordo com a informação disponibilizada no seu site, das oito unidades hospitalares da ULS Coimbra, seis localizam-se na nossa cidade. A ULS de Coimbra tem mais de 10.000 trabalhadores, incluindo mais de 2.200 médicos e 3.700 enfermeiros, entre muitos outros profissionais de saúde. O número de laboratórios de investigação clínica avançada é igualmente muito importante, sendo que um cada dez médicos especialistas é doutorado. Para além da oferta do SNS, existem em Coimbra vários hospitais privados que, na sua maioria, vieram substituir as antigas clínicas e consultórios médicos.

Como é fácil de perceber, num concelho com cerca de 150 mil habitantes, a importância de um sector desta dimensão é crucial, com implicações a montante e a jusante no emprego, mobilidade e economia em geral. Juntamente com o ensino superior universitário e politécnico a Saúde é, de facto, uma das áreas críticas para a sustentabilidade de Coimbra.

Por todas estas razões, as recentes afirmações do responsável máximo pela ULS de Coimbra acerca de eventuais ameaças ao hospital universitário ou à ULS de Coimbra não puderam deixar de trazer perplexidade e preocupação. A acusação de «triste sina a de uma entidade pública que está refém de interesses particulares em detrimento do interesse da comunidade», acrescentando ainda a “dualidade do biscate no serviço público e o foco no consultório privado” é suficientemente clara e grave para não ter consequências, até por vir de quem vem. De facto, em primeiro lugar, cabe a quem gere evitar e mesmo impedir as tais situações de biscate nos hospitais. Aliás, a denúncia de situações destas deixa-nos a todos com os cabelos em pé: o SNS é tão importante e significa uma tão grande parte dos nossos impostos que as torna absolutamente inaceitáveis. Por outro lado, não se vê como os antigos HUC poderão deixar de ser hospital universitário, ao lado do S. Maria em Lisboa e do S. João no Porto, constituídos em Centros Académicos e Clínicos. Até porque, anualmente, mais de mil alunos do mestrado integrado de medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra recebem formação clínica na ULS de Coimbra.

Mas que algo de estranho se passará na ULS de Coimbra, isso parece ser evidente. E a importância das instituições do SNS em Coimbra é tão grande para a cidade que se espera que Autarquia, Universidade e ULS deem as mãos no interesse de Coimbra, também no que toca da defesa do Ensino Clínico superior.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Janeiro de 2025

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Portugal, um país a sonhar acordado

 

Passam este mês 471 anos sobre a data de nascimento do Rei. D. Sebastião que viria a morrer na batalha de Alcácer Quibir em 4 de Agosto de 1578. A tradição histórica atribuiu-lhe o cognome de “o Desejado” e “o Encoberto”, o que já por si indicia o sebastianismo que se desenvolveu em Portugal após o seu desaparecimento. Grande parte do povo não acreditou na sua morte na batalha fatídica, com esperança no seu regresso para resolver os problemas do país. Esse movimento profético e messiânico nunca chegou a desaparecer completamente, tendo-se manifestado por diversas formas ao longo dos tempos, sempre como uma solução que, de forma quase mágica, nos tiraria de dificuldades na realidade por nós próprios criadas.

As “Trovas messiânicas” de um sapateiro de Trancoso chamado Gonçalo Bandarra, da primeira metade do sec. XVI foram, curiosamente, o ponto de partida para esse movimento messiânico que se desenvolveria em torno do regresso de D. Sebastião. No sec. XVII o Padre António Vieira deu um impulso ao espírito messiânico de Portugal, formulando a tese do Quinto Império. Para ele o destino de Portugal, na senda das profecias de Bandarra, seria corporizar o “Quinto Império”, mas um império espiritual que traria paz e justiça ao mundo. O próprio Fernando Pessoa viria a integrar o chamado “quinto império” cultural e espiritual na sua obra poética, na “Mensagem”. O messianismo, para além de uma crença de carácter popular, corporizou um sentimento das próprias elites culturais.

Felizmente, existe hoje uma parte de Portugal, não dependente do Estado, que foge ao sebastianismo e investe de forma responsável e exigente, criando riqueza e emprego bem pago. Mas ao lado, sonhar com um futuro grandioso, sem trabalhar para o conseguir, parece continuar a ser uma pecha de muitos portugueses, aos mais diversos níveis, como o indiciam vários sinais: o elevadíssimo número de compradores de raspadinhas e jogadores compulsivos do Euromilhões que, em vez de tentar poupar, gastam o que têm e o que não têm; a forma como políticos relevantes falam na necessidade de gastar todo o PRR em vez de exigir que seja bem gasto. Aliás, só um desfasamento grave entre a realidade e um sentimento de riqueza onírica pode explicar que, tendo entrado na CEE em 1986 e recebido centenas de milhões de euros em apoios financeiros desde então, a riqueza de Portugal não ultrapasse ainda hoje os 83% da média europeia. E o nível de pobreza entre os portugueses é ainda tão elevado e difícil de compreender que um estimado amigo me comentava há poucas semanas que “entre nós, a pobreza parece ser mais um traço genético, de tal modo é sentida por tantos, quase inelutavelmente; parece que os restantes apenas lutam para não ser pobres também.”

Se me parece evidente que o grau de pobreza é resultado de políticas públicas, não pode deixar de ser essa mesma pobreza que, em grande parte, é responsável pela continuidade de hábitos e crenças que já há muito deviam estar no caixote de lixo da História.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  13 de Janeiro de 2025