domingo, 11 de dezembro de 2011

Para continuação de conversa (II)

Para continuação de conversa (II):

Vasco Pulido Valente, hoje no Público, contra o utilitarismo dos escravos.



(texto copiado do Estado Sentido)



O veto da Inglaterra na última cimeira foi invariavelmente explicado pelo interesse (ou interesses) nacionais que ela queria proteger, e antes de mais nada a primazia da City como praça financeira. Este preconceito tem tradições. Já Napoleão dizia que a Inglaterra era um país de merceeiros. Não ocorreu a ninguém que as razões fossem outras. Mas basta conhecer o sítio e um pouco da velha história dela para se perceber que a Inglaterra nunca engoliria o plano de Merkel, porque ele na essência limita os poderes do Parlamento, que são a origem e o fundamento da legitimidade e do Estado. Um Parlamento que aceitasse a tutoria orçamental da burocracia de Bruxelas, que ninguém elegeu e não precisa de responder perante ninguém, deixava de ser o Parlamento e a Inglaterra deixava de ser a Inglaterra.

Claro que a sra. Merkel não é Hitler ou o imperador Guilherme II e não quer hoje, como ontem, dominar a Europa. Mas basta comparar o mapa da Alemanha nazi em 1943 com o mapa da UE para se descobrir um ponto interessante: tirando menos de meia dúzia de excepções, os dois quase coincidem. Se em vez de um mapa militar, esse mapa fosse político, descreveria com exactidão a força da democracia na "Europa". No Sul e Sudeste, por exemplo, a democracia ainda não chegou aos cem anos e continua a não se distinguir pelos seus costumes. No centro, é o resultado recente do colapso do império soviético. Só no Norte e em franjas do Noroeste, ela faz parte de uma velha cultura nacional. Não admira que a prepotência de Sarkozy e Merkel não perturbe por aí além os 27. Estão habituados.

Quanto a Portugal, com uma interminável ditadura, um ensaio de revolução "leninista" e uma Constituição absurda, que, apesar de revista, vai persistentemente conservando restos do marxismo vulgar e as fantasias da esquerda de 1970, não promete muito. Nem a vida política, como se formou e desenvolveu a partir de 1980, com a sua pública tolerância da corrupção e da intriga, ajudou a que se formasse uma consciência cívica. Os sobressaltos que de quando em quando imaginários perigos para a nossa imaginária soberania provocam no coração sensível de alguns patriotas não passam, no fundo, de uma retórica obsoleta e relutante. Por isso, Passos Coelho não sofreu com certeza uma dor lancinante com a assinatura do acordo intergovernamental de anteontem. A democracia não lhe pesa, nem nos pesa a nós.

E mesmo depois desta cretinice de quem "desgovernou" isto durante seis anos, ainda há quem o defenda.

Possível fim do euro já é discutido pelos economistas - Economia - DN

Possível fim do euro já é discutido pelos economistas - Economia - DN

Calha bem; como se os economistas resolvessem alguma coisa.

"Os jovens estão a encontrar formas de mudar sociedades" - Globo - DN

"Os jovens estão a encontrar formas de mudar sociedades" - Globo - DN

E não se livram destes cromos?

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

ALERTA VERMELHO

É certo que, quando a ganância se alia à hipocrisia e os responsáveis pelo bem-estar e segurança de todos assobiam para o lado, só se podem esperar maus resultados. A luta contra a droga e os seus efeitos devastadores, em particular entre os jovens, tem tido momentos de maior ou menor sucesso, mas tem sido uma constante assumida pela sociedade. Até agora.
Nos últimos tempos, têm aberto legalmente ao público dezenas de lojas por todo o país, incluindo Coimbra, que se dedicam a um estranho comércio.
Essas lojas, conhecidas por “smart shops”, com uma decoração a preto e vermelho e cheias de palavras inglesas que remetem claramente para viagens, alucinações, pedradas, etc. vendem, supostamente, produtos que classificam como fertilizantes para plantas. Esses produtos, com diversas dosagens, são caros. Cada embalagem ou dose custa entre 12 e 40 euros. No exterior contêm avisos do tipo “não para consumo humano”, “fertilizante para plantas” e “não somos responsáveis por uso indevido”.
Na verdade, ninguém sabe bem a composição daquele pó ou do que está dentro das drageias. Mas o produto base, isso sabe-se bem o que é e não tem nada a ver com plantas. É conhecido internacionalmente por “miau miau” e o seu verdadeiro nome é mefedrona. É uma droga sintética, com efeitos alucinogénicos que muitos comparam à cocaína para pior, embora ainda não esteja devidamente estudada e só se lhe conheçam alguns dos trágicos efeitos em casos concretos por todo o mundo. Uma coisa se sabe no entanto: não há conhecimento de que alguma vez tenha sido usada como fertilizante para plantas, seja onde for.
Já está proibida em muitos países, mas ainda não em Portugal onde pode ser vendida, embora não para consumo humano, razão por que se continua a ver “lojas espertas” com portas abertas por todo o lado. Ainda não foi incluída na lista de drogas do INFARMED, pelo que a venda é livre. Entretanto, os vendedores vão desde já adiantando que, depois de ser proibida, bastará alterar ligeiramente a composição química para que possa continuar a ser vendida.
Isto é, o negócio e os lucros com um comércio infame e nojento que essencialmente destrói a juventude e as famílias continuam impunes e a alastrar com o maior dos à-vontades e a complacência, para não dizer mais, das autoridades. A ASAE, que tão competente tem sido nos últimos anos e ainda bem, a combater falcatruas no comércio ainda não deu por isto, ou anda distraída. Na verdade, ninguém sabe exactamente o que está dentro daquelas saquetas e elas estão à venda. Todos sabemos que se alguém abrir uma loja com pistolas e lhes chamar “pedaços de aço” para decoração e escrever que não se destinam a matar e que não é responsável por uso indevido, a loja será imediatamente encerrada. Isto é, neste caso a hipocrisia campeia à vista de toda a gente.
Se muitos dos compradores sabem exactamente ao que vão, muitos jovens compram e começam a usar mefedrona, porque sendo livremente comprada em lojas de porta aberta acreditam que não faz mal e que não se trata de verdadeira droga, já que essa é ilegal e só se compra aos “dealers” às escondidas.
Urge acabar rapidamente com esta situação. Acredito que a maior parte das pessoas e mesmo muitos pais não fazem ideia de que estas coisas se passam ao nosso lado. Por isso mesmo, todos os alertas são importantes, para que o Estado acorde e exerça o seu dever de protecção dos cidadãos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 5 de Dezembro de 2011

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

E.U.

Agora que o furacão das dificuldades de colocação de dívida pública se aproxima do centro da Europa, chegou a altura de se discutir a E.U. (Europa Unida) em vez da U.E. (União Europeia).
A desunião da União Europeia teve o seu epílogo na última reunião do G20 que decorreu entre dez e doze deste mês e que na realidade foi do G19 (20-1). Na verdade, ao contrário do que deveria suceder, a UE não esteve representada ao lado da Alemanha, da França, do Reino Unido, da Itália e dos restantes países que constituem aquele fórum. Foi com grande espanto que o resto do mundo assistiu ao triste espectáculo dos representantes da Alemanha e da França a anularem a representação da EU e mostrarem ali à frente de todos que a Europa está completamente desunida e à mercê de Merkel e Sarkozy na definição das respostas à crise da dívida pública dos países europeus e do futuro da economia.
Depois daquele G19, não passou nem uma semana até que na Grécia e em Itália os governos tivessem sido substituídos por tecnocratas, sem realização de eleições. Claro que a democracia foi formalmente respeitada, dado que aqueles países se viram de tal forma encostados à parede pela dupla que governa a U.E., que os parlamentos respectivos trataram de rapidamente encontrar soluções constitucionalmente aceites mas adequadas aos objectivos. Ajudou que o ex-primeiro Ministro Grego Papandreou tenha feito aquela rábula grotesca da ameaça do referendo sobre a ajuda à Grécia. E o facto de em Itália estar um Berlusconi à frente do Governo também terá facilitado as coisas. Não se pode dizer em verdade que a Democracia tenha sido suspensa em Itália e na Grécia. Mas foi claramente torpedeada e abriu-se um precedente grave: não há dúvidas de que a soberania daqueles dois países, curiosamente berço das duas civilizações que estão na base da Europa, ficou claramente afectada, face às imposições de quem manda na EU.
Os problemas da colocação de dívida pública começaram por países com graves deficiências internas, embora diferentes entre si: Irlanda, Grécia, Portugal e agora Espanha e Itália. Para qualquer um deles as taxas de colocação de dívida pública subiram a valores que tornaram a situação insustentável; alguns foram já obrigados a pedir ajuda externa para se financiarem temporariamente fora dos mercados, o que tem a contrapartida de facturas pesadíssimas para as economias dos países e, essencialmente, para os respectivos cidadãos. Mas todos estes países fazem parte de uma união económica e monetária, tendo o Euro como moeda comum. Têm moeda comum, mas não têm políticas económicas comuns, nem fiscalidades comuns, nem dívida comum. Tudo foi andando na santa paz da inconsciência enquanto a economia mundial funcionou bem, anulando as ineficiências económicas nacionais. Após o furacão financeiro de 2008, as finanças dos países ficaram destapadas e à mercê dos mercados que, com a globalização e falta de controlo e regulação de fluxos financeiros, permitiram grandes lucros instantâneos à custa da exploração das fragilidades nas dívidas públicas nacionais.
O problema, que era até há pouco apenas dos países incumpridores, foi entretanto crescendo e evoluindo para o centro da EU, chegando agora a França e à própria Alemanha, como o atestam as dificuldades actuais de colocação de dívida pública alemã e as previsões de descida de rating da França. Não alinho com aqueles que dizem ser Merkel a continuadora de Hitler nos seus propósitos de conquistar a Europa, agora por via da economia e já não pelas armas. Mas que a Alemanha e a França têm que abandonar as posições de suposta auto-protecção que têm tido e devem urgentemente conciliar os seus interesses com os da restante União Europeia para a construção da Europa Unida, isso também me parece evidente. Aliás, agora são os próprios mercados que já o dizem alto e bom som a Merkel e Sarkozy, o que significa que resta muito pouco tempo para defender o Euro.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 28 de Novembro de 2011

