segunda-feira, 4 de maio de 2015

“Ninguém escreve ao coronel”



Todos nós teremos lido livros ao longo da vida que, não sendo daquelas obras de referência reconhecidas como geniais, apesar de tudo ficam numa zona do limbo da memória saltando para o consciente, por força de um estímulo exterior. Uma dessas “minhas” obras é um pequeno livro de Gabriel Garcia Marquez, que relata um conto chamado “Ninguém Escreve ao Coronel”. É anterior ao seu gigantesco “Cem Anos de Solidão” que lhe veio a dar um reconhecimento universal. Relata a vida de um homem idoso e da sua mulher, que vivem em grande pobreza e ansiedade na espera por uma carta que nunca mais chega, enquanto fazem todos os esforços para que as outras pessoas não se apercebam da sua pobreza extrema. A capacidade de descrição de situações e de transmissão dos sentimentos profundos e muito humanos dos personagens é já indicativa do grande escritor que viria a ser Gabriel Garcia Marquez.
Na minha memória pessoal ficou registada uma situação muito concreta deste conto, para além da descrição de pobreza, que de facto aparece em muitas outras obras literárias de grandes autores, desde Zola a Mark Twain e mesmo no cinema recordando aqui, a este propósito, Charlie Chaplin.
O personagem principal, o Coronel, todas as sextas feiras ia à chegada da lancha que trazia o correio à ilha onde vivia para saber se uma carta que aguardava tinha finalmente chegado. Para, mais uma vez, saber que não havia carta para ele, isto é, que ninguém lhe tinha escrito.

E que carta era esta que o Coronel, aos 75 anos de idade, continuava a aguardar ansiosamente? Era a carta que lhe comunicaria finalmente a atribuição da pensão que lhe era devida pela sua participação na revolução, quando teria uns 20 anos. Trinta e três anos antes, o Governo tinha decidido atribuir uma pensão aos veteranos de guerra, mas como não tinha dinheiro para todos, tinha instituído um sistema de filas de espera. Desde essa altura, o Coronel aguardava que a fila atingisse finalmente o seu número, o que lhe seria comunicado pela tão esperada carta.
Foi esta atitude de espera angustiada, mas simultaneamente resignada, dado o Coronel nada fazer para ultrapassar a sua miserável situação, que me impressionou nesta pequena novela, a ponto de ficar gravada na minha memória. Isso e a dependência mental e mesmo física de algo que fez no passado e que no presente apenas valia pelo seu simbolismo, no caso representado pela pensão.
Não sei se foi o posto militar, se foi a demonstração de dependência do passado, sem capacidade para o ultrapassar face às novas gerações e a um presente tão diferente, que as atitudes recentes do Coronel Vasco Lourenço me trouxeram à memória o velho Coronel a quem ninguém escrevia. Vasco Lourenço teve um papel histórico e importante na História da Revolução do 25 de Abril. Essencialmente deve-se-lhe um contributo essencial para, no 25 de Novembro de 1975, recolocar Portugal no caminho da Democracia, acabando com as tentativas revolucionárias totalitárias que tentavam estabelecer em Portugal uma república socialista contra a vontade da esmagadora maioria dos portugueses manifestada nas eleições de 25 de Abril de 1975. 
É a militares como Vasco Lourenço, Ramalho Eanes, Jaime Neves, Vítor Crespo, Melo Antunes ou Pinheiro de Azevedo, entre outros, que devemos a pacificação do país e o estabelecimento da Democracia. Democracia que obriga ao respeito pela vontade popular, mesmo quando não concordamos com quem é eleito nas urnas, seja de esquerda, seja de direita. A luta política, legítima, não permite que se use a própria democracia como arma, como se esta tivesse donos e outros apenas autorizados a ir a votos. O velho Coronel de Garcia Marquez ficou toda a vida preso ao reconhecimento do que tinha feito na juventude. O Coronel Vasco Lourenço parece igualmente preso àquilo que fez no seu passado, não conseguindo perceber o presente que está aí, com coisas boas e coisas menos felizes; os jovens entretanto nascidos e que não sabem quem ele é e para o que contribuiu há 40 anos, vivem em Liberdade desde que nasceram e são a melhor carta que ele poderá receber. E recebe-a todos os dias, ao contrário do outro velho Coronel, gasto, seco, pobre e amargurado à espera de um futuro que, para ele, nunca chegará, porque se recusa a viver o próprio presente.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Maio de 2015

