segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Perplexidade absoluta

 


Os portugueses têm observado com o maior espanto toda a absurda sucessão de problemas com membros do Governo, incluindo a demissão de vários deles. Esse espanto é tão maior quanto o Governo goza de maioria absoluta, pelo que os seus problemas internos não podem ser atribuídos a ninguém estranho ao mesmo, nem sequer à Oposição que, notoriamente, ainda não encontrou o seu caminho com vista a construir uma hipótese de alternância. O caso mais incompreensível foi mesmo a saída de uma secretária de Estado um dia depois de ter ido ao Palácio de Belém para o Presidente da República lhe dar posse. Já a TAP e a sua gestão por parte do Estado, responsável por tal desde a re-nacionalização, foram razão para a demissão de um ministro e dois sec. de Estado; acresce que o ministro em causa era Pedro Nuno Santos, um dos mais notórios membros do Governo, apontado por muitos como o mais importante candidato para substituir António Costa quando este vier a deixar a liderança do PS. Pedro Santos que veio agora reconhecer, sabe-se lá com que objectivo por enquanto escondido, o que antes havia negado, com a justificação inacreditável da observação da «linha do tempo».

Como resultado da perplexidade nacional com a situação, o primeiro-Ministro deu um passo em frente e tirou da gaveta uma solução para evitar a sua repetição futura. E que solução: um questionário de investigação prévia a ser respondido por todos os possíveis governantes por si convidados. E correu outra vez tudo mal. Primeiro, António Costa pretendeu corresponsabilizar o Presidente da República que de imediato lhe lembrou que a escolha dos membros do Governo é uma responsabilidade do primeiro-Ministro e só dele. Depois, o rol das 36 questões que foram objecto de uma aprovação através de uma simples Resolução de Conselho de Ministros é considerado ridículo e até inútil pelos mais diversos sectores, à esquerda e à direita. Mais parece um processo de o próprio primeiro-Ministro se tentar livrar de responsabilidades em casos que eventualmente venham a surgir no futuro, atribuindo-as apenas ao membro do Governo que venha a falhar, mas que foi escolhido politicamente por ele próprio. Com a consequência perversa de afastar personalidades com carreira profissional ou empresarial que, pura e simplesmente, nunca aceitarão responder a tal questionário, ainda que venha a ser destruído mais tarde. A seriedade e a transparência que devem estar no cerne das escolhas dos governantes, que é sempre política, perdem estatuto face à necessidade imperiosa de garantir a pureza judicial e tributária dos cidadãos convidados. Na realidade a única pergunta a fazer aos convidados para governante deveria ser se conhece a legislação das incompatibilidades e se está de acordo com o seu cumprimento. Com alguma ironia, em face do que temos visto e ouvido, talvez caiba acrescentar aqui outra pergunta, que seria a de saber da disponibilidade do futuro governante para mentir aos portugueses. Restará como campo de escolha o exército de prosélitos partidários que, as mais das vezes, não têm qualquer currículo académico, laboral ou empresarial para apresentar, para além da sua carreira laboriosamente construída na jota e no partido.

O desnorte político do país é absoluto. Uma verdadeira caça às bruxas, tendo como objecto os políticos sejam eles governantes, deputados, autarcas ou apenas líderes partidários, atinge o clímax por estes dias, bastando ver as capas dos jornais diários para o verificar. Já não é a política, com a respectiva e necessária escolha de soluções diversas para os graves e imensos problemas nacionais que parece estar em causa. Com raras e honrosas excepções, a competência e capacidade de trabalho estão esquecidas perante a descoberta diária de actuações desastradas e denunciadoras de interesses obscuros que deveriam estar bem afastadas da política. E os responsáveis não são os habituais suspeitos extremistas populistas. Antes políticos profissionais bem ancorados no sistema que se convenceram de que uma maioria absoluta, que em democracia é temporária, lhes permite agir como se fossem donos de tudo. 