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

MULHER, hoje

Infelizmente acontece com raridade, mas por vezes temos a oportunidade feliz de observar a prestação pública de mulheres, na política e não só, que demonstram a capacidade de se assumir como pessoas por inteiro, não apenas como mulheres, mas não deixando de ser inteiramente mulheres. Ao longo das últimas décadas poucas mulheres se afirmaram politicamente ao mais alto nível entre nós, sendo de realçar Maria de Lurdes Pintasilgo, Leonor Beleza, Helena Roseta e Natália Correia. Num mundo claramente masculino, qualquer uma delas teve que manifestar uma capacidade e personalidade muito acima da média para vingar, ao contrário da esmagadora maioria dos homens que surgiam a seu lado.
A alteração do papel das mulheres é, claramente, uma das mais marcantes e substanciais mudanças sociais surgidas na segunda metade do século XX. É hoje óbvio que o surgimento e disseminação de métodos anti-concepcionais, principalmente a pílula, libertou a mulher ocidental, dando-lhe acesso generalizado a um mundo antes exclusivo dos homens. A possibilidade de determinar a sua maternidade, escolhendo quando e como ser mãe, abriu toda uma nova forma de encarar o mundo, com mais liberdade e responsabilidade, também.
Com o objectivo de, mais cedo ou mais tarde, se conseguir uma paridade que dê às mulheres um papel político mais equilibrado e consentâneo com a sua representatividade numérica na sociedade, temos desde 2006 uma lei que obriga a que as listas partidárias nas diversas eleições incluam pelo menos um terço de mulheres. Se, por um lado, a existência das quotas abre uma janela de oportunidade a mulheres que de outra forma teriam dificuldade em aceder a uma actividade relevante e de gestão do bem comum como é a política, por outro lado trouxe aos partidos mais uma dificuldade acrescida de gestão dos seus quadros. A verdade é que o nº de mulheres que participam nas actividades do dia-a-dia dos partidos é claramente inferior à quota definida por lei. Significa isto que, aquando da elaboração das listas os partidos vão procurar mulheres para preencher as quotas, tendo uns convites certamente razões válidas e positivas e outros menos; as quotas são muitas vezes preenchidas com mulheres de valia pessoal e capazes na sua vida profissional, mas não tendo frequentemente qualquer ideia nem projecto político para os cargos que vão exercer, nem experiência política ou de gestão. Assiste-se depois, frequentemente, a um penoso exercício de funções públicas sem qualquer estratégia política, às mãos de burocratas, que desbarata completamente a possibilidade de construção de um futuro melhor. Nos últimos anos assistimos a demasiados casos destes, aos mais diversos níveis, mesmo ministeriais onde as quotas nem têm que ser cumpridas. Pelo contrário, fora da política, muitas mulheres se destacam pela sua valia pessoal e pelos sucessos que obtêm através de um esforço, tantas vezes titânico, porque aliam profissão e família. Tanto nas áreas empresariais, como na cultura, ensino e muitas outras, vemos mulheres a ultrapassar dificuldades, a mostrar como de pouco se faz muito, tantas vezes com um sorriso no rosto, mal se adivinhando as dificuldades que por lá vão. E, para estas mulheres não há quotas, que os políticos legislam muitas vezes a pensar só no seu pequeno e reservado mundo.
A Lei da Paridade, inteiramente justa nos seus propósitos, já tem uma duração suficiente para que seja sujeita a uma avaliação. De facto, só por ingenuidade ou boa-vontade perversa se pode dizer que está a conseguir os seus objectivos. As mulheres que se afirmam por si sem necessidade de apoios artificiais, merecem-no e a sociedade deve exigir que o bem comum seja tratado por quem é mais capaz, não interessando se é homem ou mulher. Há muitas mulheres verdadeiramente excepcionais que mostram a todos como se trabalha, quer profissionalmente, quer para o bem comum. Só que a essas os partidos não fazem normalmente convites, certamente com medo da sua capacidade.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 de Novembro de 2011

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

As Beiras: a nossa Região


Sem que eu mesmo tenha contribuído em nada para isso, a vida fez de mim um beirão. Ainda mais que um conimbricense que também sou assumidamente, embora não tenha nada de "coimbrinha", como se costuma dizer. Sou, portanto, um beirão assumido.

Nascido em Poiares, crescido em Oliveira do Hospital, com raízes na Sertã e na Covilhã, terras magníficas onde cimentei amizades até hoje, aportei um dia em Coimbra para acabar o Liceu no D. João III e nunca mais daqui saí, embora tenha navegado pelos actuais mares portugueses da Madeira e dos Açores e trabalhado em outras terras como o Porto e a Figueira da Foz.

Por tudo isto considero ter da nossa região uma visão algo particular, mesmo privilegiada. Conhecendo e tendo grande afectividade pelo interior de boa parte da região Centro, tenho dela também uma visão de fora com uma característica: não é uma visão lisboeta, tão comum a quem vai daqui para Lisboa. Porque é assim, a Região Centro, em conjunto ou pelas diversas visões sectoriais tem sido um dos assuntos mais constantes destas minhas crónicas.

Como é evidente em muitas áreas e a diversos níveis, começando pela própria União Europeia, também na região Centro se verifica hoje uma notória falta de liderança. Aliás, corrijo: há falta de liderança, desde há muito tempo, infelizmente.

Os últimos governos foram retirando poderes e competências às Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional que se foram transformando em simples estruturas descentralizadas do poder central, isto é, de Lisboa. Por outro lado, foi cristalizando uma ideia peregrina segundo a qual a Região Centro, ao contrário das outras que têm uma capitalidade bem definida, deverá ser polinucleada. Isto significa apenas uma coisa: Lisboa determina que Coimbra não pode ser capital de nada, e sim apenas mais uma das cidades da Região sem nada que a distinga particularmente, embora isto seja um absurdo óbvio. Mas a ideia vingou de tal forma, que serviu para se irem retirando serviços regionais de cá, distribuindo-os pelas outras cidades da região, deslocalizações essas com custos bem elevados, sem que nunca fossem demonstrados os benefícios.

Sublinho novamente: isto acontece porque a região Centro não tem liderança. Não a tendo, a responsabilidade é de Coimbra e dos seus dirigentes políticos. Coimbra deverá tirar-se das suas tamanquinhas como costuma dizer-se, e assumir o seu papel na Região, com naturalidade e sem se impor às outras cidades; antes pelo contrário, chamando-as e acertando estratégias regionais comuns, sejam quais forem os critérios regionalistas impostos por Lisboa. Na verdade, com as raras e honrosas excepções que confirmam a regra, os nossos líderes políticos não têm tido a vontade, o engenho ou a simples força anímica para colocar Coimbra na situação que lhe deveria competir na Região Centro, para bem de toda a região. A Região Centro ou se afirma de uma forma clara e capaz, ou desaparecerá no meio das duas áreas metropolitanas que a esmagam cada vez mais.

