Todos nós teremos
lido livros ao longo da vida que, não sendo daquelas obras de referência
reconhecidas como geniais, apesar de tudo ficam numa zona do limbo da memória
saltando para o consciente, por força de um estímulo exterior. Uma dessas
“minhas” obras é um pequeno livro de Gabriel Garcia Marquez, que relata um
conto chamado “Ninguém Escreve ao Coronel”. É anterior ao seu gigantesco “Cem
Anos de Solidão” que lhe veio a dar um reconhecimento universal. Relata a vida
de um homem idoso e da sua mulher, que vivem em grande pobreza e ansiedade na
espera por uma carta que nunca mais chega, enquanto fazem todos os esforços
para que as outras pessoas não se apercebam da sua pobreza extrema. A
capacidade de descrição de situações e de transmissão dos sentimentos profundos
e muito humanos dos personagens é já indicativa do grande escritor que viria a
ser Gabriel Garcia Marquez.
Na minha memória
pessoal ficou registada uma situação muito concreta deste conto, para além da
descrição de pobreza, que de facto aparece em muitas outras obras literárias de
grandes autores, desde Zola a Mark Twain e mesmo no cinema recordando aqui, a
este propósito, Charlie Chaplin.
O personagem
principal, o Coronel, todas as sextas feiras ia à chegada da lancha que trazia
o correio à ilha onde vivia para saber se uma carta que aguardava tinha
finalmente chegado. Para, mais uma vez, saber que não havia carta para ele,
isto é, que ninguém lhe tinha escrito.
E que carta era
esta que o Coronel, aos 75 anos de idade, continuava a aguardar ansiosamente?
Era a carta que lhe comunicaria finalmente a atribuição da pensão que lhe era
devida pela sua participação na revolução, quando teria uns 20 anos. Trinta e
três anos antes, o Governo tinha decidido atribuir uma pensão aos veteranos de
guerra, mas como não tinha dinheiro para todos, tinha instituído um sistema de
filas de espera. Desde essa altura, o Coronel aguardava que a fila atingisse
finalmente o seu número, o que lhe seria comunicado pela tão esperada carta.
Foi esta atitude
de espera angustiada, mas simultaneamente resignada, dado o Coronel nada fazer
para ultrapassar a sua miserável situação, que me impressionou nesta pequena
novela, a ponto de ficar gravada na minha memória. Isso e a dependência mental
e mesmo física de algo que fez no passado e que no presente apenas valia pelo
seu simbolismo, no caso representado pela pensão.
Não sei se foi o
posto militar, se foi a demonstração de dependência do passado, sem capacidade
para o ultrapassar face às novas gerações e a um presente tão diferente, que as
atitudes recentes do Coronel Vasco Lourenço me trouxeram à memória o velho
Coronel a quem ninguém escrevia. Vasco Lourenço teve um papel histórico e
importante na História da Revolução do 25 de Abril. Essencialmente deve-se-lhe
um contributo essencial para, no 25 de Novembro de 1975, recolocar Portugal no
caminho da Democracia, acabando com as tentativas revolucionárias totalitárias
que tentavam estabelecer em Portugal uma república socialista contra a vontade
da esmagadora maioria dos portugueses manifestada nas eleições de 25 de Abril
de 1975.
É a militares como Vasco Lourenço, Ramalho Eanes, Jaime Neves, Vítor
Crespo, Melo Antunes ou Pinheiro de Azevedo, entre outros, que devemos a
pacificação do país e o estabelecimento da Democracia. Democracia que obriga ao
respeito pela vontade popular, mesmo quando não concordamos com quem é eleito
nas urnas, seja de esquerda, seja de direita. A luta política, legítima, não
permite que se use a própria democracia como arma, como se esta tivesse donos e
outros apenas autorizados a ir a votos. O velho Coronel de Garcia Marquez ficou
toda a vida preso ao reconhecimento do que tinha feito na juventude. O Coronel
Vasco Lourenço parece igualmente preso àquilo que fez no seu passado, não
conseguindo perceber o presente que está aí, com coisas boas e coisas menos
felizes; os jovens entretanto nascidos e que não sabem quem ele é e para o que
contribuiu há 40 anos, vivem em Liberdade desde que nasceram e são a melhor
carta que ele poderá receber. E recebe-a todos os dias, ao contrário do outro
velho Coronel, gasto, seco, pobre e amargurado à espera de um futuro que, para
ele, nunca chegará, porque se recusa a viver o próprio presente.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 4 de Maio de 2015