segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A doença dos legionários



Nos dias que correm, um cronista que deseje comentar os choques do quotidiano, só tem um problema: a escolha do tema. Para referir apenas as últimas semanas, entraram na nossa vida em todo o explendor os problemas da PT,do Espírito Santo, dos Vistos Dourados, das “Secretas” e, qual cereja em cima do bolo, o espectáculo deprimente da detenção do anterior primeiro-ministro na sequência de investigações judiciais relacionadas com a comezinha corrupção. Realmente, os portugueses não têm possibilidade de sossegar o espírito, pouco espaço restando para imaginar o que aí virá ainda. Como pano de fundo de tudo isto, uma clara degradação ética de supostas elites, associada a uma ganância obscena por poder e dinheiro.
Felizmente, uma das maiores preocupações que nos afligiu nos últimos dias teve na sexta feira passada o seu epílogo. O ministro da Saúde declarou extinto o surto da “Doença dos Legionários” que teve início em 7 de Novembro, tendo-se registado 336 casos e dez mortes.
A “doença dos legionários” deve o seu nome ao primeiro surto conhecido que ocorreu em 1976 durante uma convenção de legionários americanos num Hotel em Filadélfia que originou a morte de 34 pessoas. Veio a provar-se que a bactéria na origem deste tipo de pneumonia estava alojada nos chillers do sistema de ar condicionado do Hotel, daí o seu nome “legionella”.

A ciência coloca hoje as bactérias como estando na origem da vida na Terra tal como a conhecemos. Durante uns dois milhões de anos terão sido mesmo a única forma de vida na Terra. A determinada altura, um tipo de bactérias, as cianobactérias, começaram a viver do hidrogénio que retiravam das moléculas de água que existia em grande quantidade tendo como resultado a produção de oxigénio; fizeram-no em tal quantidade durante esses milhões de anos, que criaram condições para o surgimento e desenvolvimento das formas de vida que, como nós, dependem do oxigénio para viver. Continuamos dependentes das bactérias, que o nosso corpo carrega permanentemente uns cem mil biliões delas que nos ajudam a fazer praticamente tudo para viver. Algumas das bactérias que entram no nosso organismo podem, no entanto, ser muito perigosas. É o caso da legionella. Como se desenvolve em determinados ambientes como sistemas de armazenamento e água e, fundamentalmente, sistemas de ar condicionado de dimensão razoável, é necessário um controlo ambiental apertado sobre o seu surgimento.
De vez em quando, com condições climatéricas favoráveis e falta de controlo permanente, surgem surtos. Foi este o caso recente em Vila Franca de Xira, com as torres de arrefecimento de água de uma fábrica a lançarem partículas minúsculas de água para a atmosfera que o vento se encarregou de transportar e espalhar. Toda a população da área ficou exposta apenas por respirar e surgiu o surto de legionella com as consequências que se sabem. É evidente que a empresa proprietária da fábrica que esteve na sua origem vai ser objecto de acção judicial para determinar responsabilidades, havendo igualmente lugar a indemnizações que, como é natural, não pagarão nunca as mortes que se verificaram. E deverão igualmente ser tiradas consequências legislativas que venham a impedir, o mais possível, casos semelhantes no futuro.
Mas este surto veio mostrar que algumas coisas funcionam bem em Portugal. Este surto foi combatido por diversas entidades oficiais de mais que um ministério, sob a coordenação do ministro da Saúde. Houve eficácia na montagem de um complexo e grande dispositivo de saúde para acolher e tratar um número invulgar de doentes em graves condições de saúde, num ambiente sanitário difícil. As equipas de recolha de amostras e o Instituto Ricardo Jorge que as analisou trabalharam em grande velocidade e com competência para, através de eliminação de dezenas de suspeitas, identificarem com grau grande de certeza qual a fonte do surto, permitindo a sua eliminação.

