Uma espécie de
vendaval varre as democracias por todo o Ocidente, com a generalização das
ideias da “devolução do poder ao povo”. Depois de décadas de crescimento
económico contínuo que trouxeram um bem-estar generalizado associado a um
período de paz sem par na História da Europa, o desaparecimento da União
Soviética e implosão do bloco comunista fizeram sonhar que o fim da “guerra fria”
significaria o alastrar da paz e da prosperidade a todo o mundo.
Puro engano. Sob o
adormecimento das lideranças europeias, qual Inês descrita por Camões "Estavas,
linda Inês, posta em sossego, de teus anos colhendo doce fruto, naquele engano
da alma, ledo e cego, que a fortuna não deixa durar muito”, foi germinando um
monstro perigoso que surge hoje à luz do dia de forma ameaçadora.
Durante anos os
cidadãos foram sendo bombardeados com críticas ao “sistema”, à globalização e à
organização económica e política. As críticas deixaram de ter uma relação evidente
com as diversas opções ideológicas. Foi criado um caldo de insatisfação geral
no qual vivem os mais diversos grupos contestatários sem qualquer solução
concreta para os problemas que, esses sim, são reais e bem sentidos pelas
pessoas comuns.
As propostas
alternativas ou pura e simplesmente não existem, ou são disfarçadas debaixo uma
linguagem que apela sistematicamente aos instintos mais baixos e primários como
sejam a inveja, o racismo, o isolamento e a intolerância em geral. A mentira,
que nunca andou muito afastada do discurso político, pega nos factos e envolve-os
em interpretações distorcidas naquilo a que chamam “narrativas”, chegando ao
que os estudiosos chamaram “pós-verdade”.
Os cidadãos mais
conscientes da realidade agarram-se ao que lhes pode dar informação e armas
para se defenderem. Não será por acaso que, nas últimas semanas, a obra “1984”
de George Orwell que apresenta aos leitores a famosa visão distópica que incluiu
uma “novilíngua” disruptora da realidade voltou para a lista das mais vendidas.
A Democracia, tal
como a conhecemos, já tem bastantes décadas, embora não tantas como se possa
pensar, se olharmos para as limitações aos direitos de voto a grandes partes da
população em muitos países até já bem dentro do século XX. Apesar disso, foi-se
consolidando o conceito de cidadania, da preocupação pelo “bem comum”, base
fundamental do funcionamento da democracia com respeito pela Liberdade, mas
também da Igualdade, sem o que será letra morta.
O populismo está a
minar os alicerces da Democracia que levou tantos anos a consolidar-se. Vindos
dos extremos políticos, muitos políticos perceberam as fragilidades dos regimes
democráticos, utilizando uma linguagem que se pretende como libertadora dos
sistemas cruzados de protecção, apelando directamente aos eleitores. Quando,
por exemplo, Donald Trump afirma que vai ser “o maior criador de emprego que
Deus já viu”, está obviamente a falar para os americanos dizendo-lhes o que
eles querem ouvir esquecendo que, hoje em dia, a economia está globalizada e
que por cada emprego que artificialmente criar no seu país são muitos empregos
que desaparecem por todo o mundo. Os defensores do “brexit” acenam ao
eleitorado britânico com um Reino Unido “livre e independente” quando, na
realidade, apenas vão conseguir o isolamento económico e político do seu país
que, ao contrário dos seus sonhos delirantes, já não é, há muitos anos, o
Império dominador de meio mundo.
Os populistas não
necessitam de assumir posições ideológicas, substituindo os antigos “ismos” por
apenas um, o populismo. Ao rejeitar sistematicamente as elites e as
instituições políticas, os populistas parecem responder aos anseios das
populações que, ao longo dos anos, foram sendo anestesiadas quanto ao
funcionamento das democracias. Mas, na realidade, estão a criar um vácuo, e
eles sabem-no bem, que será preenchido por algo, dado que a política tem horror
ao vazio.
Há quase cem anos,
depois da guerra civil Lenine colocava os bolcheviques a combater os
esquerdistas num “Terror” que só terminou quando Estaline conseguiu assassinar
Trotsky lá longe, no México; para tal, como sempre, criou um fundamento
ideológico que explicou no seu livro “O esquerdismo, doença infantil do
comunismo”. Hoje, numa época em que se pode estar a assistir ao fim da
democracia tal como a conhecemos, é o populismo que parece surgir como a sua
doença senil. E temos que ter uma clara consciência disso, para nos precavermos
contra o animal perigoso que está a surgir.