segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Uns e outros

 Tornou-se um lugar-comum, embora frequentemente usada por populistas, a afirmação de que há, em Portugal, uma Justiça para ricos e outra para pobres. Infelizmente, a realidade aí está para o provar, com uma frequência maior do que seria aceitável.

Uma das diversas causas para que essa percepção seja demasiadas vezes coincidente com a realidade tem a ver com as prescrições que, normalmente, só acontecem em casos conspícuos pelas personalidades ou instituições em causa que se destacam pelo poder político ou económico.

Há poucos dias tomou-se conhecimento de uma decisão do tribunal da Relação de Lisboa que libertou os 11 maiores bancos que operam em Portugal de pagarem coimas que, no total, somariam quase 225 milhões de euros. A aplicação das coimas deveu-se à Autoridade da Concorrência, tendo os bancos recorrido para os tribunais, daí esta decisão da Relação de Lisboa. A decisão da Autoridade da Concorrência deveu-se a uma situação de cartelização dos bancos, que teriam trocado entre si informação sensível entre 2002 e 2013, com vantagens para os bancos e claro prejuízo para os clientes da banca. De acordo com a Relação o caso é para arquivar, embora ainda se vislumbrem eventuais possibilidades de recurso por parte da Autoridade da Concorrência e da Procuradoria. De notar que os bancos com maiores coimas seriam a CGD e o BCP. Qual a razão apontada pela Relação para esta decisão? Mais uma vez a prescrição do processo. A decisão não foi unânime, mas o principal está à vista. A matéria de facto estava provada, o que falhou foi o procedimento judicial que não permitiu decisão a tempo para punir os infractores.

A garantia de existência de uma sã e livre concorrência é fundamental para dar aos simples cidadãos a possibilidade de verdadeira escolha com garantia de que não está a ser enganado nos preços que lhe são apresentados nos diversos produtos ou serviços que tem de comprar. Tal como a ASAE é fundamental para que o bife no prato tenha garantia de qualidade numa economia tão complexa como é a actual, o papel da Autoridade da Concorrência defende-nos de más práticas e das mais diversas cartelizações, num tempo em que até a inteligência artificial ajuda os prevaricadores. Mas não só. A concorrência é a base da inovação e consequente crescimento sustentado da economia.

Se empresas com a responsabilidade dos bancos, de cuja actividade ninguém pode hoje fugir entram pelos caminhos detectados pela Autoridade da Concorrência e conseguem escapar às consequências, algo vai muito mal e tem de ser corrigido. A Lei da Concorrência data de 2012 e já sofreu quatro alterações desde então. Contudo, raros são os casos levados pela Autoridade a Tribunal que terminam com a condenação dos acusados. Este, da banca, será apenas mais um. Sem colocar em causa a sua independência, será que a Autoridade constrói bem os processos? Dispõe da capacidade técnica e humana para analisar e levar a bom termo os processos numa área tão complexa e de difícil? A legislação do processo penal e a própria organização dos tribunais está adaptada a estes tempos em que o dinheiro dá a volta à Terra em milésimos de segundo em volumes extraordinários?

Vivemos tempos extraordinários em que as televisões nos mostram todas as tragédias em directo, em que governantes não podem ter tido vida económica antes de chegarem ao poder e em que o candidato militar à presidência parece estar ainda no PREC em que se imaginava que o lugar político puro (e, claro, inexistente) estava entre o socialismo e a social-democracia, seja lá o que forem nos nossos dias.