Por fim, e não menos importante, foi montado um plano eficaz de comunicação que, mostrando competência, transparência e verdade, criou confiança nas populações mais directamente atingidas, factor crucial para o sucesso. Tantas coisas têm corrido mal em Portugal nos últimos tempos que, quando algo que à partida tem grandes hipóteses de correr mal acaba por correr bem, só nos podemos dar por satisfeitos e louvar publicamente os responsáveis por isso.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 24 de Novembro de 2014

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

A visita ao cometa



Vindo dos confins do sistema solar, da cintura Kuiper situada para lá da órbita de Neptuno onde tem por companhia habitual inúmeros objectos gelados, o cometa Churyumov-Gerasimenko aproxima-se de novo do Sol, como acontece regularmente cada seis anos e meio. Neste momento, viaja a 55 mil quilómetros por hora, algures entre as órbitas de Marte e Júpiter. O cometa deve o seu nome a dois astrónomos ucranianos que trabalhavam no Instituto Astrofísico de Alma-Ata no Casaquistão em 1969: Svetlana Gerasimenko que que tirou a fotografia em que ele surgia e o seu colega Klim Churyumov que fez a identificação.
Mas, desta vez, o cometa também conhecido como 67P não viaja sózinho. Desde a passada quarta-feira, dia 12 de Novembro de 2014, um pequeno robô chamado Philae está pousado na sua superfície, que analisou a sua constituição e enviou esses dados para a Terra para estudo posterior. O Philae foi lançado para a superfície do cometa pela sonda Rosetta que se juntou ao 67P em Agosto passado, acompanhando-o na sua órbita a uma distância de apenas noventa e poucos quilómetros.
Curiosamente, os nomes dados às duas sondas remetem para o antigo Egipto. Rosetta era o nome da pedra descoberta durante a expedição francesa ao Egipto e que permitiu a Champollion decifrar a escrita egípcia em 1822, dado que nela estava inscrito o mesmo texto em três linguas diferentes: o grego, o egípcio antigo e o egípcio tardio. Philae é o nome de uma ilha no rio Nilo onde foi descoberto um obelisco que, juntamente com a pedra de Rosetta, possibilitou decifrar a antiga língua do Egipto.
Para que a sonda Rosetta encontrasse o 67P no vazio do espaço sideral, no fim de uma longa perseguição, muita coisa se passou.  A expedição foi aprovada pela Agência Espacial Europeia em 1993 e o lançamento foi feito em Março de 2004 há, portanto, dez anos. Neste período de tempo, a sonda Rosetta viajou pelo sistema solar, tendo passado pela Terra por três vezes e por Marte uma vez, aproveitando a gravidade deste planetas para impulsionar a sua velocidade até à necessária para acompanhar o cometa e entrar na sua órbita em Agosto passado, depois de ter percorrido 6,4 mil milhões de quilómetros.

Investigar directamente um cometa é de uma importância crucial para se conhecer melhor a História do Universo. De facto, considera-se normalmente que a sua formação data do início do surgimento do sistema solar, estando a matéria que os constitui preservada, dado que passam a maior parte do tempo muito longe do Sol. Por exemplo, o cometa 67P só em cerca de seis em seis anos se aproxima do Sol, passando ainda assim bastante longe dele, entre as órbitas da Terra e de Marte durante apenas alguns meses, regressando depois para as profundezas geladas da cintura de Kuiper. Poderá ainda dar informações sobre a própria vida na Terra, dado que se pensa que cometas possam ter trazido água, gelo e mesmo matéria orgânica para o nosso planeta.
O robô Philae tem baterias que duraram 64 horas, período de tempo que os cientistas aproveitaram para recolher a maior informação possível. O facto de Philae não ter “aterrado” no cometa como desejado pode ter limitado a informação que conseguiu obter, mas não retira qualquer mérito ao sucesso da missão. 
A sonda Rosetta vai orbitar o 67P até Dezembro de 2015,continuando a enviar informação, altura em que se separará do cometa, terminando a sua missão. Estão tão longe da Terra que, mesmo à velocidade da luz, a transmissão demora cerca de 30 minutos a chegar até nós.
Em tempos de preponderância de notícias desagradáveis, este acontecimento sabe bem. Para toda a Humanidade, significa mais um passo no conhecimento do Universo e do que somos. Depois, é motivo de orgulho para os europeus que ultimamente têm tido razões para insatisfação generalizada. E para um cidadão vulgar, é certamente motivo da maior admiração pelo feitos conseguidos. Planear uma missão altamente sofisticada e a longo prazo, financiá-la e mantê-la operacional durante todo este tempo é um feito memorável. Como notável é a capacidade científica para atirar uma sonda para o espaço, levá-la a passar perto de planetas para lhe dar a velocidade necessária, adormecê-la enquanto corre a uma velocidade louca pelo Espaço e encontar-se com toda a precisão com um pequeno objecto com uma dimensão reduzida de 5 por 3 km que voa também a uma velocidade estonteante..
Um juiz de uma causa horrível respondeu uma vez quando lhe perguntaram por que achava que a Humanidade valia a pena, dizendo que tinha lido o Diário de Ann Frank. Este feito da Europa para toda a Humanidade é também a prova de que continua a valer a pena acreditar no Homem.
Publicado originalmente no Diário de Coimbra em 17 de Novembro de 2014

