Os portugueses não estavam habituados a que a
verdade lhes entrasse pela casa dentro como aconteceu com os relatórios das
Comissões Independentes criadas pela Assembleia da República sobre os incêndios
de Junho e Outubro de 2017. Na verdade, entre a defesa de interesses
partidários mesquinhos e a auto-defesa das estruturas estatais e respectivo
funcionalismo, a dureza da realidade é quase sempre amaciada e transformada de
forma a que não seja verdadeiramente possível encontrar responsabilidades.
Quando estas apesar de tudo têm que surgir, encontram-se processos de
responsabilizar algum desgraçado funcionário menor para arcar com elas.
É por isso uma surpresa que nos surja perante os
olhos um relatório como o produzido pela Segunda Comissão Técnica Independente
sobre os incêndios de Outubro passado, agora apresentado.
A primeira informação a reter é algo de que já
havia uma noção generalizada e tem a ver com a dimensão dos fogos de Outubro;
de acordo com o Relatório, este incêndio foi o “maior registado na Europa até
ao momento e o maior do mundo em 2017, com uma média de 10 mil
hectares ardidos por hora entre as 16:00 do dia 15 de Outubro e as 05:00 do dia
16”. Para isto contribuíram vários
factores meteorológicos dominados pela passagem do furacão “Ophelia”, situação
devidamente prevista com antecedência pelo IPMA.
Mas o Relatório aponta outras causas para que
estes incêndios viessem a ter as trágicas consequências que dá a conhecer: 48
vidas humanas perdidas, 241 mil hectares ardidos, 521 empresas e mais de 4.500
postos de trabalho afectados em 30 municípios.
É o caso da falta de meios para o combate aos
incêndios. Ficou-se a saber: quinze dias antes dos incêndios de Outubro, a ANPC
(Autoridade Nacional de Protecção Civil) pediu à tutela autorização para reforçar
os meios, mas das 105 equipas pedidas, o Governo só autorizou 50; um pedido de reforço de 40 operacionais da Força Especial de Bombeiros foi
recusado; um pedido de reforço de quatro meios aéreos ligeiros, apresentado em
Julho foi recusado; um outro pedido para a locação de quatro aviões anfíbios
médios, precisamente para o período entre 13 e 31 de Outubro foi também
recusado; um pedido feito em Setembro para o reforço de 200 horas de voo
suplementares para duas parelhas de aviões anfíbios médios” foi igualmente
recusado. As recusas do Governo sustentaram-se essencialmente em falta de
“fundamento legal”.
Como tinha acontecido em Junho em Pedrógão, voltaram a verificar-se falhas
do Estado, isto é, parece não se ter aprendido nada com o que então aconteceu.
Não era só a Ministra que era a mesma, a estrutura da Protecção Civil
manteve-se, só tendo sido alterada depois de 16 de Outubro. Apesar dos avisos
meteorológicos, o combate aéreo surgiu muito tarde, dando tempo aos fogos para
progredirem a uma velocidade enorme. O próprio presidente da Câmara de Oliveira
do Hospital reagiu a este Relatório afirmando que “esta tragédia não teria
acontecido se tivéssemos meios aéreos na primeira hora” e ainda que “todos ficaram
abandonados”. As Forças Armadas foram chamadas, para serem deslocadas para
outros locais depois de chegarem aonde lhes tinha sido antes determinado. O
Relatório aborda ainda a desorganização/incompetência no ataque aos incêndios
apontando por exemplo, que “os Postos de Comando Operacional estavam
deficientemente localizados e estavam desfasados na sua dimensão e
complexidade, não conseguindo corresponder às necessidades exigidas pelo ataque
ao fogo”.
Mas o Relatório da CTI2 refere também a possibilidade
de o incêndio inicial na Lousã ter tido origem na queda de uma árvore sobre uma
linha de média tensão, o que remete imediatamente para a questão das
responsabilidades. Ninguém é responsável pelas condições meteorológicas
extremas verificadas nas Beiras naqueles dias fatídicos. Mas a falta de
decisões dos responsáveis políticos nos meses anteriores e mesmo as suas
decisões erradas naqueles dias podem ter tido um papel crucial nas
consequências gravíssimas dos incêndios, a começar pelo número de mortos. Todos
sentimos que a hora é do Ministério Público que, face ao presente Relatório,
parece ter bases mais do que suficientes para proceder às suas investigações e
acusações, se for caso disso. Em Outubro, o Presidente da República devolveu
dignidade ao Estado, com a sua actuação firme mas agora não deve, não pode
permitir que se passe um pano sobre o que se passou naqueles dias de Outubro de
2017.