A Justiça é o último reduto da Democracia e o que defende a sociedade das mais diversas malfeitorias. Mas quem faz as leis aplicadas pelos tribunais é o poder político na sua vertente legislativa. Poder este que reside na Assembleia da República. Vale a pena pensar nisto.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Fevereiro de 2025

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Europa numa encruzilhada

 A atitude de Trump ao ligar directamente a Putin colocando como adquiridos alguns dos principais objectivos russos que deram origem à invasão da Ucrânia, faz agora três anos, deveria fazer pensar todos aqueles que acusavam os falcões americanos e europeus de serem responsáveis por aquela invasão. Tratar-se-ia, segundo eles, de mais uma cedência política dos países ocidentais à indústria de armamento americana e europeia. Putin não teria nada a ver com isso, estando apenas a tratar dos interesses russos. Interesses legítimos que abrangeriam a integração do território ucraniano, georgiano, etc. na sua soberania, de onde nunca teriam saído, não tivesse ocorrido a pior tragédia do sec. XX, como Putin classifica o fim da União Soviética. Quem assim pensava deve agora estar um pouco baralhado ao ver os EUA pela mão de Trump a passarem para o seu lado e a abandonarem a Ucrânia. Para Trump trata-se de um puro negócio, enquanto para Putin os objectivos são estratégicos e visam desfazer a União Europeia para a Rússia poder reinar no Leste europeu a seu belo prazer como aconteceu até 1989.

No seu primeiro mandato Trump fez muito barulho, mas na realidade pouco incomodou a ordem internacional estabelecida, apenas obrigando os parceiros da NATO a gastar um pouco mais nas despesas da Aliança algo, aliás, perfeitamente compreensível. Agora não se sabe ainda para onde irá Trump em concreto. Mas teme-se o pior, isto é, que a ordem estabelecida nos últimos 80 anos seja estilhaçada. Deve-se recordar que na Segunda Grande Guerra os EUA vieram salvar a Europa do jugo nazi, mas só o fizeram depois de Hitler lhes ter declarado guerra em 11 de Dezembro de 1941, entusiasmado com o sucesso do ataque japonês a Pearl Harbour ocorrido quatro dias antes. O isolacionismo dos EUA não é novidade, é mesmo uma normalidade que decorre da sua dimensão.

A Europa está num ponto de viragem exigente e tem de se preparar para decisões difíceis, mas importantes. Se considera, como deve ser, que a Ucrânia é um país europeu tem de se preparar para enfrentar a Rússia política, económica e militarmente. Com os EUA de fora a tratar dos negócios terá de ser a Europa a abrir a porta da União à Ucrânia e a preparar a sua entrada na NATO ou na nova aliança de defesa sem os EUA que, com alguma probabilidade, surgirá a curto prazo. Se mostrar fraqueza, acontecerá certamente a repetição dos anos 1937/38 em que os líderes europeus imaginavam poder conter Hitler com conversações enquanto aquele já preparava a Alemanha para a guerra e perseguia e enviava para campos de concentração quem quer que lhe manifestasse a mínima oposição. Claro que o ideal seria aguardar pelo fim do mandato de Trump, mas nem se sabe se o seu sucessor será mais sensato do que ele, nem Putin tem idade para aguardar muito mais tempo pelo ressurgimento do Império Russo por que almeja.

Apesar de Aldous Huxley ter escrito “que os homens não aprendem muito com as lições da História é a mais importante de todas as lições que a História tem para ensinar”, para alguma coisa o conhecimento da História nos servirá. E, nós europeus, temos uma História já tão longa que nunca a podemos perder de vista nas nossas opções.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Fevereiro de 2025

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Alterar a “Lei dos Solos” à boleia da falta de habitação

 

Se há característica (diria defeito) que é geralmente atribuída aos portugueses é a sua incapacidade de planeamento. No que diz respeito à ocupação do território, isso é particularmente evidente.

Tal deve-se a diversos factores, mas sobretudo à falta crónica de ordenamento do território durante muitas dezenas de anos, sobretudo a partir da década de 60 do século XX, quando o desenvolvimento do país se começou a acentuar. Como, por essa altura, se inventou a figura do loteamento sem que antes ou simultaneamente se desenvolvessem planos de urbanização, o desastre urbanístico espalhou-se pelo território nacional.