Estamos num tempo de charneira, que poderá colocar o próprio Regime em causa. Quem tem responsabilidades políticas que abandone decisivamente os maus hábitos ancestrais da cidade e se liberte das peias dos grupos e grupinhos de interesses que apenas lutam por arranjar colocação para os seus apaniguados, independentemente de qualidades e capacidades. O tempo actual deverá servir para cerrar fileiras e definir estratégias a longo prazo, o que só se fará com quem for capaz para tal.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 7 de Novembro de 2011

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

GIGANTES COM PÉS DE BARRO


Se durante a sua vida o coronel Kadhafi garantiu um lugar na História dos governantes mais sanguinários, as circunstâncias do seu bárbaro assassinato vieram colocá-lo noutra lista ainda mais trágica: a dos políticos cuja carreira acabou de forma violenta, onde foi fazer companhia a Saddam Hussein, Nicolae Ceaucescu, Mussolini, Nino Vieira e até Bin Laden, entre outros, só para referir os mais recentes.

Como sucedeu com tantos outros ditadores, a vida de Kadhafi enquanto líder provocou as reacções mais contraditórias por todo o mundo, o que foi visível mesmo aquando do seu desaparecimento.

Durante muitos anos foi a coqueluche de muitos esquerdistas, defensores de socialismos diversos, pan-arabistas, terceiro-mundistas, etc. Muito por causa do seu famoso "Livro Verde". Tal como o "Livro Vermelho" de Mao Tse Tung, incendiou massas de jovens ocidentais vivendo no auge da prosperidade capitalista ocidental pós-guerra, que acreditaram que aquelas fantasias poderiam levar a alguma coisa parecida com mais justiça e liberdade.

Entretanto, Kadhafi ia calmamente usando os dinheiros do petróleo líbio para promover o terrorismo pelo mundo inteiro, salientando-se o apoio ao tristemente célebre "Carlos", a ligação à Fatah e atentado nos Jogos Olímpicos de Munique em 1972 e os atentados a aviões como o de "Lockerbie" em 1988 em que morreram 270 pessoas.

O dinheiro do petróleo líbio serviu ainda para comprar apoios internacionais, sendo absolutamente risível a figura de muitos governantes de todo o mundo fotografando-se ao lado de Kadhafi, praticamente até ao seu fim. Tony Blair, sempre ele com a sua suprema e hipócrita capacidade de mentir, chegou ao ponto de colaborar com Kadhafi numa encenação ridícula para deixar levar o terrorista líbio de Lockerbie de uma prisão inglesa para a Líbia, a troco de uns contratos de petróleo com a BP. Suprema ironia, a Líbia esteve mesmo à frente à frente da agência dos direitos humanos da ONU durante algum tempo. Isto para não falar da fortuna colossal de dezenas de milhares de milhões de euros que Kadhafi tinha espalhados pelo mundo inteiro e que não lhe valeram de nada na hora da morte à saída de um cano de esgoto.

No que se convencionou chamar "Primavera Árabe", é outra ditadura que chegou ao fim, depois da Tunísia e do Egipto. Muitos afadigam-se a celebrar os novos tempos nos países árabes, do que se podem vir a arrepender em pouco tempo. A gente que assassinou Kadhafi daquela maneira não será certamente melhor que ele. Do Egipto vêm também notícias inquietantes no que diz respeito às liberdades e direitos humanos.

 
No meio disto tudo, muito fica por explicar quanto à decisão da NATO em apoiar militarmente as forças contrárias a Kadhafi, sem o que o ditador líbio não teria caído. E saltou à vista um aspecto muito assustador da moderna guerra que é o uso dos aviões não tripulados comandados de uma sala algures no interior dos Estados Unidos e que eliminam alvos concretos em qualquer parte do mundo, como na Líbia, no Iraque, no Afeganistão e sabe-se lá mais aonde. A utilização dos "drones" está cada vez mais a parecer-se com assassínio estatal à distância (ainda que quem maneja o joy-stick esteja fardado), sem julgamentos nem hipóteses de defesa, seja de americanos ou outros e deveria ser motivo de uma discussão e regulação de utilização internacional.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 31 de Outubro de 2011

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

AUSTERIDADE FORÇADA

Desde há alguns meses que somos diariamente confrontados com o termo "austeridade". Até parece que é castigo, por diversos motivos. E, provavelmente, não deveria sê-lo.

O que significa ser-se austero? Significa recusar abusos, ser severo, ser disciplinado com rigor. Verifica-se, assim, que austero, tanto o pode ser um rico como um pobre.

Os economistas pegaram no termo e começaram a aplicá-lo com o significado de rigor no controle de despesas do Estado. Quando os governos se endividam em excesso e não controlam os seus gastos, permitindo que os défices orçamentais subam de tal forma que o financiamento normal se torna difícil ou mesmo inviável, chega um momento em que só lhes restam normalmente duas hipóteses: ou renegoceiam a dívida, o que significa falência ou muito perto dela, ou pedem ajuda às entidades internacionais constituídas para isso mesmo, como o FMI. Nessas alturas lá vêm as ditas medidas de austeridade, que visam essencialmente que o Estado gaste menos dinheiro que, como se sabe, vem dos impostos dos cidadãos e da economia.

Austeridade do Estado, portanto. Quando o Estado se transforma num "monstro", para utilizar a imagem que entrou no nosso léxico há uns anos atrás, isso significa que, por mais que a economia produza, está lá omnipresente o Estado para absorver e frequentemente malbaratar grande parte do rendimento, impedindo o próprio crescimento da economia. É uma situação de Estado asfixiante do próprio país.

Portugal chegou claramente a este ponto. Não foi a economia que nos trouxe aqui; nem os trabalhadores. Foi um Estado tentacular que tudo quis definir através dos meios que deveriam ter sido entregues ao empreendedorismo, à capacidade de inovação e de assunção de risco, em suma à economia. O Estado definiu completamente quais as áreas de futuro, quais as actividades económicas a eliminar e a apoiar; fez isto de todas as formas e o país está exangue, estragado e dividido. A pesca foi quase eliminada, a agricultura foi abandonada e praticamente entregue às estratégias francesa e alemã, a indústria pesada destruída e o turismo virado para a exploração maciça dos chamados turistas de pé descalço. Tudo isto enquanto as cidades eram sistematicamente maltratadas crescendo em mancha de óleo, o território desordenado e desfeado, e o custo de manutenção de infra-estruturas foi crescendo em espiral. O Estado descobriu métodos financeiros para construir obra sem método nem controle de custos, endividando-nos de forma irreparável, como aconteceu com as parcerias público-privadas das SCUTS e outras. Para se ter uma ideia do que estou a falar, entre 2014 e 2018 vamos ter de pagar 2,5 mil milhões de euros em cada ano pelas tais PPP e entre 2018 e 2026, essa renda nunca descerá abaixo de 1,5 mil milhões por ano.

Chegou-se a um ponto em que a austeridade do Estado não é suficiente. Claro que essa austeridade é necessária e tem de ser obtida e mantida para futuro. Por exemplo, as PPP já constituídas têm, obrigatoriamente, que ser renegociadas, com distribuição mais equitativa das responsabilidades, não podendo os riscos e custos ficar todos do lado dos contribuintes. Mas a conta chegou a praticamente todos os portugueses de forma dramática. Se para o Estado se pode realmente falar em austeridade, para os portugueses em geral a situação tem outro nome: empobrecimento. É de facto de empobrecimento generalizado que se fala e há que assumir isso, não esquecendo que muitos destes novos pobres o são e vão ser como consequência das políticas públicas dos últimos anos. É por isso que o Estado tem nesta altura particulares responsabilidades nessa matéria, não podendo deixar de assumi-las.
Publicado otiginalmente no Diário de Coimbra em 24 de Outubro de 2011

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

AR E VENTO

Ao longo dos últimos anos, escrevi neste espaço sobre o processo que levou à instalação dos moinhos de vento que se amontoam pelas cristas dessas serras do nosso país. Basicamente, uma actividade economicamente não rentável foi alimentada artificialmente pela mão do Governo. Uma enorme quantidade de dinheiro, vinda quer de fundos europeus, quer do orçamento do Estado, quer dos bolsos de todos os consumidores de electricidade que somos todos nós, foi retirada do apoio a actividades económicas rentáveis para pagar aquilo que governantes decidiram que era o futuro. Para além do disparate que é sempre os políticos decidirem quais as actividades económicas "do futuro", assim se ajudou a cavar ainda mais o buraco em que estamos metidos.
O ministro da Economia que promoveu esta estratégia ficou famoso por ter sido despedido na sequência de "fazer uns corninhos" a deputados da oposição em plena Assembleia da República. Soube-se depois que foi para os EUA dar aulas numa Universidade num curso pago principescamente pela "nossa" EDP, precisamente sobre a estratégia das energias renováveis. Calha bem que tenha ido ensinar essas coisas aos americanos. Só que a famosa "aldeia global" não nos deixa hoje na ignorância sobre o que se passa em qualquer parte do mundo.