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O regresso dos fanatismos



A evolução económica, social e essencialmente cultural do chamado ocidente levou a que muitas das posições que ao longo da História eram consideradas normais e aceitáveis sejam hoje consideradas como fundamentalistas. 

E ainda bem! De facto só se pode considerar como avanço civilizacional a capacidade de olhar para os textos religiosos, políticos ou outros como produto da inteligência, imaginação ou mesmo humildade de Homens e Mulheres ao longo dos tempos. E respeitar todos os seres humanos como iguais em direitos.
Embora diminuta perante a idade da Terra ou do Universo, a História da Humanidade tem já algumas dezenas de milhares de anos, em que obrigatoriamente se contam momentos bons e maus ou mesmo muito maus. Estes últimos correspondem normalmente a dominações violentas de partes da humanidade por outras que se acham superiores de alguma maneira. Olhando para a evolução civilizacional é possível verificar que nas últimas centenas de anos experimentou uma aceleração nunca antes vista. Há cerca de mil anos, a razão maior da violência entre povos europeus era uma, a religião. À conquista de grande parte da europa mediterrânica pelos muçulmanos em nome do Islão, seguiu-se o levantamento pelos povos cristãos conquistados que lentamente foram expulsando os islamitas, o que veio a suceder em definitivo na Península Ibérica apenas no século XV. 
Os tempos de confronto violento contra “o outro” são sempre terreno fértil para o fundamentalismo que facilita os processos mentais que levam à violência, pelo que esses foram tempos de fanatismos extremos e guerras de violência inaudita.
Passados esses tempos, manteve-se o fundamentalismo religioso que, entre nós, ganhou a expressão máxima na Inquisição que, para nossa vergonha, só veio a terminar no início do século XIX, há duzentos anos.
Na transição do século XVIII para o século XIX o Ocidente conheceu um dos momentos de maiores implicações filosóficas e culturais da História, a Revolução Francesa. Apesar dos seus grandes objectivos proclamados, a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade, acabou por desaguar numa violência fanática extrema, cujo símbolo maior é a guilhotina, inventada para maior eficácia no castigo generalizado para os chamados inimigos da Revolução. O próprio Robespierre, “o incorruptível”, acabou por em 1794 ser vítima da solução final que utilizara para tantos milhares de oponentes, acabando também guilhotinado.

Na sequência da Revolução Francesa o fundamentalismo religioso no ocidente foi diminuindo gradualmente até praticamente desaparecer. Claro que existem sempre margens ocupadas por aqueles para quem o sentimento religioso deve enformar todos os aspectos da vida, o que facilmente desemboca no fundamentalismo, mas são minorias sem expressão social.
O fanatismo político veio a atingir o seu pico trágico ainda durante o Século XX. Após o fim da Segunda Grande Guerra, o mundo e em particular o ocidente, conheceu décadas de prosperidade que acompanharam uma diminuição notória dos fundamentalismos. Quando se pensaria que esta evolução estaria bem sustentada eis que, poucas décadas após o fim da guerra fria que manteve boa parte do mundo em alerta, voltam os extremismos fundamentalistas como se tivessem estado apenas adormecidos.
O ressurgimento espantoso do fundamentalismo religioso islâmico, que se manifesta, não só no médio oriente de forma extrema com o chamado “estado Islâmico”, mas também em África na Nigéria e na Ásia na Indonésia. 