segunda-feira, 27 de abril de 2015

JULGAMENTO DE PÁRIS



Governar é fazer escolhas permanentemente. É com o seu próprio quadro de fundo de ideias políticas e perante as diversas circunstâncias externas e internas que os governos tomam as suas decisões que se reflectem na vida dos cidadãos. Num quadro democrático, as decisões são balizadas pelas constituições e instituições de controlo e fiscalização garantia dos necessários equilíbrios de poderes mas também, quanto mais profundas e enraizadas estão as convicções de liberdade e responsabilidade, pela própria opinião pública.Há igualmente tratados e convenções internacionais que vinculam os países signatários, criando obrigações e estabelecendo regras quanto a múltiplas áreas que vão dos direitos humanos à proliferação de armas nucleares e às regras do comércio mundial. Mais limitados ainda se encontram os países que escolhem pertencer a uniões internacionais que estabelecem regras que limitam a sua própria soberania, como ela é habitualmente definida; ainda mais limitados se encontram os governos de uniões como a União Europeia que possuem uma moeda comum, o que limita de forma drástica todo um quadro de escolhas na área da política cambial e das taxas de juros.
O governo grego, saído das eleições de 25 de Janeiro passado, encontra-se perante a necessidade de fazer escolhas muito sérias para o futuro da Grécia, mas também para o destino da União Europeia e dos países que a compõem. Após dois resgates e consequente política de austeridade, os gregos deram ao Syriza a possibilidade de aplicar as suas políticas, que o partido liderado por Alexis Tsipras garantia poderem acabar com a odiada austeridade, colocando a Grécia no caminho da recuperação económica enquanto repunha as medidas sociais. 

Claro que, pertencendo a uma União de países com diferentes visões e interesses próprios em que todos os governos têm que responder perante os seus próprios eleitorados, o novo governo grego encontrou enormes dificuldades em fazer vingar os seus próprios objectivos, por mais apelativos e originais que fossem os métodos utilizados. Encontra-se agora perante a necessidade de fazer escolhas, para o que terá de ter a coragem de aceitar as respectivas consequências. Até porque a situação financeira do estado grego é tão desesperada que o governo transferiu para o tesouro todas as reservas detidas pelos organismos do estado. A opção de tentar encontrar aliados externos à EU com vontade e capacidade para fornecer o necessário financiamento não deu resultados, pelo que já está retirada. Restam as negociações perante os credores como o FMI que exigem o pagamento dos empréstimos e perante a União Europeia refém das suas próprias regras e dos interesses dos diversos países que a compõem. Escolha tanto mais difícil, quanto o tempo continua a passar, os prazos de pagamento esgotam-se e a esmagadora maioria dos gregos pretende manter-se no Euro.
Também para estas situações a própria mitologia grega nos traz lições importantes. O Julgamento de Páris conta como o jovem príncipe troiano se viu obrigado a escolher a mais bela entre as três deusas Hera, Atena e Afrodite. Perante Páris, cada uma das deusas fez por ganhar o julgamento. Assim, Hera ofereceu-lhe a Ásia e a Europa, Atena prometeu torná-lo mais sábio; já Afrodite prometeu oferecer-lhe o amor da mulher mais bela do mundo. Páris fez o seu julgamento e escolheu Afrodite como a mais bela das três deusas. No entanto, a mulher mais bela de todas que lhe foi oferecida era Helena, casada com Menelau, o que veio a dar origem à guerra de Tróia com todas as suas consequências, nomeadamente a perda da sua vida e a destruição da sua nação.
As escolhas têm sempre consequências. Mesmo deixar passar o tempo pode significar a diferença entre o sucesso e o completo desastre. O governo grego está perante uma situação para a qual tem de escolher a solução, não adiantando atirar com as responsabilidades para os outros. As consequências externas das suas opções nestas semanas cruciais são importantes para os parceiros da União que têm também a obrigação de levar ao limite os esforços para ir ao encontro de soluções aceitáveis. Mas as consequências para os próprios gregos serão imensamente mais graves, se o julgamento de Tsipras e o seu governo não for o mais adequado.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 27 Abril 2015