 
O Presidente Obama também faz parte daquele grupo de fanáticos das energias renováveis à custa dos outros, mas nessa, como noutras áreas, tem-lhe corrido tudo ao contrário do que esperava. Em 2010, Obama apresentou ao mundo uma fábrica gigantesca para fabrico de equipamentos para as energias renováveis, no caso a SOLYNDRA dedicada ao fabrico de painéis solares. A história da Solyndra é todo um compêndio de ideias pré-concebidas, fanatismos ecológicos, dinheiro público atirado a rodos para actividades económicas definidas pelos políticos como estratégicas e mesmo, quase certamente, corrupção em larga escala. Apesar de pareceres técnicos desfavoráveis dos serviços públicos competentes, o pessoal de Obama arranjou maneira de ultrapassar tudo isso e entregar 500 mil milhões de dólares aos investidores que o convenceram de que ali estava o futuro, como Obama proclamava. Os painéis a produzir pela Solyndra seriam o supra-sumo da indústria mundial de painéis solares, porque não precisavam de silício e teriam uma instalação muito barata. Bendita e cara fantasia. A gigantesca fábrica que Obama aprovou dois meses depois de eleito, apresentando-a ao mundo como "o futuro hoje", abriu em Maio de 2010 para fechar falida em Setembro de 2011. Cada americano vai pagar mais de um dólar e meio de impostos pela falência da Solyndra, para além dos postos de trabalho perdidos.

Mais um caso em que os políticos definiram um futuro que a realidade económica se encarregou de matar. Neste caso, talvez depressa demais, tão depressa que o presidente que assiste à falência é ainda o mesmo que decidiu esse caminho.

Entre nós, todos o sabemos infelizmente, temos um buraco gigantesco que agora vamos pagar. Grande parte dele foi escavado por decisões insensatas justificadas as mais das vezes por boas intenções que poucos tiveram coragem de denunciar na altura certa porque eram imediatamente apelidados de atrasados, ignorantes e sabe-se lá mais o quê.

Que a dimensão da crise e da chamada "austeridade" imposta tenha ao menos o condão de abrir os olhos aos portugueses para não se deixarem novamente levar por cantos de sereia.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Outubro de 2011

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

CAVALOS DE TRÓIA



1. A cultura clássica é abundante em histórias e mitos que explicam a acção dos homens. Mostram-nos claramente que, apesar dos progressos tecnológicos dos últimos anos e da evolução das regras sociais, há uma permanência espantosa nos sentimentos e até nos procedimentos de cada um de nós.
Amores desencontrados, raptos, ciúmes e defesas de honra violentas levaram à guerra de Tróia que durou dez anos por volta de 1.200 anos antes de Cristo. Homero descreveu os anos finais da Guerra de Tróia na sua Ilíada e aí ficamos a saber das extremas dificuldades sentidas pelos Gregos em tomar Tróia por eles cercada durante dez anos. Já depois do seu chefe Aquiles ter morrido, os Gregos resolveram adoptar um plano traiçoeiro imaginado por Odisseu para finalmente ocuparem Tróia.
Assim, como Virgílio descreve detalhadamente na sua Eneida, desmontaram os acampamentos do cerco, fingindo desistência dos intentos de tomada de Tróia e deixando junto das muralhas da cidade um enorme cavalo de madeira que haviam construído. Ignorando os avisos de Laocoonte, sacerdote de Apolo, os Troianos levaram o cavalo de madeira para dentro das muralhas, tendo passado toda a noite a celebrar a retirada dos gregos. Foi então que de dentro do cavalo oco de madeira saíram alguns soldados Gregos que abriram as portas das muralhas, permitindo a entrada dos seus exércitos que assim finalmente ocuparam Tróia, permitindo o regresso da rainha Helena a Esparta.
Mito ou realidade, o "Cavalo de Tróia" ficou para sempre como o símbolo da esperteza sobre a força e da derrota da ingenuidade e da crença nas aparências.
2. No dia 1 de Outubro celebrou-se novamente o Dia Mundial da Música em Coimbra. Claro que a Orquestra Clássica do Centro residente em Coimbra, não podia deixar de celebrar esse dia, tendo realizado um concerto que incluiu a difícil Sinfonia do Novo Mundo de Dvorak, em que os jovens músicos da Orquestra Juvenil do Centro também participaram, tendo oportunidade de mostrar as suas capacidades. Casa cheia e público a aplaudir entusiasmadíssimo. Mas, no mesmo dia e à mesma hora, houve outro concerto comemorativo do Dia Mundial da Música no Teatro Académico de Gil Vicente. Neste concerto actuou a Osquestra Filarmonia das Beiras, que tem sede em Aveiro e veio à nossa cidade comemorar esse dia. Foi assim que, nessa noite, Coimbra teve o privilégio de ter dois grandes concertos, o que é coisa rara, mas mostra que Coimbra tem público para toda essa oferta. Deve-se certamente agradecer a quem, mesmo retirando a Aveiro a hipótese de celebrar a Música no dia próprio estabelecido pela UNESCO em 1975, transformou nessa noite Coimbra na capital da música em Portugal
3. O leitor que pacientemente me leu até este ponto deverá estar a perguntar a si próprio se o autor destes "vistos de dentro" mudou de estilo e aderiu às mais ligeiras crónicas de diversos pontos, em vez da abordagem de uma única matéria. Devo dizer que, embora possa parecer o contrário, tal não é verdade tendo esta crónica apenas um assunto. Como conimbricense e em liberdade, faço votos que na nossa Cidade Laocoonte não se sentisse só e recordo que a partir de Coimbra Adriano cantou para todo o país as palavras de Alegre: "há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não".

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 10 Outubro 2011

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A FUNDAÇÃO

 
As Fundações são uma espécie de Associações muito especiais que proliferaram entre nós nos últimos anos como cogumelos nas primeiras chuvas do Outono.

Mas há uma Fundação mesmo muito especial que não deixa de nos surpreender e que diz muito do Portugal dos últimos anos.

O Centro Cultural de Belém é uma estrutura que nos suscita reacções opostas. Por um lado, é um conjunto de grande qualidade em termos arquitectónicos, beneficiando ainda de uma localização privilegiada, quer em termos naturais com o Tejo bem perto, quer em termos urbanos e patrimoniais com os Jerónimos mesmo ao lado.

Mas o preço que custou e, fundamentalmente, o desvio brutal face ao orçamento que estava inicialmente previsto (de 31 para 200 milhões de euros), ficará para sempre como um símbolo do país que fomos criando ao longo das últimas décadas, agora que muitos responsáveis nos tentam ensinar que "vivemos acima das nossas posses". Pelos vistos, se isso é verdade, houve ao longo dos anos muitos políticos que ajudaram a criar essa situação e que por pudor se deveriam abster de criticar os portugueses comuns por tal atitude.

Os 97.000 metros quadrados do CCB albergam desde 2007, em permanência, a Colecção Berardo que é gerida por uma Fundação própria. A Colecção Berardo foi ocupar o espaço que anteriormente era o Centro de Exposições do CCB. Isto é, o empresário Joe Berardo, também conhecido por Comendador Berardo, obteve do Estado Português um espaço absolutamente privilegiado para expor a sua colecção particular, evitando construir um edifício próprio e poupando até nos elevados encargos de seguro que uma colecção de arte com aquela dimensão exige. Há poucos dias ouvimos declarações do Sr. Comendador, queixando-se de que o Estado se teria atrasado na entrega de dinheiro para pagamento de salários. Vai-se a ver e somos surpreendidos com as contas da tal Fundação. Na realidade, desde 2006 até agora, o Estado pagou à mesma mais de 27 milhões de euros e o Sr. Comendador Berardo 2 milhões, consta que metade desta verba em espécie através da entrega de mais obras de arte avaliadas por ele próprio. Pelos vistos tudo isto em observância do acordo celebrado pelo Estado e o Sr. Comendador, que vai sempre ameaçando com a hipótese de levar as obras de arte para outro lado qualquer se o Estado não se portar bem. Para se ter uma ideia do que estamos a falar, o valor pago pelo Estado foi o equivalente ao dobro do valor anual de apoios estatais às artes cénicas, plásticas e performativas e a artistas independentes. É obra, caramba!

