A recente descoberta do esqueleto de Ricardo III não trará novidades à História. Confirma que não era corcunda e que padecia, isso sim, de escoliose acentuada surgida teria uns dez anos de idade, e elimina a sugestão de Shakespeare de que seria incapaz de mexer um dos seus braços. Acima de tudo, a análise dos ossos traz à luz do dia a forma como morreu: o seu corpo sofreu inúmeros golpes, tendo provavelmente falecido de um grande golpe na cabeça. Mesmo depois de morto foi trespassado por diversas vezes, o que demonstra, não só a violência dos combates pessoais de então, mas também a raiva que lhe tinham os vencedores e, em particular, os que o atraiçoaram em plena batalha. As crónicas tentaram pintar as cores desse Rei apenas com tons escuros, eliminando as facetas favoráveis que as teve, e não terão sido poucas. Foi leal a seu irmão o Rei Eduardo IV enquanto este viveu e era um homem culto, respeitador dos direitos dos mais pobres e grande defensor da liberdade de imprensa, então no seu início. Ele próprio era um leitor interessado, escrevendo apontamentos pessoais nos livros que lia.
A ciência de hoje permitiu afirmar que aqueles são efectivamente os ossos
de Ricardo III, o que ainda há poucos anos seria impossível. Mas a
identificação positiva foi também um acaso da História. De facto, foi feita
através da análise do DNA mitocôndrico que só é transmitido por via feminina.
Os investigadores encontraram duas pessoas descendentes de uma irmã do velho
rei que confirmaram ambas o DNA, mas nenhuma delas é mulher com filhas, pelo
que eram as últimas hipóteses de confirmar a identificação.
Ricardo III foi certamente um homem capaz das maiores barbaridades e
violências, como era aliás habitual no seu tempo. Mas sabe-se hoje que a imagem
física que Shakespeare deu dele, tendo escrito mais de cem anos após a morte do
Rei, não correspondia à realidade. O grande dramaturgo escreveu que a fealdade
do seu aspecto reflectia a maldade da sua alma, isto é, a aparência seria
reflexo da personalidade.
A descoberta agora feita vem pelo menos destruir este mito, já que se o
aspecto exterior não era de facto como Shakespeare o descreveu, a conclusão
sobre a personalidade poderia estar também errada. Mas mostra ainda outra
coisa: mostra de facto como muitas vezes os intelectuais, ao mais alto nível,
são capazes de utilizar as suas capacidades criativas para os motivos menos
nobres. E ensina-nos ainda outra coisa: nunca se pense que a História está
escrita em definitivo.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 18 de Fevereiro de 3013