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 23 Janeiro 2023

Imagem recolhida na internet

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Primeiro, tomamos Washington, depois Brasília


É demasiado evidente para ser coincidência. Quando se preparava a tomada de posse do presidente eleito dos EUA Joe Biden há dois anos, milhares de apoiantes do presidente/candidato derrotado Donald Trump invadiram de forma aparentemente caótica o Capitólio, casa da Democracia americana. E todo o mundo testemunhou em directo pelas televisões o que se passou. Na sequência de um apelo de Trump para se manifestarem, os seus apoiantes, muitos deles mascarados e outros vestidos da forma mais extravagante apelando a sentimentos retrógrados e violentos, tomaram conta das instalações pela força, destruindo equipamentos e obras de arte e invadindo mesmo gabinetes de representantes e a própria sala do plenário. Enquanto isto se passava, os representantes, congressistas e senadores, tiveram de fugir escondendo-se em gabinetes trancados durante toda a tarde e boa parte da noite, enquanto as forças de segurança tentavam tomar conta da situação, o que demorou muitas horas.

Tudo isto sucedeu porque Donald Trump se recusava a aceitar o resultado eleitoral a que chamava mesmo fraude eleitoral, apelando aos «patriotas» a revoltarem-se para que a «sua» casa Branca não fosse ocupada pelo presidente democrata eleito. Os resultados eleitorais revelaram de facto um país praticamente dividido politicamente ao meio, mas sobretudo, radicalizado de uma forma preocupante num clima que se diria de quase pré-guerra civil, não fora a existência de sólidas instituições. Há mesmo analistas quem defendem que se desenvolveram na sociedade americana fortíssimas franjas evangélicas extremistas dentro do cristianismo, à imagem dos extremistas islâmicos que deturpam a mensagem original de paz da sua religião.


E agora aconteceu algo semelhante em Brasília, no rescaldo da eleição presidencial ganha por Lula em que o anterior presidente Bolsonaro foi derrotado. Depois das eleições Bolsonaro praticamente desapareceu da cena política e nunca reconheceu publicamente que Lula havia vencido, argumentando com fraude eleitoral nunca provada tal como Trump fez, não comparecendo à cerimónia de tomada de posse como é tradição fazer. Poucos dias depois dessa cerimónia alguns milhares de apoiantes do presidente derrotado invadiram o centro de Brasília e ocuparam a Praça dos Três Poderes e os edifícios do Congresso, Planalto e Supremo Tribunal. Tal como tinha acontecido em Washington as forças de segurança demoraram a actuar de uma forma algo incompreensível com a agravante de em Brasília ter sido possível ver polícias em confraternização com os invasores.

Ainda de forma mais visível do que acontecia com Trump, Bolsonaro era apoiado por facções evangelistas extremistas fazendo mesmo dessas ideias a base fundamental das suas opções políticas, ia dizer ideológicas, mas não me parece que o cheguem sequer a ser.

Como todos sabemos, a América do Sul e Central sempre foi pródiga em substituição sucessiva de regimes de esquerda ou de direita através de golpes militares. O Brasil também passou por uma experiência de ditadura militar entre 1964 e 1985 e é agora possível verificar a existência de muitos saudosos desse tempo que esperavam ver a invasão a Brasília ser seguida de um golpe militar, o que não sucedeu.

Os maiores países das Américas, em termos populacionais e económicos, que são os EUA e o Brasil vivem em Democracia e foi possível verificar que as instituições que devem garantir a estabilidade democrática funcionaram nas situações em que estiveram em perigo. Contudo, estas situações não caíram do céu, antes tendo sido consequência de problemas sociais graves que se mantêm. As sociedades americana e brasileira estão divididas praticamente ao meio e as posições de ambos os lados estão perigosamente extremadas em ambos os países.

Cabe aos vencedores terem a capacidade de baixar os níveis de confronto encontrando formas de conciliação social. Tal obrigará a estabelecer pontes com os adversários e aguentar as pulsões vingativas dos seus apoiantes. Para tal terão de ter capacidade para resolver os verdadeiros problemas das sociedades, com seriedade e abandonando populismos extremistas. Se não o fizerem, serão muito provavelmente mordidos pela cobra que nascerá do ovo que estarão a chocar. É o futuro em paz e progresso que o exige.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 16 Jan 2023

Imagens recolhidas na internet

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Observar a realidade


É com os nossos olhos que observamos a realidade que nos rodeia. Por observar entendo o que podemos ver, mas também o que sentimos que resulta da nossa mundividência e da capacidade de sentir que acrescentamos durante a vida à nossa própria maneira de ser. Como dizia Ortega Y Gasset, nós somos nós e a nossa circunstância.