Claro que vindo de quem vem, não é de admirar. Todos percebemos já de que forma o Sr. Comendador conseguia até há pouco tempo trabalhar com o Estado. Basta ver como conseguiu da CGD um empréstimo de centenas de milhões de euros para comprar acções do BCP, dando como garantia as próprias acções, e assim arranjar força accionista para influenciar decisivamente a queda da anterior administração do BCP. Curiosamente, para o lugar dessa administração acabaram por ir os administradores da CGD que terão autorizado a operação de empréstimo. Claro que, com a desvalorização espectacular das acções do BCP, quem está a arder? A Caixa que é do Estado.

O Governo já se terá dado conta do que tem acontecido com estas famosas fundações e mandou fazer um levantamento exaustivo da situação. Outra delas, a famosa Fundação para as Comunicações Móveis, que tem actualmente uma dívida de cerca de 65 milhões de euros, já se sabe que vai fechar. Serviu para financiar os célebres computadores Magalhães distribuídos pelas crianças deste país, dando corpo a mais um dos famigerados "desígnios nacionais" que desde o Euro 2004 têm ajudado a enfiar-nos no buraco em que nos encontramos.

Apetece dizer: Deus nos livre de mais desígnios nacionais e de fundações destas.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 3 de Outubro de 2011

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Mudanças necessárias (também) na Cultura

 

O secretário de Estado da Cultura definiu há poucos dias as orientações políticas do actual Governo para a área da Cultura. Mais uma vez, a escassez geral de dinheiro obrigou a uma redefinição muito clara das políticas, de forma a poupar dinheiro também nesta área, sem colocar em causa o essencial. É assim que Francisco José Viegas definiu que os organismos culturais pagos ou apoiados financeiramente vão ter que apresentar resultados de bilheteira, mantendo embora a sua identidade e independência artísticas. Esta é uma velha questão, nunca completamente resolvida entre nós, embora haja companhias artísticas ditas de vanguarda que até fazem questão em mostrar que não dependem economicamente do Estado, conseguindo públicos próprios que reconhecem o seu trabalham e dão a sua compensação ao trabalho apresentado, através das bilheteiras. E assim deve ser, acrescento eu. Ou a independência é real, ou não é mais que conversa da treta para enganar incautos.

Muitos dizem que o facto de não existir hoje em dia um Ministério da Cultura é uma despromoção para a dita; como se o importante não fosse a política cultural e sim as designações. Digo ainda mais, como se a política dos últimos "Ministros da Cultura" tivesse tido algum impacto na Cultura em Portugal. Na realidade, pouco se viu para além da distribuição de dinheiros pelas corporações instaladas que, e de que maneira, se assenhorearam das programações e até da gestão de muitos dos organismos que vivem à custa desses dinheiros, sem efectivo controlo, dado que o sistema está minado de alto a baixo. A preocupação com a melhoria do nível cultural da população, ou pura e simplesmente desapareceu, ou apenas serviu como argumento para a realização de negócios muito lucrativos para alguns, de que a utilização do Centro Cultural de Belém é apenas o exemplo maior.

 
Os tempos dos grandes mecenas, como os príncipes do Renascimento que, para se fazerem notados e reconhecidos pagavam do seu bolso aos artistas, já lá vão há muito. É verdade que ainda hoje a História Cultural da Humanidade lhes deve grande parte das mais expressivas obras de arte de sempre, seja na pintura, na escultura ou na música. Mas a evolução social e económica alterou completamente essa situação. Com raras excepções, os mecenas são hoje em dia empresas que orientam parte dos seus lucros para as artes a fim de acederem a benefícios fiscais. Há ainda, devo dizê-lo, muitos políticos aos mais diversos níveis, desde ministros a vereadores que se armam em "médicis de trazer por casa" com os dinheiros dos nossos impostos, impondo gostos pessoais e imaginando-se programadores de grande nível apenas porque os que deles dependem lhes batem palmas. Actuando (consciente ou inconscientemente) quase sempre a favor de programadores que, mantendo um pé fora e outro dentro do sistema, acabam por estar no melhor dos mundos, para mal dos projectos sustentados e profissionais que tentam efectivamente trabalhar pela Cultura e pelo povo que precisa dela para evoluir.

Francisco José Viegas, ao contrário de "ministros e ministras" seus antecessores, conhece bem o mundo cultural no seu todo. Não é um académico que escreve sobre cultura. É, para além agente cultural como editor, um artista da escrita consagrado e um apoiante de novos escritores. Conhece o mundo real da Cultura e as suas importantíssimas vertentes económicas. As alterações que definiu para a reorganização de todo o sector cultural do Estado vão na direcção certa, assim os diversos responsáveis estejam à altura para a levar a cabo. Claro que as mudanças põem em causa enormes interesses instalados. Faço votos que, também na área da Cultura, a crise financeira que a todos toca seja usada como oportunidade para fazer mais e melhor com menos dinheiro.

Publicado orginalmente no Diário de Coimbra em 26 de Setembro de 2011

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Acordar quem tem andado a dormir

Soube-se há poucos dias que a ERSE (Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos) prevê um aumento na ordem dos 30% na factura de electricidade a pagar pelos portugueses no próximo ano, não contando com o aumento de IVA já anunciado.

Só quem andou muito distraído nos últimos anos se pode admirar com isto. Mais cedo ou mais tarde haveria de acontecer, dada a política energética que os governos têm vindo a seguir desde há anos. Por mim, relembro aqui parte da minha crónica sobre este assunto já em Janeiro de 2007, até porque desde então tudo piorou:

"As tarifas de electricidade devem reflectir os custos totais da sua compra, produção e distribuição, a fim de garantir a liberalização do mercado energético e vir a permitir a entrada de outros fornecedores no mercado.

No entanto, é do interesse geral saber que a factura da electricidade inclui uma parcela que os não especialistas desconhecem. São os chamados "custos de interesse geral", que em 2006 totalizaram 673 milhões de Euros e que incluem os custos da co-geração (164 M€), das energias renováveis/eólicas (157 M€), das rendas aos municípios (234 M€) e da convergência tarifária das Regiões Autónomas (118 M€).

É ainda conhecido que os lucros da EDP no ano passado andaram pelos 649 milhões de Euros, tendo crescido cerca de 84%.

Este procedimento significa que o Governo transmite aos consumidores por inteiro, os custos das decisões políticas (eventualmente correctas) de pagar subsídios às empresas de co-geração, dos parques eólicos e ainda dos subsídios à electricidade mais baixa nos Açores e na Madeira. Trata-se de um autêntico imposto. Por outro lado, a EDP que está em grande parte privatizada é desonerada desse encargo."

Dentro da factura mensal da electricidade, este ano os consumidores domésticos pagam na verdade, três facturas: a da energia (44%), a das redes (26%) e a dos tais CIEG – "Custos de Interesse Económico Geral" (30%). De acordo com a própria ERSE, estes CIEG "são custos de decisão política repercutidos nas tarifas pagas por todos os consumidores".

O leitor estará agora abismado e não quererá acreditar no que escrevi. Na verdade, os governos anteriores levaram-no a pagar aqueles 30% da sua factura de electricidade, sabe para quê? A ERSE faz o favor de nos informar: Sobrecustos da Produção em Regime Especial, em Regime Ordinário e em Regime Especial, rendas aos municípios e "outros custos". Se o leitor ainda não percebeu o que são aqueles sobrecustos, é fácil de explicar: Trata-se essencialmente dos subsídios aos moinhos eólicos e centrais térmicas e hídricas.

Infelizmente, a tão decantada "Regulação" em Portugal dá nisto. Na realidade, o Estado meteu a mão em toda esta actividade e o resultado foi termos já uma das electricidades mais caras da Europa estando o distribuidor que tem o monopólio prático da distribuição de electricidade, a EDP, completamente defendido com os chamados CMEC – custos de manutenção do equilíbrio contratual. A coberto de contratos destes e sem concorrência efectiva, é fácil obter os belos resultados a distribuir pelos accionistas e dar mesmo prémios de gestão magníficos para os geniais gestores.