Este fanatismo coloca em causa toda uma construção civilizacional que se pensava estável e adquirida, como sejam os direitos do Homem, os direitos da Criança e até mesmo desaparecimento da escravatura. Nos mais diversos países da Europa ressurgem em força os partidos extremistas que defendem a xenofobia, o racismo e atacam as minorias deprotegidas.
Pouco está nas nossas mãos fazer como cidadãos individuais, para além de adoptar uma intransigência absoluta relativamente aos fundamentalistas, venham de onde vierem. Cá por mim não esqueço a máxima de um velho amigo: admito tudo, fanáticos é que não!
 Publicado originamente no Diário de Coimbra em 100 de Novembro de 2014

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

SIMBOLOS



O Governo da Nova Zelândia decidiu fazer um referendo no início de 2016 sobre a manutenção da actual bandeira do país ou a sua troca por uma nova, escolhida entre várias propostas, também em referendo que terá lugar no final de 2015, mas que deverá apresentar como símbolo uma tradicional folha de feto (samambaia). A actual bandeira da Nova Zelândia que recorda-se, está nos nossos antípodas isto é não podia estar mais afastada da Europa, mantém a “Union Jack” britânica como memória da pertença ao antigo império britânico. A mudança do símbolo nacional que é a bandeira, é apresentada pelo actual primero-ministro neozelandês como um corte com o passado colonial e a afirmação de uma identidade própria e moderna.
Há pouco tempo observei umas fotografias da revista LIFE de manifestações militares e populares de apoio a Hitler, quando estava no poder na Alemanha. Para além dos aspectos políticos e psicológicos impressionantes que aquelas fotos suscitam, há um outro que ressalta à vista. 

Os antigos estandartes e bandeiras alemãs estão todos substuidos pelas bandeiras negras e vermelhas com suásticas. Mesmo as tradicionais insígnias nas fardas militares estão sempre acompanhadas pela omnipresente suástica.
Historicamente, a troca de bandeira corresponde normalmente a momentos cruciais da vida dos países e, embora haja sempre quem seja contra com razões mais ou menos respeitáveis, a nova bandeira passa a representar o país na sua totalidade, passando a ser respeitada como tal. Claro que há excepções. No século XX houve abandono de bandeiras nacionais por parte de partidos políticos que, ao atingirem o poder, as substituiram pelos seus próprios símbolos.
O caso da Alemanha nazi é paradigmático. Após a sua eleição como chanceler e a morte do presidente Hindemburgo, Adolf Hitler fez adoptar a bandeira do Partido Nacional Alemão dos Trabalhadores (assim se chamava o partido nazi) como bandeira nacional da Alemanha, situação que durou até à sua derrota incondicional na Segunda Guerra Mundial em 8 de Maio de 1945.
Também a Rússia viu a sua tradicional bandeira substituida pelos símbolos do Partido Comunista após a vitória da Revolução de 1917. Assim, a bandeira da União Soviética passou em 1923 a ser vermelha com os símbolos comunistas da foice e do martelo e ainda a estrela do partido.

 Cada uma das repúblicas integrantes da URSS substituiu também a sua bandeira dentro do mesmo princípio, incluindo claro, a república socialista russa. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, muitos países da Europa de Leste que a ex-URSS integrou no Pacto de Varsóvia substituiram também as suas bandeiras nacionais, passando a exibir os símbolos dos partidos comunistas. Esta situação terminou depois da desintegração da ex-URSS, tendo cada um dos países que antes integravam o bloco comunista adoptado novas bandeiras nacionais expurgadas dos símbolos comunistas; por exemplo, a própria Federação Russa adoptou a bandeira tricolor branca, azul e vermelha como era desde 1883 até à revolução soviética, sem quaisquer símbolos.
As diferenças para o agora proposto na Nova Zelândia não podiam ser maiores. Em vez da vontade imposta por partidos no poder, são os cidadãos que, de forma inteiramente livre têm a hipótese de escolher um símbolo nacional diferente. É a Democracia, com o respeito pela vontade da maioria livremente expressa, a funcionar. Pode mesmo suceder, e o primeiro-Ministro Key está perfeitamente consciente disso, que o povo da Nova Zelândia venha a optar por continuar com a actual bandeira.
Tal como se a escolha for pela nova bandeira, não haverá nenhum drama, dado que resultará da livre vontade do povo neozelandês, não significando nenhum construtivismo social de algum “homem novo” ou anúncio de “amanhãs que cantam” que desembocam sistematicamente em grandes tragédias e sim apenas a natural evolução de uma nação livre e soberana.

Publicado originalmente no Diário de  Coimbra em 3 de Novembro de 2014