segunda-feira, 15 de junho de 2015

Aniversário da Magna Carta

Há aniversários que, embora originariamente digam respeito a datas marcantes para um determinado país, se revestem de um significado tão relevante que importam a toda a Humanidade. Claro que o tempo, esse inultrapassável construtor da História, se encarrega de filtrar as datas verdadeiramente importantes para o progresso da Humanidade, daquelas que os contemporâneos se convencem que o vão ser e afinal constituem simples marcos que apenas influenciam directamente algumas dezenas de anos da História. Entre aqueles contam-se, inevitavelmente a chegada de Vasco da Gama à Índia e a queda de Constantinopla que marcam o fim da Idade Média em 1498, a independência dos Estados Unidos com a sua Constituição em 1776, a própria Revolução Francesa em 1789 ou o desembarque aliado na Normandia em Junho de1944.
Mas o dia de hoje marca os 800 anos da assinatura da Magna Carta que ocorreu em 15 de Junho de 1215. Estava-se na Idade Média que ficou conhecida como a “idade das trevas” embora, lendo a História da Idade Média coordenada por Umberto Eco, se perceba como tal designação pode ser um erro histórico. E, apesar disso, o Rei João de Inglaterra assinou naquele dia a “Magna Charta Libertatum, seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae” que, no seu art.º 39º e, numa tradução livre, estabelecia:
“"Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra".
Independentemente das boas ou más razões que levaram João Sem Terra a assinar a Magna Carta, o documento ficou como inspiração para a definição das liberdades individuais e limites da acção do Estado em futuras constituições pelo mundo, de que o exemplo maior será talvez a Constituição Americana do século XVIII.
Certamente, aqui residirá igualmente a razão da tão antiga e sedimentada democracia inglesa que leva aquele povo, em momentos decisivos para a defesa da Liberdade, a afirmar muito simplesmente “we stand together” e partir para a luta custe o que custar, como aconteceu por duas vezes no século XX, em particular na Segunda Grande Guerra contra a barbárie nazi.
Nós, portugueses, podemos orgulhar-nos de nossos antepassados terem tido um papel importante na História da Humanidade. Mas há um aspecto particular em que não fomos exemplares e é precisamente aquele que tem a ver com as liberdades individuais que ainda hoje se percebe facilmente não serem entre nós objecto de um respeito que se possa considerar verdadeiramente inato.
De facto, a nossa primeira Constituição data do início do século XIX, há portanto duzentos anos.
Precisamente no momento histórico em que acabou a Inquisição portuguesa, extinta em 1821.
 Estado e Igreja tinham utilizado durante 285 anos um instrumento de dominação de tal forma terrível e quase impossível de evitar, que a nossa maneira de pensar e até de ser ficou marcada de forma evidente pelo medo e reverência face ao poder. Até hoje, porque nenhum povo pode viver mergulhado no medo durante tantas gerações, sem que tal influencie a própria personalidade colectiva. Mesmo o nosso século XIX ficou marcado por conflitos e até guerras civis que impediram uma aproximação popular aos valores da liberdade. E mais de metade do século XX decorreu também longe da democracia e das liberdades individuais.
É também por isso que faz sentido, entre nós, celebrar os oitocentos anos da Magna Carta. Para percebermos até que ponto somos ainda hoje tão diferentes de outros povos, particularmente do norte da Europa. E de que forma a nossa actual integração numa União Europeia, muito mais do que pela economia, nos importa pela integração social e política.

Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 15 de Junho de 2015

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