Os portugueses que andaram tantos anos distraídos deverão agora "acordar" para uma realidade pesada que lhes está a sair toda da carteira. O Portugal "moderno" que lhes venderam e em que é tão bonito acreditar sai caro e por detrás da fachada estão muitas injustiças e mesmo coisas feias. Mas há algo de que os portugueses não se podem queixar: é de que não foram avisados. Talvez por isso estejam a aguentar esta canga da crise com uma bonomia que espanta os mais incrédulos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 19 Setembro 2011

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Haja coerência e responsabilidade

Estamos em meados do mês de Setembro de 2011. Não estimado leitor, não vou lembrar a tragédia ocorrida há dez anos em Nova Iorque. Vou recordar algo muito mais recente. De facto, foi em Maio de 2011 que o chamado "memorando da troika" entrou nas nossas vidas por muitos anos. Faz apenas quatro meses. E faz três meses que houve eleições, que retiraram do poder José Sócrates e o seu Governo que tinham trazido Portugal ao ponto em que o Estado nem tinha dinheiro para pagar aos seus funcionários no mês seguinte, nem tinha capacidade para se financiar internacionalmente de forma sustentável. O défice das contas públicas e, essencialmente, a dívida pública obrigaram-nos a pedir ajuda externa para nos podermos financiar. Claro que para garantir esse financiamento, as instituições internacionais (União Europeia e FMI) estabeleceram metas e prazos muito concretos que obrigam a redução de despesas e acréscimos de receitas. Cabe lembrar que, caso não tivéssemos o apoio da "troika", o défice teria de ser nulo já no próximo ano, pelas regras da União Europeia, aceites por nós, o que obrigaria de imediato a tais cortes na despesa e subidas de impostos que dificilmente o país reagiria melhor do que o que acontece com a Grécia neste momento. Com o acordo obtido através da aceitação do "memorando de entendimento", estamos obrigados a um défice de 5,9% do PIB este ano e de 4,5 no próximo, o que nos deu alguma folga e acesso ao financiamento.

Percebem-se assim, melhor, os esforços quase loucos de contenção de despesas onde o Estado mais gasta e dos aumentos de impostos a que temos assistido.

Acresce que o ambiente económico e político na União não está para brincadeiras. Há rumores de que a Espanha esteve quase a pedir ajuda externa em Agosto. A Grécia está claramente a caminho do abismo; na semana passada os juros para a Grécia chegaram a ultrapassar os 90%, significando que já não há medida de risco: a certeza do incumprimento por parte da Grécia é total.

Do lado da Alemanha, as notícias não dão para acalmar ninguém. Embora o Tribunal Constitucional tenha validado as participações alemãs na ajuda à Grécia e no fundo de socorro europeu decididas pelo governo alemão, a Sra. Merkel terá que, a partir de agora, fazer passar quaisquer novas decisões desse tipo pelo parlamento alemão. Conhecendo-se as reticências de muitos alemães a esse tipo de acções para ajuda dos chamados países periféricos, prevê-se que venham aí tempos ainda mais difíceis. Muitos defendem, mesmo entre nós, soluções milagrosas como os "eurobonds" de imediato, sem a criação prévia de um organismo orçamental comum. Esquecem-se de que, em primeiro lugar os países cumpridores dificilmente aceitarão "cobrir" permanentemente e para sempre os erros dos países não cumpridores e que, como é bem conhecido, a resistência de qualquer corrente é a do seu elo mais fraco. Aliás a Standard & Poors encarregou-se de imediato de anunciar que os "eurobonds" receberiam a notação da dívida menos bem cotada de entre todos os participantes.

Para completar a imagem do que se passa, soube-se que a saída do euro, outra ideia peregrina de muita gente entre nós, custaria para cada país "periférico" como nós, entre 40 a 50% do seu PIB; significaria isso que cada cidadão de um país que saísse do euro pagaria entre 9500 a 11500 euros no primeiro ano e 3000 e 4000 nos anos seguintes.

Por tudo isto faz alguma impressão que responsáveis políticos que levaram Portugal a ter que fazer o acordo com a "troika" ensaiem agora algum distanciamento do mesmo. Mas para dizer a verdade, o que choca verdadeiramente é ver muita gente importante do PSD, incluindo ex-lideres que nunca conseguiram chegar a primeiro-ministro, numa roda viva de críticas sem sequer esperarem para conhecer todas as acções do governo eleito há três meses, neste autêntico "momento de verdade" nacional que atravessamos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 12 de Setembro 2011

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Um Beijo Atlântico Brasileiro


 
Foi uma canção com este nome sugestivo que encerrou na passada sexta-feira um magnífico Recital de Música de Câmara Brasileira promovido pela Orquestra Clássica do Centro na Biblioteca Joanina, com Luís Gustavo Petri (Piano) e Taís Bandeira (Soprano).

Não vou aqui comentar a qualidade do recital porque me falta formação musical adequada para o efeito, embora o entusiasmo do público presente deva ser suficiente para aquilatar dessa qualidade, aliás garantida à partida pelo curriculum dos músicos brasileiros intervenientes. As explicações do Maestro antes de cada canção permitiram à assistência perceber a riqueza e qualidade da composição erudita do Brasil desde os fins do século XIX, que vai muito para além do celebrado Villa Lobos que, aliás, também ali foi interpretado.

O Maestro Gustavo Petri veio a Coimbra a convite da Orquestra Clássica do Centro para orientar artisticamente o curso de Direcção de Orquestra Manuel Ivo Cruz que decorreu ao longo de toda a última semana no Pavilhão Centro de Portugal; Gustavo Petri é regente, compositor e pianista, sendo hoje em dia um dos nomes mais importantes da regência no Brasil.

A organização deste curso de regência em Coimbra é uma iniciativa inédita entre nós por diversos motivos. Desde logo, porque se trata de uma acção cultural de relevantíssima qualidade numa área específica de grande importância no meio musical, que é raro acontecer por ser difícil encontrar as condições necessárias para a sua realização e que proporcionou uma experiência diferente aos músicos profissionais inscritos. Os inscritos vieram de diversos locais do país, tornando Coimbra num centro de difusão de conhecimento aprofundado numa área importantíssima da cultura. Por outro lado, a vinda dos músicos brasileiros traduziu, na prática e de uma forma muito concreta, o que pode ser uma política cultural evoluída que abranja troca de experiências e formação superior proporcionada a artistas, que se reflectirá sempre numa melhoria do nosso nível cultural. Sabendo-se do desejo da OCC de que este seja o primeiro de muitos cursos deste género, com outros maestros estrangeiros a virem partilhar os seus conhecimentos na área da regência musical, espera-se que a Cidade perceba o alcance cultural desta iniciativa, apoiando-a como merece.

Curiosamente, o Maestro Gustavo Petri é o actual regente titular da Orquestra Sinfónica da Cidade de Santos que é uma das 21 cidades geminadas com Coimbra, distribuídas por todo o mundo. Todos nós nos teremos já perguntado para que servirão tantas geminações, para além das viagens que proporcionam. De facto, as geminações poderão ser interessantes se possibilitarem trocas de experiências a nível cultural, empresarial, turístico, etc. Embora esta vinda de músicos brasileiros a Coimbra não tenha sido proporcionada pela geminação, espera-se que essa situação se possa alterar no futuro.

"Um Beijo Atlântico Brasileiro" é uma canção com letra de Taís Bandeira e música de Gustavo Petri, foi composta de propósito para o recital de sexta-feira e traduz um enamoramento de brasileiros por Portugal; o facto de a sua primeira audição ter sido na Biblioteca Joanina sob o olhar altivo de D. João V é bem o sinal de que a cultura ultrapassa os revezes da História e aproxima os povos de uma forma insuperável. Obrigado à OCC por ter tornado aquele momento possível.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 5 de Setembro de 2011

