Quem viveu durante a paz da “guerra fria” que se seguiu à Segunda Guerra Mundial logo no fim dos anos 40 do século passado e que só terminou com o fim da União Soviética em 1991 terá, certamente, sentimentos algo contraditórios relativamente ao presente. Durante aquele período de tempo histórico, havia uma clivagem política, económica e social evidente: de um lado estava o capitalismo simbolizado pelos EUA que tinha criado uma aliança defensiva militar, a NATO, e do outro estava o campo socialista dirigido pela URSS, que tinha igualmente uma aliança militar com os outros países governados por partidos comunistas.
O império soviético acabou por cair por
exaustão, incapaz de acompanhar o tremendo desenvolvimento económico do mundo
capitalista. Esse fim acabou com um mundo bipolar, criando expectativas sobre
uma unificação mundial sob um mesmo sistema, havendo mesmo quem sugerisse que
se assistia então ao “fim da História”. Nada de mais errado. Depois de um
período de alguma acalmia, o mundo pareceu ter acelerado no sentido de uma
globalização que tem vários aspectos contraditórios.
A pobreza no mundo sofreu uma diminuição
acentuada, tendo sido puxadas milhões de pessoas para dentro do limiar da
sobrevivência. Por outro lado, essa mesma globalização veio retirar trabalho
dos países economicamente mais desenvolvidos, diminuindo aí o crescimento de
bem-estar que se verificava continuamente desde os anos 50.
A globalização só se tornou possível pelo
grande desenvolvimento das tecnologias de informação, que estabeleceram redes
interligadas por todo o mundo. Se as redes sociais são um sinal dessa ligação
que todas as pessoas podem verificar diária e pessoalmente, algo muito mais
relevante para o mundo se passa através das ligações informáticas. Os fluxos
financeiros que antes demoravam dias a concretizar-se, passaram a ser
instantâneos, com muitos milhões de euros a dar literalmente a volta ao mundo
em cada segundo.
Esta rapidez de transferência de verbas
astronómicas tornou o seu controlo muito difícil, se não mesmo impossível na
sua totalidade. O mundo financeiro transformou-se rapidamente, tendo a banca de
investimento, tornada altamente sofisticada e especulativa, invadido a banca
clássica de retalho, com consequências devastadoras como vimos na crise
financeira de 2008.
Mas, paralelamente à diminuição mundial
de pobreza, todas estas transformações têm sido acompanhadas por uma gigantesca
operação de transferência de dinheiro das classes médias para um reduzido grupo
de empresas e personalidades hiper-milionárias, precisamente à conta do
desenvolvimento das tecnologias de informação. Aparecem assim a Microsoft, a
Amazon, a Google, o Facebook e mais meia-dúzia de empresas que actuam a nível
global e sugam quantidades impressionantes de dinheiro do resto da economia de
uma forma praticamente automática, através de programas informáticos a que
ninguém hoje em dia pode fugir.
Os nascidos na última vintena do século
XX ou já no século actual têm referenciais políticos que nada têm a ver com os
do período da “guerra fria” que, no entanto, ainda são os de muitos dos que a
viveram. Estão neste caso muitos dos políticos actuais e ainda alguns que,
sendo mais novos, militam em partidos espartilhados nos limites antigos
capitalismo/socialismo ou mesmo direita/esquerda que não fornecem respostas
adequadas aos novos tempos.
E a verdade é que se estão novamente a
criar as condições para uma sensação generalizada de injustiça que pode
conduzir a revoltas muito sérias pelo mundo, principalmente no chamado mundo
desenvolvido. Essas revoltas não serão já conduzidas por elites politizadas
como sucedeu há cem anos, mas caracterizar-se-ão por uma organização inorgânica
e violência anárquica nas ruas. Aliás, quer as manifestações dos coletes
amarelos em França, quer o ressurgimento de movimentos ditos neo-nacionalistas
ou populistas um pouco por todo o lado são um sinal claro de que nos
subterrâneos das nossas sociedades algo poderá estar a germinar e que não será
bonito de se ver quando surgir à luz do dia.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 21 de Janeiro de2019
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