A situação atingiu tais proporções que o poder político nacional não teve outro remédio, na passagem dos anos 80 para os anos 90, senão obrigar os municípios a adoptar um instrumento de planeamento do território mínimo, os chamados Planos Directores Municipais (PDM’s). Digo obrigar com toda a propriedade, porque o Governo de então teve de ameaçar os municípios que não tivessem PDM aprovado até uma determinada data com corte das transferências financeiras do Estado

Nos PDM’s preveem-se determinadas áreas de protecção onde não se deve construir, como Reserva Agrícola ou Reserva Ecológica. Essas áreas são determinadas tecnicamente e não politicamente e percebe-se porquê: entre outras situações, todos nos lembramos daquelas tragédias em que habitações legais são destruídas porque construídas em zonas de cheia ou mesmo junto a rios e ribeiras, quando há chuvas mais fortes, tantas vezes com perda de vidas.

Recentemente o Governo publicou um Dec. Lei, entretanto entrado em vigor dado que a AR deliberou pela sua não revogação, que permite lotear solos rústicos, transformando-os em urbanos, onde portanto se poderá construir. O motivo apontado para esta alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial a que se tem chamado “nova lei dos solos” é a necessidade de responder à gritante falta de habitação.

Embora se justifique com motivos, à primeira vista racionais, trata-se de um ataque ao planeamento do território que, daqui a uns anos será apontado como outro erro urbanístico como tantos do passado recente e já nada haverá a fazer. Na realidade, a área em que já é autorizado construir é mais que suficiente e o argumento do preço também não colhe: estamos num mercado livre e aberto e nada impede a valorização dos terrenos com utilização entretanto alterada. Acresce que serão necessárias mais infraestruturas que irão onerar permanentemente as despesas correntes dos municípios.

Se há, como se percebe, um problema de oferta de habitação em certas zonas do país, em particular as áreas metropolitanas, que o Estado o assuma e encontre soluções fortes e capazes e não remendos que comprometem as gerações futuras e a sustentabilidade urbana. Como, por exemplo, adoptar a figura da “expropriação sistemática” que permitiu há décadas o desenvolvimento de Lisboa de uma forma que ainda hoje é um exemplo.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 de Fevereiro de 2025

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Do mal absoluto

Assinalou-se na semana passada o Dia Internacional das Vítimas do Holocausto com uma cerimónia no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau em que participaram alguns dos últimos sobreviventes, já que a libertação do campo pelo exército soviético ocorreu há oitenta anos. Dos cerca de seis milhões de judeus vítimas do nazismo, estima-se que mais de um milhão foram assassinados em Aushwitz.

Devo dizer que nunca me atrevi a visitar nenhum dos campos de concentração nazis, embora tenha amigos próximos que o fizeram e comigo partilharam a extrema impressão que lhes causou essa visita. Talvez por isso mesmo nunca o tenha feito até porque, sendo português e beirão, sei perfeitamente que alguma ascendência judaica certamente terei.

Já por várias vezes abordei o nazismo, as suas origens, a sua ideologia e as trágicas consequências para a humanidade que daí vieram. Não é fácil entender como seres humanos levaram a cabo tais barbaridades, só tendo uma classificação para tal, como sendo o “mal absoluto”, que chega a não ter explicação. A filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt debruçou-se sobre esta questão tendo aventado uma explicação algo perturbadora e mesmo assustadora para o que se passou na Alemanha nos anos 30 e 40 durante o nazismo. Ao acompanhar o julgamento de Eichmann, Hannah Arendt concluiu que, em determinadas condições de massificação social, as pessoas comuns podem desenvolver uma indiferença moral que lhes permite fazer coisas em obediência a ordens, que em condições normais achariam impensáveis, quanto mais realizáveis por elas próprias. Daí a sua expressão “a banalidade do mal”, que se tornou célebre, mas que a própria comunidade judaica teve dificuldade em aceitar, por se poder confundir com uma desculpabilização do mal praticado e consequente desresponsabilização dos perpetradores da barbaridade que se conhece

O Holocausto deve ser sistematicamente recordado, porque o que sai da memória pode ser facilmente apagado da História. E é evidente o regresso e difusão do antissemitismo, havendo mesmo muitas pessoas que negam a existência do Holocausto. Bem andou o Gen. Eisenhower quando organizou uma visita ao campo de concentração de Gotha. Além de chamar jornalistas e fotógrafos para reportarem ao mundo inteiro a realidade dos campos de concentração nazis, obrigou os civis alemães moradores dos arredores a testemunharem com os seus próprios olhos o que o regime alemão ali tinha feito. Como explicação para obrigar a ver, cheirar e ouvir testemunhos vívidos, Eisenhower afirmou ter a certeza de que, dentro de poucos anos, haveria muita gente a negar que aquele horror tivesse realmente acontecido. E, como se vê hoje, tinha inteira razão.