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

REFÉNS DA FINANÇA

A crise que se abateu no mundo ocidental e que começou como financeira alastrando rapidamente para a o resto de economia está aí para durar e para trazer ainda mais sacrifícios. Quando caiu o Lehman Brothers, os apoios à restante banca foram gigantescos, com os Estados a assumir os chamados "activos tóxicos". Os responsáveis directos pelos problemas foram assim salvos, tendo passado os anos seguintes a ver se escapavam à chuva, estando hoje novamente a tratar livremente dos investimentos globalizados. Lembro-me bem de, no pico da crise em 2008, todos os responsáveis assinalarem que deviam ser desenvolvidos novos meios de controlo dos fluxos financeiros internacionais, de regulação da actividade bancária de investimento, etc para evitar futuras crises semelhantes. Dizia-se que se deveriam encontrar novos mecanismos internacionais para prevenir, à semelhança do sucedido na sequência da Grande Depressão e da tragédia da II Grande Guerra, quando em Bretton Woods se constituiram o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. O que é facto é que não se viu nada, a não ser os apoios estatais à banca que assim se livrou de problemas e reequilibrou os seus balanços com o dinheiro de impostos. Entretanto, a crise transferiu-se para o resto da economia, até porque esta se viu sem o dinheiro que foi para os bancos e lá ficou. Os líderes dos grandes países, que não querem perder o seu estilo de vida nem os mercados que lhes garantem o consumo do que produzem andam numa aflição, impondo regras austeras aos países que não foram capazes de conter despesas, endividando-se brutalmente e deixando crescer os seus défices orçamentais a níveis insustentáveis (no que têm grandes culpas no cartório).
A Europa parece actualmente uma barata tonta. Os responsáveis políticos europeus conseguiram inventar o pior dos mundos. Por um lado, instituíram uma moeda única e um Banco Central Europeu. Por outro lado, deixaram os países com as suas próprias execuções orçamentais e acesso próprio aos mercados para financiamento das suas dívidas, sem disporem de instrumentos de política monetária própria. Tudo isto sem montar uma única instituição comunitária de controlo político das finanças públicas. Puseram-nos completamente à mercê dos especuladores internacionais. Claro que as famosas agências de notação internacionais ajudam a dar cabo disto tudo, já que trabalham com procedimentos automáticos que os sistemas informáticos hoje permitem e não estão imunes, longe disso, à tentação de elas próprias se meterem em negócios escuros de contratos que permitem grandes ganhos ilícitos. As instituições europeias a tudo isto dizem quase nada; até porque o próprio e celebrado "Tratado de Lisboa" proíbe a utilização de meios que possam fazer frente aos ataques especulativos, em nome da tão celebrada livre concorrência.

Com tudo isto, o Euro está pelas ruas da amargura como seria de esperar? Nada disso, continua forte e sereno perante o dólar, como se nada se passasse. De facto, o problema é mesmo político. O almoço recente entre Angela Merkel e Sarkozy, a que se seguiram declarações pífias sobre um celebrado "governo económico europeu" a ser presidido por Van Rompuy (o leitor conhece de algum lado?) e que reuniria duas vezes por ano, foi bem a imagem do desnorte dos líderes europeus.

Os líderes políticos têm que por na ordem a indústria financeira sem complexos, porque há coisas mais importantes que os mercados e a livre concorrência; caso contrário não se augura nada de bom para o nosso futuro, até porque hoje em dia o dinheiro é a base do funcionamento da economia mundial, tal como o ar é essencial para respirarmos.




Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 29 de Agosto de 2011

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

IN CENTRO

Entrevista no Programa IN Centro transmitida em 20 de Agosto 2011


CIDADES AMIGÁVEIS


Com a urbanização crescente e o abandono dos campos, as cidades tornaram-se o local normal para se viver. Podemos (e devemos) pôr em causa o modelo de crescimento que deu origem à transferência populacional para as cidades e para o litoral. Mas isso não impede que nas cidades haja mais emprego, que esses empregos sejam essencialmente em serviços e comércio, em vez dos duros trabalhos da agricultura. Nas cidades há também mais oferta de ensino e de cultura, proporcionando-se assim mais qualidade de vida às chamadas classes médias.

A evolução da economia através da globalização e da "desmaterialização" da execução de muitas tarefas, leva a que as cidades tenham já hoje um papel determinante na cena internacional, ultrapassando mesmo as limitações geográficas e mesmo de soberania.

A gestão das cidades é hoje uma tarefa imensa e diversificada. Desde as responsabilidades a nível das infra-estruturas, ao ensino a diversos níveis com tarefas inerentes como transportes e refeições escolares, a políticas de apoio a juventude, terceira idade e desporto. Políticas a nível social, como habitação. Políticas de recuperação de centros degradados. Políticas de atracção turística. Políticas de desenvolvimento a médio e longo prazo, como planos de urbanização e estratégicos. Políticas de promoção do desenvolvimento económico, que deverão aproveitar todas as sinergias existentes, como escolas tecnologias a nível superior, indo chamar os investidores e não ficando à espera que apareçam.

Políticas de afirmação própria das cidades, através da Cultura, apoiando quem faz cultura e diferença.

Com tudo isto e muito mais, torna-se difícil contornar dois obstáculos grandes à gestão das cidades. Em primeiro lugar, as máquinas burocráticas que uma legislação pesada e uma partidarite absurda fizeram crescer até um ponto insustentável e que ocupam boa parte do tempo e dos esforços dos responsáveis eleitos. Em segundo lugar, as grandes questões estratégicas não devem fazer esquecer que as cidades existem já. E têm cidadãos que todos os dias usam infra-estruturas públicas, incluindo o espaço público. É este espaço utilizado todos os dias pelas pessoas desde que saem de casa para trabalhar, fazer compras, fazer jogging, passear as crianças, etc., que lhes fica no olhar e constrói o seu mundo real quotidiano. Não é preciso que esse espaço público seja luxuoso, como tantas vezes se vê hoje, num desbaratar inconsciente de dinheiros. Agora, tem é que estar cuidado, limpo, confortável, seguro.

Ao longo dos anos já fiz várias sugestões nestas linhas para que aquele objectivo seja alcançado de forma barata e eficiente. Relembro duas: o patrocínio de construção e manutenção de pequenos jardins por empresas ou outras instituições que lhes estejam próximas; a adopção dos gestores de bairros, que poderão ser reformados ou mesmo desempregados, cujo trabalho será andar pelas ruas e comunicar às autarquias (câmaras e juntas de freguesia) a existência de lixo acumulado, um buraco na calçada, uma grade estragada, um vidro partido ainda que num edifício privado, um banco partido, etc. etc.

As cidades têm que se afirmar num contexto muito difícil e sofisticado. Mas se não forem simpáticas e acolhedoras para os seus próprios cidadãos, isso não valerá de nada. E é tão fácil. Basta estar atento aos pormenores, cuidar das pequenas coisas e perceber que acima de todos os grandes projectos estão as pessoas, por mais simples que possam parecer.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 22 de Agosto de 2011

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

ESTA NÃO É UMA "SILLY SEASON"

 

A barbárie à solta pelas ruas de Londres e outras cidades inglesas não foi o único acontecimento digno de nota dos últimos dias. Infelizmente, acrescento eu.

Na realidade, algo está a mudar neste nosso mundo ocidental, com uma rapidez e uma profundidade ainda impossível de conhecer.

A economia ocidental continua num autêntico caos, sendo evidente o desnorte dos mercados financeiros e dos responsáveis políticos aos diversos níveis. As bolsas europeias e americanas mostraram durante toda a semana passada uma volatilidade e uma falta de consistência verdadeiramente assustadoras. Apesar das garantias do tipo bushiano apresentadas por Obama, segundo o qual a economia americana foi, é e sempre será "triplo A", a verdade é que, pela primeira vez na História, uma das agências de notação baixou a cotação da dívida americana.

O risco de incumprimento das dívidas italiana e espanhola agravou-se, havendo um medo generalizado de que o Euro, tal como está, poderá não resistir muitos mais meses; sente-se no ar que esse medo está no limiar de se tornar em pânico colectivo. A banca francesa está sob vigilância com uma grande queda das suas acções, temendo-se pela situação financeira de um dos maiores bancos franceses. Soube-se que a economia francesa estagnou também no primeiro semestre.

Enquanto tudo isto acontece, os líderes da Alemanha e da França vão telefonando entre si e aos restantes líderes europeus e combinam almoços para tentar resolver os problemas da Europa e, sei lá, do mundo. Da União, poucas notícias, a não ser que o BCE lá comprou mais dívida portuguesa e irlandesa para acalmar os mercados, como se fosse esse o papel de um Banco Central. Da Comissão apenas se ouve, sempre e eternamente, que as restrições orçamentais são para cumprir a qualquer custo, sendo evidente o estiolamento das economias reais; haja alguém que conte a Barroso e afins a história que por cá se conhece como do burro espanhol, sem ofensa para os nossos irmãos ibéricos: o coitado do animal acabou por morrer quando estava quase a aprender a viver sem comer.

Entretanto, a Espanha, a França, a Itália e a Bélgica decidiram proibir temporariamente a venda de acções a descoberto, tentando cortar o caminho aos especuladores que lucram com as desvalorizações; tentativas inglórias, porque desgarradas, de fazer frente a problemas de desregulação financeira da globalização.