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Construir a Paz



Há quem pense que a paz é a ausência de guerra. No entanto, pode-se estar num determinado momento a gozar a paz, enquanto alguém prepara afanosamente uma guerra inevitável, tal como o fim das guerras visíveis não significa que se entre em paz. Do conhecimento de que a realidade é mesmo assim, duas conclusões se costumam tirar. A primeira é que, se queremos a paz, temos que estar preparados para a guerra; mesmo quando adormecemos numa paz tranquilizadora que nos leva a diminuir os gastos militares, o melhor é ter aliados que nos garantam apoio, no caso de virmos a necessitar dele. A segunda é que, por mais que isso nos custe, a paz não surge normalmente por si mesma; para existir, é necessário construi-la, dedicar-lhe esforços e energia.
O “médio-oriente” tem sido fonte de graves conflitos com consequências humanitárias graves, como aliás sucede hoje em parte da Síria e do Iraque onde um bando de islamitas fanáticos tenta, com os meios do século XXI, implantar um regime puramente medieval a que chama “califado”.

Um dos países mais importantes da região é o Irão. Quer do ponto de vista de dimensão, de localização e até mesmo histórico, o Irão ou como era antes conhecido, a Pérsia, é um país incontornável no delicado e extremamente complicado xadrez do médio-oriente. Que se pode igualmente tornar muito perigoso. Após a instauração da República Islâmica em 1979 sob a liderança xiita do ayatollah Khomeini, o Irão fechou-se numa teocracia radical, alterando completamente o modo de vida dos iranianos até aí ocidentalizado. O Irão, que em 1968 havia subscrito o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, iniciou então um ambicioso programa nuclear, que muitos temeram ter como fim último, não a utilização pacífica da energia nuclear, mas a produção de armas nucleares. Alguns dos periclitantes equilíbrios do “médio-oriente”, tendo em conta a reduzida dimensão de Israel e o permanente conflito entre xiitas e sunitas, passam por o xiita Irão ser uma potência económica comparável aos seus vizinhos sunitas, designadamente a Arábia Saudita e por não surgirem novos países com capacidade militar nuclear. Por isso, a partir de 2002, quando os rumores sobre os esforços iranianos para conseguir a bomba atómica se tornaram em indícios sérios de que tal estava a suceder, o ocidente iniciou um programa de sanções económicas contra ao Irão que se reflectem hoje seriamente no modo de vida dos iranianos.
O actual presidente iraniano é Hassan Rohani, que participou nas antigas negociações nucleares e que foi eleito com promessas de compromissos sérios com a comunidade internacional, com o objectivo de acabar com o isolamento iraniano e com as sanções económicas de que os iranianos estão cansados. Pelo seu lado, o presidente Barack Obama decidiu juntar a comunidade internacional e aproveitar a nova situação interna no Irão, mais favorável a negociações.
Depois dos necessários contactos informais e secretos prévios, iniciaram-se as negociações oficiais entre o Irão e o chamado grupo P5+1 constituído pelos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (EU América, França, Grã Bretanha, China e Rússia) mais a Alemanha que já fazia parte do grupo europeu que antes tinha conduzido negociações com o Irão.
O objectivo essencial do P5+1 era evitar que o Irão venha a desenvolver armamento atómico ou, pelo menos, que o desenvolva de forma clandestina nos próximos anos.
As negociações políticas, com as dificuldades que se podem adivinhar, chegaram a bom termo há cerca de uma semana. Restam pormenores técnicos, apesar de tudo ainda muito difíceis de acertar, até à data fixada de 1 de Julho para a assinatura do Acordo que, a ser atingido, será histórico e provará, uma vez mais que, se queremos a Paz, temos que trabalhar por ela.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 20 de Abril de 2015