Fruto do que assim vejo surgem estas crónicas semanais que o Diário de Coimbra “generosamente acolhe nas suas páginas” desde há mais de 17 anos. E há muito para observar. A começar pela política, quer a nível nacional, quer mais local ou regional, que a política praticamente tudo determina na nossa vida, principalmente ao vivermos em Democracia em que, não só temos o direito, mas também o dever de participar na vida colectiva o que não se resume a ir depositar o voto na urna aquando das eleições. Infelizmente, nos últimos vinte e tal anos a política não tem sido muito eficaz ou mesmo competente no nosso país e disso se ressente a economia e os bolsos dos portugueses, fundamentalmente em comparação com os nossos parceiros da comunidade europeia. Isto, enquanto despeja em Portugal milhões de euros por dia, todos os dias.

Mas há muito mais para observar à nossa volta. A Cultura faz parte da nossa vida, quer participando em associações culturais, quer assistindo a concertos do mais diverso tipo ou peças de teatro, quer indo a exposições e fazendo visitas a museus ou participando em colóquios. Poucos de nós somos artistas, mas todos podemos apreciar o resultado do trabalho dos que o são, tendo a consciência de que a Arte nos eleva o espírito pela observação do Belo, mas que a Arte anda também normalmente à frente da realização humana, abrindo novos caminhos e iluminando novas perspectivas. Ler livros, muitos! jornais e revistas é imprescindível para conhecer e compreender o outro na sua infinita variedade.

A informação chega-nos hoje muito pela internet, pela pesquisa com motores de busca que nos colocam instantaneamente disponível praticamente tudo o que queremos saber, tendo acabado com as enciclopédias em papel tornadas inúteis pela impraticabilidade da sua actualização, tal é a velocidade de transformação do mundo actual. Mas nem tudo o que se lê na internet é verdade e todos os cuidados com isso são poucos. Em particular, as redes sociais são veículo privilegiado para a disseminação de informação falsa, sendo necessário conferir a adesão à realidade de tudo aquilo que nos aparece no computador. A metodologia utilizada pelas redes sociais, os chamados algoritmos, deve também ser tida em conta já que a utilização dos chamados amigos ou seguidores tende a afunilar pelos interesses comuns, impedindo a livre discussão e o conhecimento de diferentes opiniões. Daí até ao extremismo do “eles e nós” vai um pequeno passo que muitos de nós damos sem dar conta disso.


Mas a internet oferece-nos ainda a possibilidade de nos actualizarmos a nível científico, pelo menos naquele mínimo que todos nós devemos conhecer para entendermos o mundo actual e como podemos prever que será no futuro próximo.

A economia invadiu a nossa vida de uma forma impensável ainda há poucos anos. O funcionamento do sistema bancário, as relações entre os diversos aspectos da economia, designadamente entre as forças produtivas agrícolas e industriais e a comercialização dos produtos produzidos num mundo globalizado exigem de todos nós um conhecimento mínimo que é muito mais aprofundado do que era o de muitos especialistas na matéria ainda há poucas dezenas de anos.

Todas estas áreas, de uma forma ou outra, têm sido objecto de atenção nestas 895 crónicas publicadas ao longo destes anos. A razão da escolha de tantos e tão variados temas deverá ser agora mais clara, não tendo nada a ver com aquilo a que muitos chamam ser «tudólogo», já que as opiniões apresentadas são justificadas e nunca assumem a forma de posição de certeza definitiva. Os leitores mais atentos ou dedicados detectarão certamente alguma evolução no pensamento do autor destas linhas ao longo do tempo. Penso que tal é compreensível já que, como diz o nosso povo na sua sabedoria, só os burros não mudam de opinião. Penso que o mais importante num cronista é ter respeito, em primeiro lugar pelos leitores que nunca deverá tentar manipular ou mesmo enganar, e depois pela sua própria consciência. No que me diz respeito, penso que a independência perante partidos, igrejas ou outras comunidades tem sido uma constante, certamente com uma evolução no sentido de se tornar cada vez mais forte.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 9 de Janeiro 2023

Imagens retiradas da internet 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Começar (muito) bem o ano e acabar (muito) mal

 