É. De facto os acontecimentos ocorridos em Inglaterra são outro sinal de uma doença global. Mal vai quem despreza as suas causas e apenas vê a necessidade de reprimir com força aqueles comportamentos quase inacreditáveis, pela selvajaria colectiva que demonstram. Assim como não tem lugar aqui a análise sociológica habitual que acaba por ser desculpabilizante, ao considerar aqueles indivíduos como vítimas de uma sociedade que os oprime, supostamente "jovens de classes desfavorecidas residentes em bairros sociais" provavelmente até pertencentes a minorias étnicas. Nada de mais errado, porque já é possível caracterizar demograficamente, com alguma precisão, quem participou naquele vandalismo desenfreado, à medida que vão sendo identificados e levados perante a justiça. E a verdade é que fogem a todos os estereótipos adoptados, sendo na sua maioria gente vulgar que aproveita o anonimato da multidão para ir buscar os objectos que o consumismo os levou a desejar. Anthony Burgess, na sua "Laranja Mecânica" levada brilhantemente ao cinema por Kubrick, previu bem até onde poderia chegar a violência dos gangues urbanos, falhando apenas na sua dimensão.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de  Agosto de 2011

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O MAL, SEMPRE PRESENTE

Não é possível pensar no morticínio que sucedeu na Noruega há poucas semanas sem sentir um nó no estômago, uma espécie de enjoo e vontade de vomitar. Se os efeitos da bomba colocada num carro numa rua em Oslo fazem já parte do nosso quotidiano, porque quase todos os dias vemos imagens de algo semelhante ocorrido em algum sítio do mundo, o que sucedeu depois na ilha de Utoia já é muito diferente. Um jovem norueguês passou mais de hora e meia de armas na mão a perseguir e matar a sangue frio todos os jovens que foi encontrando pela frente na pequena ilha onde estavam acampados. Foram 76 vidas ceifadas, 76 futuros cortados, 76 pais e 76 mães que perderam um filho ou uma filha sem ninguém saber exactamente porquê, nem para quê.
Adicionar legenda
Antes de sair de casa para levar a cabo o massacre que planeou sozinho durante quase dez anos, Anders Breivik de 32 anos até descarregou na net um documento com mais de 1500 páginas onde supostamente daria explicações para o seu acto. Um conjunto monstruoso de disparates e citações as mais diversas, onde é difícil encontrar um rumo definido, para além do mal absoluto e de ódio a tudo o que é diferente. Um narcisismo evidente leva-o a colocar fotos suas fardado e cheio de medalhas, ele que nunca fez serviço militar, bem como usando fatos de combate ridículos, com condecorações anedóticas inventadas por ele mesmo.
O ódio ao multiculturalismo é um traço comum nas diversas arengas “explicativas” adiantadas pelo autor do massacre. A Noruega é hoje um dos países com maior nível de vida do mundo, graças às reservas gigantescas de petróleo que possui e explora. Ao contrário de muitos outros países exportadores de “ouro negro”, a Noruega definiu muito bem, por lei, o destino a dar às receitas que obtém através da exploração petrolífera. Desde logo, uma percentagem de 30% é destinada a alimentar um fundo soberano, que é dos maiores do mundo. Depois, a Noruega construiu um sistema de protecção social invejável para todos os seus cidadãos, no que respeita por exemplo à educação, à saúde e segurança social. Mas a Noruega não se fechou sobre si própria. Não aderiu ao Euro e percebe-se bem porquê. Mas, em compensação, destinou verbas assinaláveis para apoiar outros países, onde se encontra também Portugal; cá em Coimbra, por exemplo, o sistema de rega ecológico do Jardim Botânico que permite poupar água da companhia e gastos desnecessários foi custeado pelo governo norueguês que apoiou financeiramente vários outros projectos no nosso país, designadamente na reabilitação de bairros sociais degradados. Não contente com isso, a Noruega destinou verbas enormes para o apoio a populações de áreas problemáticas de todo o mundo, recebendo mesmo no seu território imensa gente carenciada e perseguida por várias razões, como é o caso da Somália. Esta atitude e a tolerância nacional perante a chegada de muito imigrantes a um país agora rico e que são acolhidos com grande atenção e mesmo cuidados que obviamente não tinham no seu país de origem, dá por vezes origem a reacções por parte de inadaptados que se acham donos do país, por vezes com grande violência como aconteceu agora. Gente que confunde tolerância e apoio a desfavorecidos com multiculturalismo. Gente que para mostrar ódio a muçulmanos resolve massacrar pessoas do seu próprio país, não pode ser senão considerada como personificação do mal absoluto, pela completa falta de sentido das suas acções e desrespeito pelos semelhantes.
Muito bem fez um jovem norueguês escapado ao massacre, ao escrever a Breivik afirmando que não lhe tem ódio. Mostrou que o futuro é dos Homens que defendem a Paz, o que é particularmente significativo num país que atribui o Nobel da Paz. 
Publicado originalmente no Diário de Coimbra de 8 de Agosto de 2011

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

QUESTÕES DE CIDADES: O COMÉRCIO DE RUA

A evolução a longo prazo das sociedades é algo que escapa ao voluntarismo de atitudes e mesmo acções, por mais bem intencionadas que elas sejam. O mesmo acontece com as Cidades. Neste caso, o planeamento é crucial para impedir grandes males, mas é frequentemente incapaz de promover evolução num ou noutro sentido, havendo inevitabilidades a que não se consegue fugir, por mais ilógicas e injustas que pareçam ser. As últimas décadas foram particularmente infelizes no que toca ao desenvolvimento das nossas cidades, que muitos frequentemente confundem com crescimento. Isto apesar de nunca se ter falado tanto de Planos, seja a nível local, regional ou mesmo nacional. O que é facto é que as cidades cresceram sem limites, criando enormes manchas de ocupação nova e abandonando os seus centros antigos. Isso reflectiu-se na própria vivência dos seus habitantes. As viagens casa-trabalho e casa-lazer ou mesmo para compras tornaram-se mais longas e obrigaram à utilização do automóvel para tudo. Foi assim que os centros comerciais se tornaram atractivos, principalmente porque facilitam o acesso automóvel aos seus clientes; Claro que, para além disso, apresentaram outros aspectos, como a novidade de lojas de cadeias até então inexistentes nessas cidades, o tratamento de ar criando um ambiente artificial mas agradável durante todo o ano, o conceito de lojas âncora, etc.
Em paralelo, os centros urbanos foram perdendo atractividade, com consequências na perda de valor dos edifícios existentes, na rarefacção de moradores, na consequente degradação económica e social e, no fim, no afundamento do comércio de rua. Para isso é hoje evidente que contribuíram igualmente uma pedonalização excessiva e mal estudada dos centros urbanos, mais virada para o turismo do que para a comodidade dos moradores e comerciantes, bem como as leis das rendas, antigas e actual, desadequadas a uma utilização socialmente eficiente do edificado existente.
Não há hoje dúvidas de que a aposta nacional na construção civil através do crescimento urbano se reflectiu no abandono dos centros urbanos, através de uma relação entre reabilitação do edificado e construção nova que de tão baixa que é, constitui caso único na Europa (7% entre nós, contra um média europeia de 36%). É ainda certo que boa parte da nossa dívida externa está enterrada nessa construção civil nova das últimas décadas, verdadeiramente absurda.
Felizmente, os centros urbanos começam hoje a suscitar uma atenção nova por parte dos diversos intervenientes, sinal seguro de uma mudança que trará novos tempos que só poderão ser melhores. Desde logo, a própria crise económica que vivemos favorecerá a mudança do paradigma da construção nova para a renovação urbana. A alteração do clima de consumismo para hábitos de maior poupança leva a que muitos consumidores evitem os centros comerciais que facilitam as compras desnecessárias. Os agentes económicos estão também a mudar os seus comportamentos. Para além de já não apresentarem o carácter de novidade para os compradores, os centros comerciais terão atingido entre nós o nível de saturação de área de oferta, começando a apresentar muitos espaços de lojas fechadas. A nova preferência de alguns retalhistas pelo comércio de rua em vez dos centros comerciais é já um facto nas principais cidades e deverá alastrar às cidades médias, "puxando" pelo comércio já instalado que deverá, obviamente, acompanhar a qualificação da sua oferta. Cabe agora nestas novas circunstâncias, às entidades públicas, aos comerciantes e suas associações darem as mãos e aproveitar este clima com respostas conjuntas para uma revificação dos centros urbanos.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 1 de Agosto de 2011