Quer se concorde ou não com a tese de Arendt parece ser certo que a existência de determinadas circunstâncias sociais que promovem o medo generalizado condiciona gravemente as escolhas pessoais que envolvam algum risco imediato. Daí a obedecer cegamente a ordens ilegítimas e imorais vai um passo que, demasiadas vezes, se verifica ser fácil de dar.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em  3 de Fevereiro de 2025

 

Reféns, Sr. Presidente? A sério?

 No meio das centenas de “ordens executivas” que equivalem a decretos presidenciais e que foram a marca da sua tomada de posse, o novo Presidente dos EUA assinou um decreto a perdoar pessoas condenadas em tribunal pelo ataque de 6 de Janeiro de 2021 ao Capitólio. Como justificação, adiantou que essas pessoas, a quem chamou reféns, apenas protestavam contra a suposta viciação das eleições presidenciais de 2020, nas quais Trump perdeu contra Biden. Recordo que em todos os Estados na altura referenciados por Trump como locais de batota nos resultados se concluiu judicialmente não ter ocorrido nada disso, tendo as eleições sido limpas. E, no entanto, o novo Presidente americano continua a usar esse argumento, agora para libertar os criminosos que fizeram o que todos nós assistimos em directo pela TV durante horas: um assalto violento ao Capitólio, destruindo o que lhes apeteceu, agredindo polícias e quem se lhes opusesse e provocando mesmo várias mortes.

Acredito que, no meio dos múltiplos decretos presidenciais, esta ordem tenha passado relativamente despercebida e mesmo tida como irrelevante perante a importância política, social e económica de todo o pacote que corresponde a um verdadeiro comportamento disruptivo para com o passado recente. Mas esta decisão, só por si, basta para definir por completo a personalidade do novo. Expõe o entendimento de que está autorizado a exercer o poder para praticar tudo o que lhe parecer defender os seus interesses.

Não vou abordar os temas de política exclusivamente interna dos EUA, já que Donald Trump ganhou as eleições de forma absoluta e tem, portanto, toda a legitimidade para aplicar as políticas que anunciou na sua campanha.

Mas, como europeu, há alguns aspectos que não posso deixar de abordar. Desde logo, Trump mostrou, no seu discurso, que a Europa é para si uma inexistência, ao não se lhe referir uma única vez. Anunciou ainda o estabelecimento de tarifas sobre os produtos europeus exportados para os EUA, queixando-se de que os europeus não compram os carros americanos, enquanto os carros europeus são bem vendidos na América. Como ele muito bem sabe, sendo empresário, ninguém é obrigado a comprar algo mau tendo ao lado uma boa alternativa e isso é a base da economia de mercado que promove a inovação e a qualidade. As tarifas têm o resultado contrário ao que ele anuncia como sendo garantido. E quem pagará tudo isso serão os consumidores americanos.

No meio de tudo isto há, no entanto, várias conclusões a tirar e com consequências sérias para os europeus, que não podem ser escamoteadas pelos nossos responsáveis políticos. A sociedade liberal, como a conhecíamos, vai ser colocada seriamente em causa e desta vez não é pelos seus velhos inimigos, os comunistas. A Europa vai deixar de ter o guarda-chuva americano na defesa e vai ter de olhar para o resto do mundo de forma adulta e responsável. E vai ter de se organizar, já não como uma super-burocracia, mas como uma entidade autónoma e responsável, política, económica e militarmente.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 de Janeiro de 2025