António Costa começou o ano de 2002 com uma vitória eleitoral que lhe proporcionou uma maioria absoluta no parlamento. E começou por declarar que «maioria absoluta não é igual a poder absoluto». Frase que marca um início se uma legislatura, tal como a de António Guterres, ao afirmar anos antes, em aviso ao Partido Socialista após vencer as eleições legislativas: «no jobs for the boys». Frases fortes ditadas por um optimismo excessivo dos líderes que as pronunciaram ou apenas uma forma de tentar construir uma narrativa disruptiva da realidade de todos conhecida. De qualquer forma, todos sabemos no que deu a governação de Guterres no que respeita ao aspecto a que ele se referia, certamente consequência da sua notória dificuldade em dizer não seja a quem for. É certo que as idiossincrasias pessoais se reflectem normalmente na actividade de toda a gente, mas não convém muito que tal facto tenha consequências negativas a nível da governação de um país.

Já a afirmação de António Costa acaba de ter a demonstração da sua importância, mas desta vez pelo absurdo. A sensação de poder absoluto exercido pelo seu governo é cada vez mais generalizada, tendo atingido o pico com esta história da indemnização paga a uma administradora da TAP aquando da sua saída da companhia aérea nos primeiros meses de 2022e do que se lhe seguiu: ida para presidente da NAV e saída desta para secretária de Estado do Tesouro, no Ministério das Finanças. Contextualizando, a TAP que tinha sido privatizada pelo governo Passos Coelho foi de novo nacionalizada pelo governo de Costa conhecido por Geringonça. Passou, portanto, a pertencer ao sector público empresarial, aplicando-se-lhe as regras de gestão inerentes. Dado que essas regras impedem a contratação de gestores a nível internacional pelos valores máximos legalmente definidos, o governo decidiu isentar a companhia aérea do cumprimento dessas normas, contratando uma gestora estrangeira por um valor extraordinário para uma empresa pública portuguesa. Manteve, contudo, a maior parte das regras do sector público, designadamente no que toca a despedimentos e cumprimento de deveres perante as tutelas do Estado, no caso os ministérios das Infraestruturas e Finanças. Perante a incompatibilidade entre a presidente e a administradora Alexandra Reis, esta foi afastada com uma indemnização de meio milhão de euros em Fevereiro de 2022. 


Depois disso foi nomeada pelo Governo e mesmas tutelas da TAP para a NAV Portugal, empresa pública que gere o tráfego aéreo em Portugal, tendo o respectivo pedido de parecer à CRESAP entrado logo no início de Abril. Alexandra Reis passou a presidir à NAV em Julho, mas por pouco tempo. Logo em 2 de Dezembro tomou posse como sec. de Estado do Tesouro. Mas o montante da indemnização era uma autêntica mina terrestre no caminho do governo. E quando a imprensa noticiou o caso a mina explodiu e levou pelos ares a sec de Estado do Tesouro e também o sec. de Estado e o poderoso ministro das Infraestruturas quando se soube que esse ministério tinha tido conhecimento do acordo de saída da antiga administradora da TAP.

Todo este processo, desde o funcionamento da gestão da TAP à saída da administradora, sua ida para a NAV e posterior cargo governamental até às evidentes guerras políticas ministeriais, passando pelo secretismo de tudo o que já se conhece e do que ainda apenas se adivinha é indiciador de um «quero, posso e mando» governamental. Que é o tal poder absoluto que Costa garantia em Março não ir existir.

Acresce que esta última saída do governo é a 11ª desde que tomou posse em Março último, numa sucessão impressionante de casos lamentáveis. O último, antes deste de Alexandra Reis, tinha sido protagonizado pelo anterior sec. de Estado adjunto do próprio António Costa, antigo presidente da Câmara de Caminha onde procedeu a adjudicações inacreditáveis.


O ex-ministro Pedro Nuno Santos justificou a sua saída por assumir a responsabilidade política «face à perceção pública e ao sentimento coletivo gerados em torno deste caso». O problema assumido foi mesmo a percepção pública do caso e não o caso em si. Está tudo dito, para quem quiser entender.

António Costa que, três dias depois destas demissões ainda não se manifestou publicamente sobre o assunto, pode ter começado o ano de 2022 da melhor maneira, mas não poderia terminá-lo de pior maneira tendo, ainda por cima, sido desmentido pela realidade nas suas promessas.


Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 2 de Janeiro 2023
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terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Paz para a Europa

Não é possível despedirmo-nos do ano 2022 esquecendo-nos do horror que se passa de novo num país da Europa, horror provocado por opções tomadas por pessoas como nós. Pessoas que respiram o mesmo ar que nós, que nasceram como todos nós, tal como brincaram em crianças como todos nós. Namoraram, casaram, foram pais e mesmo avós, usam as mesmas roupas que nós, andam em carros semelhantes, têm telemóveis e usam redes sociais como todos nós. E, no entanto…

E no entanto, levaram a guerra, a morte e o sofrimento sem limites a pessoas inteiramente semelhantes num país vizinho e historicamente irmão.

Não é ainda possível prever quando e como acabará a invasão da Ucrânia pela Federação Russa, mas o que se passou nos últimos dez meses é já suficientemente grave e revoltante para que se aceite sem que nos indignemos com a invasão propriamente dita, mas também com a reacção (ou falta dela) de boa parte do mundo.

O presidente ru
sso Putin justificou a guerra que levou à Ucrânia, na sequência aliás das ocupações de território ucraniano levadas a cabo em 2014, com argumentos que fazem lembrar irresistivelmente os que Hitler utilizou para invadir a Checoslováquia e a Áustria em 1938. A defesa alemã do conceito de «espaço vital» e as referências de cariz étnico encontram paralelismos evidentes nas justificações de Putin e são, obviamente, completamente inaceitáveis. Claro que o expansionismo russo para ocidente justificado com as adesões à NATO de países em tempos pertencentes ao Pacto de Varsóvia teve como consequência a adesão de novos países à aliança militar defensiva ocidental, incluindo os bálticos, por puro medo das botas cardadas russas. E essa foi a primeira e enorme derrota de Putin.

Mas desde Fevereiro que os ucranianos resistem heroicamente à ferocidade do ataque russo, no que é já outra semi-derrota da Rússia que contava conquistar a Ucrânia e colocar um governo fantoche em Kiev num prazo máximo de dois ou três meses. Bem pode Putin queixar-se pateticamente de que a Rússia está a ser atacada pelo Ocidente e pela NATO, que toda a gente vê que só há combates em território ucraniano. E, se a Ucrânia resiste graças ao apoio ocidental em dinheiro e armamento, tal é consequência da acção russa que resolveu atirar para o lixo a Carta das Nações Unidas que garante aos povos disporem de si próprios. Se a Ucrânia pretende um modo de vida do tipo ocidental e ligar-se à União Europeia e pertencer à NATO, tem pleno direito a fazê-lo por mais que isso custe ao regime de Putin que é o contrário disso.

A maior parte dos países tem-se manifestado contra a guerra na Ucrânia, curiosamente com as poucas excepções de países que ainda mantêm partidos comunistas no poder ou que têm lideranças extremistas, de esquerda e de direita. Mas, para além do apoio em armamento e dinheiro por parte dos EUA e de países europeus, as reacções contrárias à acção russa ficam-se pelas sanções económicas, que tantas vezes se assemelham a defesa de interesses próprios. Do ponto de vista diplomático, a Rússia continua a ser tratada como se nada se passasse, sem que da própria ONU surjam medidas de apoio à legislação internacional que defende direitos de países e pessoas. O que se passa em Mariupol onde a Rússia aproveita a sua ocupação militar para demolir o Teatro daquela cidade é a prova acabada de que a Humanidade está sob ataque. Para além do símbolo óbvio da destruição de património cultural, os russos estão a tentar encobrir a chacina que praticaram, dado que nas caves daquele Teatro foram mortas centenas de pessoas civis que aí tentaram refugiar-se das bombas.


Esperemos que esta guerra termine no ano que agora vai começar. Mas que seja uma paz efectiva e não apenas uma suspensão de combates, que são coisas muito diferentes. Mais cedo ou mais tarde terá que haver negociações de paz em que deverão participar a própria Rússia e os EUA, bem como a China, mas que não poderá deixar a Ucrânia de fora. Certamente, dessas negociações poderá sair o rascunho de uma nova ordem internacional. Contudo, depois dos avanços civilizacionais que se verificaram após a Segunda Guerra Mundial, há marcas que não deverão ser ultrapassadas, como a manutenção dos direitos humanos e do direito dos povos à auto-determinação, por mais que isso custe a algumas lideranças.