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Presidenciais a “destempo”



Que me lê deverá estar já a pensar, e bem, que não sendo este o tempo das eleições presidenciais já que antes vamos ter as legislativas, não deveria estar a escrever estas linhas sobre o assunto. Mas, como diz a Poeta, “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”, o que me perdoará a contradição.
Alguns possíveis candidatos começaram já a colocar-se no terreno, como se costuma dizer. Henrique Neto já apresentou mesmo a sua candidatura e começa claramente a mostrar ao que vai, enquanto vai colhendo os seus apoios. Outros vão surgindo como eventuais candidatos e outros ainda vão sendo lançados para as páginas dos jornais, num autêntico frenesim.
Mas outra possível candidatura tem vindo a apresentar-se, gerando ondas de defesas e ataques com teores tais que me motivaram a escrever sobre as presidenciais, ainda que a “destempo”. A possível candidatura de Sampaio da Nóvoa surgiu apadrinhada por dois presidentes da República e só esse facto extraordinário coloca-a num patamar diferente das outras. 

Sampaio da Nóvoa foi lançado por Cavaco Silva e é claramente acarinhado por Mário Soares. De facto, Sampaio da Nóvoa foi introduzido nestas lides por Cavaco Silva, ao convidá-lo para discursar no 10 de Junho de 2012. Até aí, fora do meio académico era um ilustre desconhecido, sendo a partir desse discurso que, para muita gente, começou a ser “presidenciável”. Quanto ao carinho que Mário Soares nutre por esta candidatura, ele é público e notório.
Sampaio da Nóvoa tem a vantagem de ser novo no panorama político, o que é sempre refrescante. Mas tem a desvantagem de as suas declarações poderem serem mal interpretadas, precisamente porque é pouco conhecido, sendo de toda a conveniência que comece a esclarecer ao que vem, em concreto e não apenas por vagas afirmações. Nos seus discursos recentes encontrei duas referências que, parecendo óbvias, o não são de forma nenhuma e exemplificam o que quero dizer.
Numa delas afirmou que, ao candidatar-se, pensa em Eanes. Pois bem, o que significará esta afirmação? Ao pensar em Eanes recordo-me do 25 de Novembro de 1975 e da sua candidatura subsequente à presidência da República; mas lembro-me também da sua irritação aquando da tomada de posse de Sá Carneiro como primeiro-ministro; e lembro-me da criação do PRD patrocinada pelo então presidente da República, basicamente contra o partido Socialista; lembro-me também de que nos últimos anos estudou na Universidade de Navarra em Espanha, o que não deixa de ser significativo. Quando Sampaio da Nóvoa se refere a Eanes, de que é que se lembra em concreto? É que não é indiferente, do ponto de vista político, ter Ramalho Eanes como referência numa ou noutra das numerosas atitudes do ex-presidente.
Sampaio da Nóvoa afirma que há demasiados portugais dentro de Portugal. Claro que geograficamente Portugal é um país diverso, sempre foi, e isso é mesmo uma das nossas vantagens sociais e culturais. As próprias populações são profundamente diferenciadas, com origens históricas que foram bem estudadas e explicadas por José Mattoso. 

Sendo Sampaio da Nóvoa ele próprio historiador, terá eventualmente esse aspecto na ideia. A diferença entre o litoral e o interior é um problema grave, que está a levar ao surgimento de dois portugais bem diversos. A Madeira e os Açores constituem igualmente portugais bem diferentes das Beiras ou do Algarve. Socialmente, há também diferenças notórias; serão as classes sociais outros tantos portugais?
Enfim, estou convencido que todo este alarido é artificial, enquanto se aguarda o momento da verdade, que será quando Guterres afinal anunciará a sua candidatura independente de partidos, após o término do seu mandato na ONU e depois das legislativas. Convinha, no entanto, que os “proto-candidatos” a “destempo” se preocupassem em mostrar a substância das suas candidaturas, em vez de se esconderem em frases e palavras bonitas que não significam nada, por poderem significar tudo e o seu contrário. Os portugueses certamente agradecerão.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 13 de Abril de 2014