E não vai ser fácil. À maneira de P.S. partilho que acabei de ouvir, na mesa ao lado do restaurante, uma senhora afirmar com toda a convicção que «a Rússia, a Ucrânia e a NATO não estão interessadas na paz». A sério, parece ser boa pessoa mas acha mesmo que a Ucrânia, com a desgraça que lhe continua a cair em cima, não está interessada na paz!

Publicado originalmente no Diario de Coimbra em 26 Dezembro 2022

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terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Felizmente, o Sol volta sempre com o seu calor

 


No meio de tantos dias de chuva intensa, tantas vezes acompanhada de ventos fortes e desagradáveis, na passada semana houve um pouco de Sol durante uma manhã. Durou pouco, mas foi o suficiente para aquecer as costas durante um passeio e para lembrar que, por maiores que sejam as tempestades, o Sol acaba sempre por voltar a surgir.

Aquelas horas de Sol em Dezembro tiveram o condão de puxar por pensamentos positivos, mas também de contrariar as sensações de perda e tristeza que este Outono nos trouxe.

Como é cada vez mais frequente, à medida que a idade avança, os frios deste Outono levaram pessoas de alguma forma próximas trazendo a dor da perda aos mais próximos e amigos. A guerra na Ucrânia dura já há nove meses sendo uma verdadeira desgraça para a população daquele país alvo de todo o tipo de ataques por parte da Federação Russa com milhões de deslocados, milhares de mortos e uma destruição de cidades e aldeias que a Europa não conhecia desde a Segunda Guerra Mundial. Todos os dias assistimos aos horrores daquela guerra de invasão que Putin levou e leva a um país soberano e ao sofrimento de uma população inteira.

A visita do Sol em Dezembro, mesmo que por poucas horas, tem o condão de trazer algum calor aos corações, juntando a lembrança dos que partiram à esperança para os que ficam, em especial as nossas crianças, filhos e netos. Afinal este é também o tempo do Natal a chegar, que esperamos seja não o do consumismo desenfreado, mas o da alegria do reencontro das famílias.

E o Sol esteve ainda ligado a uma boa notícia por estes dias. Como sabemos toda a energia que gastamos e que nos é essencial para vivermos tem origem na estrela do nosso sistema planetário que é precisamente o Sol. Fornalha imensa que durante os milhares de milhões de anos da sua existência permite, entre outras coisas, que a vida exista na Terra. O fenómeno natural que tal permite é a fusão nuclear de átomos de hidrogénio em hélio, os elementos que constituem o Sol na sua esmagadora maioria. Há dezenas de anos que cientistas de vários países estudam a possibilidade de reproduzir artificialmente este fenómeno que permitiria a produção de energia em tal quantidade que responderia à totalidade das necessidades da humanidade durante muitos anos. Claro que já existem reactores nucleares a produzir energia através, neste caso, de fissão nuclear de elementos pesados, mas que provoca custos ambientais enormes, dado que o «lixo» radioactivo que produzem demora dezenas de milhares de anos até ficar inactivo, a que acrescem os perigos inerentes às instalações dos reactores. 


Até agora, os estudos e experiências realizadas conseguiam de facto produzir a fusão nuclear e assim produzir energia durante breves instantes mas de forma ineficiente, isto é, o processo gastava mais energia do que produzia. A notícia sensacional da semana passada foi de que, pela primeira vez, um laboratório americano conseguiu realizar fusão nuclear num teste ainda reduzido, mas em que a energia produzida foi superior à gasta no processo. Ainda faltarão muitos anos até haver fábricas que possam produzir industrialmente electricidade a partir de fusão nuclear, mas o caminho para o sonho de fazer surgir pequenos sóis e produzir energia limpa, barata e sem restrições parece estar finalmente aberto.


O Sol com a sua energia que nos parece inesgotável, dando-nos a luz e o aquecimento que permitem a nossa existência, é apenas uma estrela no meio de milhões de outras semelhantes da nossa galáxia que não é mais do que um ponto do Universo do qual nos julgamos o centro. Que a consciência desta nossa pequenez nos ilumine para abandonarmos a inveja, o ódio e todos os nossos grandes e pequenos defeitos, aceitando as propostas de paz e amor como aquela que o menino nascido em Belém há mais de 2.000 anos nos deixou.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 Dezembro 2022

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